domingo, 30 de junho de 2024

DDD

Enfim consegui emprestada a tecnologia da Jazz Corp. que me permite falar com uma versão minha do passado, ela usou para falar com sua versão de cinco anos atrás, porém eu reconfigurei a máquina e entrei em contato com minha versão de mais de vinte anos atrás. Por estar ligando para o ano de 1998 não tem como usar vídeo chamada nem e-mail... Por isso apelei para a boa e velha ligação telefônica. A data atual é algum dia entre abril e junho. Não consegui definir um dia específico, só o dia de um acontecimento e um horário aproximado. Silêncio, ta chamando.

- Alô? - Eu tinha me esquecido como minha voz era mais aguda quando era mais nova.

- Alô, tudo bem?

- Tudo... Quem ta falando?

- Antes de responder essa pergunta eu quero te pedir que espere eu terminar de falar, não desligue, pode ser?

- Pode... É trote né? É o primo do Ronaldo né?

- Não, não é trote - Suspirei, merda, eu devia ter planejado isso melhor antes de ter feito essa ligação, ter feito um briefing, uma cadeia de perguntas e afirmações... Bom, o negócio é improvisar - Vai soar estranho, mas... Eu sou você, do futuro.

- Que? - A voz parecia incrédula, não julgo, me conheço o suficiente pra desconfiar de tudo - Vou desligar.

- Espera, espera... Eu sei de coisas sobre você que mais ninguém sabe.

- Prove.

- Você odeia a fase 5 do Duke Nukem porque ela é um labirinto e você odeia labirintos, sempre odiou a sensação de desorientação, por isso sempre aprendeu a criar pontos de referência.

- T-tá... - A voz dele estava hesitante - C-como você...

- Eu sei porque eu sou você, sei que do lado do telefone tem um colchão dobrado, senta nele, vamos conversar um pouco...

- Eu... É... E... Quando você ta? Tipo o ano.

- 2024 - Acho que consegui, respirei fundo, consegui a abertura - Pois é, o mundo não acabou nos anos 2000 e o bug do milênio não afetou quase nada, teve o caso de um hospital que foram registrar no sistema e a criança nasceu em 1900, mas, fora isso, não teve nada de relevante.

Ele riu enquanto o ouvia sentar. O chão daquela casa de madeira rangia e aquele telefone branco tinha espaço para ser pego e posto ao lado do tal colchão que ouvi ele sentar. Não podia perder muito tempo porque sabia que, por mais que a tecnologia da Jazz Corp. fosse estável não sustentava a ligação com o passado tão longínquo por muito tempo.

- Caralho... - Ele suspirou - E como você... Eu... Nós estamos?

- Olha... Não vou mentir, a gente não anda muito bem, mas nada que não possa ser remediado, algumas coisas a curto prazo e outras a médio... Mas vivi... Ou melhor nós vivemos muita coisa legal, conhecemos muita gente, perdemos o contato com muitas pessoas que pro seu eu de agora é importante, doeu, mas foi para o melhor, o futuro mostrou que elas não eram tão boas pessoas... Além disso moramos muitos anos bem perto do mar.

- E... Casamos? Digo - Tinha certeza dessa pergunta tanto quanto a de que nós dois ruborizamos com ela - A Ariadne casou com a gente...?

- É... Não, na verdade depois do Ensino Médio você nem vai mais morar aí.

- Como assim?

- Eu tenho pouco tempo na ligação... A tecnologia que estou usando ainda não sustenta longas ligações, ainda mais com um passado tão remoto.

- Mas aí não é só ligar de novo?

- Em teoria sim, só que o quê você acha que é uma ligação longa na verdade está durando alguns segundos e, depois que desligar, você não vai lembrar de praticamente nada de nossa conversa, talvez ache que o que viveu é sua criatividade... Porque cara, você é muito criativa, sua imaginação é foda.

- Eu... Obrigad... Espera - Merda, um ato falho - Você disse "criativa"?

- É... Eu sei do seu desejo de ter um feitiço, algo pra se transformar nas modelos da revista só pra sentir as roupas, as poses... poder ter aquela sensação... Aliás - Hora de gastar a melhor carta - Liguei hoje justamente por ser um dia diferente do seu habitual, eu sei o quê você acabou de fazer e, antes de tente negar eu quero te dizer que ta tudo bem ta?

- O... O quê eu fiz? - Típica atitude minha: negar até o fim - O quê você acha que eu fiz?

- Você acordou mais cedo - Um sinal de interferência cortou um pouco o som - E Foi ver o guarda-roupas dos seus pais, esses dias você viu algo lá que te despertou uma curiosidade diferente, te deu a fagulha de um novo desejo, o toque do tecido na ponta dos dedos foi gostoso né?

- Foi... - O tom culposo dele era pesado, quase uma confissão dum crime - Mas é errado...

- Não, não é errado, é o quê você é.

- Mas e o quê vão falar de mim se souberem que eu...

- ... Que você vestiu uma saia, se olhou no espelho e sorriu?

- Não sei se gosto dessa conversa...

- Eu sei que tudo isso é confuso hoje, que você se sente sozinho por não ter com quem conversar e eu queria poder te dizer que as coisas vão melhorar daqui pra frente... Mas vou ser sincera e dizer que não vai - Suspirei pesadamente - A gente vai passar muitos problemas antes de que qualquer tipo de ajuda possa existir ou qualquer apoio possa aparecer...

- V-você ligou para me dar noticias ruins?

- Não é esse o ponto... Eu só quero ser sincera com voc... Digo, comigo pra que você esteja preparado pro que está por vir - Um latido ao fundo, minha primeira cachorrinha, reconheceria aquele ganido de longe - E que tudo isso que vai acontecer vai te transformar em uma pessoa melhor...

- Não sei o que pensar.

- Ta tudo bem, vou te dizer que, de uma forma torta, mas tudo vai ficar até que bem... - Outro chiado na ligação e o cheiro de plástico derretendo começou a aguçar minhas narinas - Eu não tenho muito mais tempo e, por isso vou te falar algo que, agora, não vai fazer muito sentido...

- Ta... Ta bem.

- Acredite em você, vai acontecer muita merda, muita gente vai sair de nossa vida e algumas outras vão aparecer e vão ser ótimas e vão ser o apoio que você precisa pra se sentir feliz, porque eu sei que esse teu coraçãozinho vive apertado, desejando ser o que você acha que não tem como ser, mas, num futuro... Vai ser.

- O que quer dizer com isso?

- Pode ser que o feitiço que você tanto desejou ser real... Pode ser que ele possa existir realmente.

- Pode??? - A animação na voz voltou, pelo visto eu era bipolar desde aquela época - Como?

- No futuro você vai conhecer uma pessoa que vai te... An... empurrar a comprar uma saia sua, só sua, nada mais de usar a da nossa mãe escondida... O tamanho pode ser que não seja o ideal, mas vai te fazer, me fazer sorrir de novo como você sorriu agora a pouco com aquela saia da sua... Nossa mãe.

- Quanto no futuro? O quê vai acontecer depo - Um ruído cortou a voz - Alô? Alô??

- Meu equipamento está superaquecendo, mas quero te dizer pra sempre acreditar em você, ser fiel ao que você acredita e deixando abertura pra acreditar em coisas novas... Ah e nunca pare de escrever, você escreve bem pra caralh - Um ruído alto atravessou a ligação, hora de começar a finalizar - Vai demorar um tempo até você aceitar e entender tudo isso que estou dizendo... Na real vai demorar anos, mas quando começar a entender vai conseguir se aceitar como a linda mulher que nasceu pra ser... Eu... - Hesitei um instante - ainda não cheguei lá, mas, sinto que entrei nesse processo e, até agora, tem sido um caminho de umas descobertas internas tão lindas que... Apesar de não aparentar externamente que estávamos avançadas, cá dentro estamos nos aprontando para os próximos passos...

- E... Eu... - A respiração ofegante e a pausa denunciava a emoção - E... Por que agora? Tipo... Por que demorar tanto tempo? Por que eu não comecei isso... Sei lá, hoje?

- Essa é a pergunta mais foda que eu tento responder todos os dias, do por que esperar tanto tempo... Porém acho que tudo acaba acontecendo no tempo certo - Essa era uma resposta que eu me dava toda hora, como se fosse totalmente convincente, mas não era, no entanto por agora eu não preciso que meu eu-do-passado saiba de todo o peso das dúvidas e dores n'alma que ele vai sentir nos próximos anos, melhor dar uma analogia que faça sentido - Tipo os gols do Marcelinho batendo falta... - Assim como os jogos no computador, o futebol, mais especificamente o Corinthians, foram, e ainda são, um lugar de consolo, uma quase fuga da realidade que me ajuda a segurar as pontas até aqui - Quando menos se espera ele bate e faz aquele golaço...

- Entendi... - A respiração dele estava mais calma - Acho.

- Meu tempo está acabando... Queria poder te falar tanta coisa... Mas o quê eu posso te dizer é que vai passar e a gente, apesar tudo, vai sobreviver e vai fazer o feitiço funcionar... Nunca duvide disso, Lu... Te amo.

- Lu...? Eu... - A ligação começou a falhar mais - Alô? Alô? Al...

Um som metálico atravessou nossas vozes e o silêncio se fez junto com o cheiro de queimado. A tecnologia superaqueceu e derreteu a tomada. Preciso trocar a tomada e devolver tudo pra Jazz Corp. Suspirei enrolando o fio. Espero que meu eu entenda. Levantei para colocar tudo na mochila. Ao passar na frente do espelho com o cabelo solto parei um instante e o espelho me sorriu. Acho que minha versão do passado entendeu a mensagem. Arrumei uma mecha de cabelo atrás da orelha e segui... Merda, esqueci de falar das bitcoins.