Meus cálculos haviam dado certo e tanto Rafaela quanto Freya haviam se sentado no outro extremo da mesa. Claro que o móvel servia pra mostrar a hierarquia. A chefia na ponta próxima da janela, do projetor e da máquina de café e, conforme o clero ia baixando, mais próxima da porta de saída e dos vasos de folhagem ficava. Eu até tentei me sentar o mais próximo possível da porta, mas a moça da criação queria que eu jogasse na sobra, se visse uma oportunidade colocaria uma puta sacada.
Obviamente ela não sabia da minha condição de auto exílio do paraíso BDSM do ano novo. Não sabia o quanto eu havia ficado seguro da minha decisão e muito menos no quanto a psicologa ouviu de áudios. Mas a vida tem desses dilemas e dessas batalhas a se batalhar e, com sorte, vencer. Eu estava firme. Convicto. Aquela decisão, naquele momento, foi o ideal. Foi o que tinha de ser feito.
Claro que todo planejamento mental que eu fazia ruía frente da primeira dificuldade e eu tinha de improvisar. Foi exatamente isso que senti ao ver Rafaela seguida de perto de Freya. O cabelo da aspirante à domme estava diferente, talvez mais curto, o porte dela mais altivo. Já sua senhora nem precisava da descrição, ela estava soberana. Eu, por instinto, abaixei o olhar. Ela não era do tipo vingativa, era? Tomara que não.
Reunião iniciada e a voz do Borges falando do quanto estava feliz por ter uma equipe como nós era o mesmo blá-blá-blá motivacional de páginas de redes sociais. Conhecia a maioria das frase: eu mesmo tinha escrito elas em uma fase de desemprego. Devia ter aproveitado aquela época para escrever um livro sobre isso e hoje estaria dando palestras. Não. Sem chance. Odiava ser o centro das atenções. Foi quando senti um toque sutil no meu braço. Era minha deixa. Falei o que esperavam de mim, todos me olhando, fui firme expondo meus pontos, dois minutos, talvez dois minutos e meio. Apesar de ser criativo sempre gostei de análises. Rafaela cochichou algo ao pé do ouvido de Freya que, ao tornar suas orbes esverdeadas sobre mim, soltou um riso fino. O foda é que eu sabia o que elas conversavam. Merda.
O resto da reunião foi a confirmação por parte de todos os presentes que, se preciso fosse, venderiam a alma pela empresa. Todo começo de ano nas empresas é esse tipo de encontro. É igual à reunião de final de ano, só que sem bolos, salgados e bebida. Só tem café e eu odeio café. Atiça meu refluxo. Depois tinha que perguntar pro Borges se ele se importava d'eu trazer meu chimarrão. Tem cafeína, ataca meu refluxo, mas o vapor da água me faz pensar melhor.
Ao fim, enquanto pequenas rodinhas se formavam próximas da máquina de café e de biscoito água e sal, Rafaela passava nelas uma por uma para confirmar os rumos e acabava falando pessoalmente com todos os presentes. Por incrível que pareça, eu estava absorto num copo com água e meio biscoito pensando em uma frase matadora pra rede social. Chamei a Beth, designer que dizia que éramos uma ótima dupla de criação, e comentei a linha geral, ela já via a arte e eu via um refinamento da frase, algo que pudesse ser musical. Foi quando Freya me cutucou de leve, quase como um anúncio da chegada de Rafaela.
- Conto com vocês esse ano que se inicia hem - Ela não me olhava, eu estava invisível, quase como se tivesse exercido o direito à safe - Temos grandes aspirações esse ano e vamos precisar de todo mundo!
- Pode deixar, senhora - Beth me olhou - O Fernando até teve uma ideia legal pra rede social e...
- ... Depois falamos sobre - Ela foi se afastando e se aproximando do Borges - Estão me chamando.
- Nossa - A designer me olhou - Ela te ignorou legal hem, até parece que vocês tiveram um caso - Ela riu de leve, eu permaneci sem reagir, conhecia aquela atitude, não sei se, na posição dela, não faria o mesmo. - Não vai me dizer que tiveram???
- Claro que não - Ri - Com todo respeito, mas é muita areia pro meu carrinho de mão.
- Nem tanto - Ela me olhou de cima a baixo, depois olhou para Rafaela e Freya que a circulava como um satélite - Ela é bonita, mas você também é...
Senti um clima estranho. Precisava de uma fuga, a janela talvez fosse legal. Ri do pensamento suicida assim, do nada. Pretendia falar algo que mudasse o assunto quando Rafaela deu por encerrada a reunião e mandou todo mundo de volta aos seus postos. Tinha a certeza que eu ficaria e ela ou me demitiria ou faria qualquer coisa. Fui deixando o grosso do pessoal - umas vinte pessoas - irem saindo, fui um dos últimos a deixar a sala. Nada. Nenhuma reação da parte dela. Será que ela estava frustrada? Olhei de soslaio buscando vê-la, seu rosto era como a esfinge, não emitia um único sentimento, não demonstrava absolutamente nada. Freya tentava, mas eu a lia, ela estava curiosa, não sei se com a minha coragem de permanecer na empresa ou com a sua senhora controlando as expressões. Acho que hoje, como alívio de stress, alguém apanharia. Que sorte que não sou eu.
Credo.
Credo.
Credo.
Voltei pra minha sala. Ainda eram dez horas da manhã, de uma segunda-feira de meados de janeiro. Puta merda. Esse ano ia ser interessante e eu ia adorar o que estava por vir.