sábado, 5 de fevereiro de 2022

CdF - Outras histórias: Hello World

Dois anos haviam se passado desde aquele período onde Rafaela foi afastada do conselho da Lótus. No regresso dela a empresa sofreu financeiramente com alguns acionistas debandando, porém no começo do segundo ano um dos maiores grupos educacionais do mundo viu potencial e investiu pesado, o que permitiu um crescimento ainda maior com todos os benefícios aos funcionários que a mandatária gostava de manter.


Outra tarde de sexta começava e, no setor de comunicação a baixa demanda daquele dia permitia inúmeras conversas paralelas e revisão de conteúdos já aprovados, variações de peças já usadas em outros anos para servirem de gaveta ou um mero referencial. Desde a saída de Borges, Bethina assumiu a chefia do setor e, na estante ao fundo da sala podiam se ver alguns troféus em premiações de comunicação, ainda faltava o peixe grande que viria da Riviera Francesa, porém todos ali sabiam que ele viria, mais cedo ou mais tarde.


Dois andares acima Pablo, um dos responsáveis por manter o site da Lótus funcionando bebericava uma caneca de café pensativo. Haviam dias que ponderava se deveria dar esse passo, esse salto no escuro. Lembrou-se de um dos seus personagens de jogos preferido, onde ele subia as torres mais altas e pulava em uma carroça com feno, esse era o salto de fé. Ajustando os óculos que insistiam em correr pelo nariz o jovem de cabelos escuros, pele branca, corpo com IMC dentro do que se tem por normalidade e vinte e três anos de idade abriu uma tela extra além do compilador java que denunciava dezenas de erros no código, menos mal, antes eram centenas.


Com dois cliques em um ícone logo abaixo da lixeira ele abriu o software de envio de mensagens para qualquer pessoa na empresa, tudo de forma criptografada e usando os próprios servidores da Lótus como motor, nada estava na internet dentro desse programa. Correu a lista de possíveis nomes. Ana, Beatriz, Bethina, Carlos, Eduardo, Fernanda, Freya. Parou. Um clique decidido em cima do nome da redatora senior do setor de comunicação. Digitou uma frase e ponderou se devia enviar. Um alt+tab e a compilação ainda estava em curso tinha mais alguns minutos de espera que poderiam ser buscando mais café ou dando o salto de fé.


- Dona Fernanda - Optou pelo salto - Posso falar com a senhora?


O silêncio o sufocou mais que o dia em que, por uma miserável ponto-e-vírgula toda a parte responsiva do site parou de funcionar. Foram os dezesseis minutos mais tensos de sua vida até agora. Online. Digitando.


- Claro - Do outro lado da tela Fernanda tentava entender o que alguém do T.I. queria com ela, será que tinha clicado em algo que não devia? - Pois não? - Um instante se passou, Pablo, agora com a respiração mais cadenciada pousou as mãos sobre o teclado, seu ímpeto foi congelado - Mas antes - Parada cardíaca do jovem - Sem essa de senhora, não sou tão velha assim haha.


O suor frio correu a espinha por todas as suas vertebras mesmo com o ar condicionado ligado. "Respira fundo, vai, agora você consegue." pensava enquanto as mãos voltavam para o teclado.


- Gostaria de conversar com você, se possível pessoalmente... tem como?


- Tem sim - Fernanda franziu o cenho pensando na frase de Bethina que um dia a curiosidade a levaria à ruína, claro que ela dizia isso em um contexto do eterno jogo de RPG que nunca terminavam - Onde?


- Aqui na T.I. tem muita gente.


- Aqui na comunicação só tem gente haha - A redatora ajustou uma mecha de cabelo atrás da orelha percebendo que poderia ser algo grave - Eu conheço um lugar... você tem como sair agora?


- Tenho, me dê cinco minutos.


- Perfeito, te encontro na porta do seu setor.


- Beleza.


Pela cabeça de Fernanda passou um milhão de coisas, desde um admirador secreto até alguém que descobriu o segredo da Rafaela e queria saber o que fazer com a informação, enquanto subia os dois andares pelo elevador pensava porque ela, em meio a dezenas de funcionários, tinha sido a escolhida. Talvez porque fosse uma das funcionárias mais velhas da empresa, quase... seis anos. Bastante tempo. Quando parou na porta do T.I. podia sentir o ar gelado vazando por baixo da porta e pensou que ali deveria estar metade de conta de luz do prédio inteiro. A porta se abriu e o polo norte vazou um instante.


- O-obrigado por vir - Pablo tinha o olhar caído - Dona Fernanda.


- Esquece essa coisa de dona - Ela tocou sutilmente o ombro do rapaz - Me chama só de Fernanda.


- Ta bem... Don.. Fernanda.


- Melhor assim - A redatora sorriu - Vem, conheço um lugar ótimo para conversar, sem distrações.


- Onde?


- Lá em cima.


- Em uma das salas de reunião da presidência? - O jovem acompanhava Fernanda que trajava uma saia longa que lhe deixava apenas os pés fora do tecido e, na parte de cima uma blusa com estampa desbotada. - Mas... lá não é... só da presidência?


- Não, é mais pra cima - Do bolso da saia Fernanda tirou a chave que tinha cópia faziam seis longos anos - É no terraço.


- No terraço? - Pablo estranhou que Fernanda tivesse a chave, porém tinha ouvido falar da horta que havia ali. 


Tão logo a porta foi aberta a brisa jogou os cabelos de Fernanda para trás como uma onda. Já pablo, com camisa social, calça jeans e cabelo cheio de gel pouco foi afetado pelo vento. Um pequeno corredor entre painéis solares e uma horta com alface, couve, morangos além de temperos diversos culminava em um par de bancos com vista para a área não tão povoada da Metrópole. Sentaram-se.


- Então, o que queria conversar?


- Eu... - Pablo não sabia por onde começar, tinha ensaiado essa conversa tantas vezes na sua mente que agora estava procurando a palavra, era como se o seu código-fonte tivesse um erro crasso e não mostrasse nem mesmo um hello world. Respirou fundo uma, duas, na terceira a compilação da sua linguagem funcionou - Desculpa falar assim... Mas, desde que descobri que a senhora... digo, você é uma mulher trans eu...


- Tem curiosidade em saber como é? - Fernanda sentiu um pouco de raiva do rapaz na sua frente, era mais um nerd curioso querendo saber se ela tinha cortado o pau fora, se sentia prazer, se toparia alguma coisa a mais, ela ponderou sair e cantar a pedra à Freya que tomaria a decisão em demitir ou não - É sério, me fez sair do meu posto por uma curiosidade adolescente?


- Não não, calma. - Pablo tentava compilar o código da fala o mais rápido que conseguia - Aqui - Ele pegou o celular, desbloqueou e abri as fotos - Eu às vezes gosto de me montar como menina e...


- ... E você acha que pode ser trans? - Fernanda respirou profundamente mal olhando a tela do pequeno aparelho, não era a primeira vez que via algo assim - Sugiro você procurar uma psicóloga, o plano de saúde da firma tem umas ótimas.


- Não, não é nada disso - O rapaz tentava controlar sua oxigenação para que pudesse ter clareza no pensamento - Eu gosto de ser homem, eu só queria... sei lá, uma amiga.


- Estou ouvindo - Fernanda baixou a guarda, ele parecia com ela, anos atrás - O que exatamente espera?


- Eu moro em uma quitinete a meia cidade daqui, vim do interior do estado trabalhar na Lótus, mesmo morando aqui faz alguns anos eu não tenho amigos... - O olhar de Pablo se iluminou - Porém quando eu soube da sua história, da sua jornada eu fiquei... impactado.


- Impactado como?


- Bem... - Um sorriso se desenhou no canto dos lábios dele - ... Eu li o seu livro e gosto da ideia ser crossdresser, porém sozinho não tem graça... 


- Bom, você tem a internet inteira né?


- A internet é legal, mas falta... humanidade.


- Saquei. - Fernanda ainda tentava pensar o que faria por ele. - Mas assim... beleza, a gente é amigo e aí? Você vai querer que eu vá na sua casa e fique te vendo se montar?


- B-bem - A ideia de Pablo em linhas gerais era essa, no entanto lembrou do Altaïr e resolveu dar seu segundo salto de fé do dia - Eu acabei vendo nas suas redes que você e a dona Bethina vão em eventos de anime... cosplay e essas coisas...


- E você quer uma carona?


- É... sei lá, algo assim...


- Alguém junto para te dar coragem de sair do armário.


- Tipo isso, mas sem a parte do armário, eu estou de boa com minha sexualidade...


- Então o problema são só as roupas?


- São, como vim de uma cidade muito pequena eu fico encucado com isso, fico achando que é errado e...


- Tudo bem - Fernanda entendeu o ponto dele, se tivesse tido esse apoio desde o começo talvez as coisas tivessem sido menos traumáticas e demoradas - Só que eu vou precisar falar com a Bê primeiro... mas ela é... de boa... que dia é hoje...


- Seis...?


- Ah, perfeito, a TPM dela já foi, fica mais fácil de domar a fera.


- Então...?


- Eu vou te ajudar, vou testar meus dotes de maquiadora - Fernanda, enfim, olhou as fotos com mais esmero - E vou te passar o contato de uma mina que faz roupas sob medida, mas relaxa, ela é bem discreta e não é careira... foi ela que fez meu vestido de noiva inclusive.


- Sério? - Pablo tinha os olhos marejados por trás dos óculos - Só...


- Eu sei, não vou falar com ninguém, só com a Bê... me adiciona aí na sua agenda que, durante o final de semana, quem sabe, marcamos algo.


Se abraçaram enquanto Pablo voltava a agradecer Fernanda. Caminharam sendo brindados pela brisa Leste-Oeste que, ela jurava, sentir o cheiro do mar vindo junto do vento. Antes de passar pela porta ela pegou um galho de manjericão, molho de tomate ficava infinitamente mais saboroso com ele.


Ao fim da pequena escada que levava do andar da sala da presidência ao terraço se despediram. O jovem entrou no elevador enquanto Freya, no fundo do corredor olhava fixamente para Fernanda que a cumprimentou com um aceno de cabeça. A secretária leal de Rafaela fez um gesto como quem diz que está de olho. A redatora fez uma careta e mostrou a língua relembrando o que já tinham vivido juntas. Quer dizer, Fernando viveu, Fernanda meio que só assistiu. Por oito andares ela pensou em fazer uma sessão com Rafaela, Freya, Vali e aquele outro rapaz que aparecia esporadicamente na cobertura. Será que Bethina toparia? Soltou o ar pesadamente voltando ao setor de comunicação que estava idêntico a pouco menos de uma hora atrás. Menos mal.