terça-feira, 8 de outubro de 2019

CdF: Terapia

Ao chegar no consultório hoje me dei conta de que fazia exatamente um mês que eu não vinha à terapia. Primeiro foi um cancelamento por causa de urgência que nunca foi reposto, depois a doutora tirou duas semanas pra ir em um simpósio, congresso ou coisa assim e, semana passada, fui eu que faltei por causa de uma luxação. Nossa. E revendo mentalmente tudo que aconteceu parece que uma sessão seria pouca.

- Fernando - a recepcionista me chamou pelo nome - Pode entrar.

- Obrigado!

Já conhecia o caminho, quase um ano vindo aqui toda sexta-feira depois do trabalho, o tapete característico na porta. Soltei os ombros, respirei fundo e dei duas batidas suaves já abrindo e entrando. Decididamente a doutora nunca foi de cerimônias, pelo menos não comigo. Até torcíamos pro mesmo time. Se eu tivesse tido um apoio assim desde a infância certamente metade dos meus fantasmas jamais teriam surgido. Se bem que... foram importantes, apesar do sofrimento que causaram.

- Fernandes! - Ela saiu de trás da mesa e veio ao meu encontro me abraçando - Saudade de você! Como está?

- Saudade também - Correspondi ao abraço, ela já não era mais só minha terapeuta, era minha amiga, pelo menos era o que transparecia - Me-ni-na, aconteceu tanta coisa nesse mês que olha...

- Senta aí, vamos conversar! Aliás, antes... - Abraço desfeito, ela foi para a sua cadeira e eu fui pra minha - Tá com fome? Você é meu último paciente hoje e esse final de semana é do Thomas ficar com a Bia... então, sem hora pra chegar em casa!

- Quase falei um "coisa boa" - Rimos - Mas eu aceito sim - Thomas era o ex-marido e Beatrice a filha do casal, que tinha onze anos - Ajudo até a pagar.

- Mas aí a coisa ficou boa! O que vai querer?

- Ah, publicitários adoram pizza...

- Sério? Sempre achei que fosse um esteriótipo.

- E é, mas eu adoro mesmo.

- Beleza... vou pedir de calabresa e uma de chocolate com morango pra sobremesa... - ela me viu pegar o cartão - e deixa que eu pago, pela sua cara já sei que temos longas histórias! Então, manda bala!

- Bom... vejamos - Me levantei e caminhei até o sofá que tinha numa das paredes do consultório - Eu conheci alguém...

- A moça da empresa? - Ela checou as anotações - Bethina com "TH" né?

- Isso... então, lembra que semana passada eu torci o pé? Então, ela foi lá em casa cuidar de mim e tals e rolou.

- Aff - Ela fez uma cara de tédio - Conta tudo, não me esconda nada!

- Tá bem - Respirei fundo - Ela foi lá em casa, jantamos, bebemos um pouco e transamos, foi... como eu posso dizer... mágico.

- Gostei dessa palavra - Era nítido que a doutora grifava a palavra - E o que mais?

- Bom, antes da gente ir pros finalmentes aconteceu uma coisa - Bateram na porta, era o entregador das pizzas da pizzaria do outro lado da rua - Rápido hem.

- Muito e ali é a melhor da região - Sem esperar nem nada ela já tomou uma fatia nas mãos e mandou que eu me servisse - E que coisa aconteceu antes de vocês transarem de forma mágica?

- Como tá esfriando eu resolvi lavar a camisola pra guardar limpinha, só que nisso eu deixei secando na lavanderia e, bem... Bethina viu.

- Puta merda, e aí?

- Aí o redator publicitário aqui inventou uma história de que tinha lavado roupa para uma vizinha e tals e não é que colou?

- Fernando... o que falamos sobre esconder?

- Eu sei, eu sei, isso foi uma reação natural, eu não controlei, quando eu vi já tinha dito e vida que segue, ela colocou a camisola e ficou linda... disse que achou muito grande e eu mantive a história de que a vizinha era mais ou menos da minha largura e, no fim, rolou, transamos... de forma mágica.

- Certo - A doutora serviu o refrigerante - E agora vocês tão namorando?

- Não, ainda não! - Tomei um gole da bebida pegando mais uma fatia - Teve o dia seguinte!

- Sei - Ela também se serviu de mais uma fatia - Vocês transaram magicamente de novo?

- Antes fosse! Enquanto eu dormia por causa do remédio pra dor, vinho e magia ela fuçou o apartamento inteiro e, advinha, achou meu guarda-roupa CD...

- Puta merda! - Ela engasgou, tinha horas que eu esquecia completamente que ela era uma das psicólogas mais caras e renomadas do país, mas no perfil dela dizia que ela se adaptava a cada paciente, se a pessoa prezava a norma culta ela virava uma catedrática, se a pessoa era mais simples ela não tinha receio de falar em linguagem mais popular, fico curioso como ela tratava da Rafaela, uma hora eu pergunto  - E depois?

- Depois ela me acusou de ter mentido pra ela, que eu tinha um relacionamento e não queria assumir e tudo mais! Foi mó merda na hora, quase joguei tudo fora... só que, como que eu vou jogar fora o que eu sou? Não posso jogar fora a minha verdade.

- Isso mesmo! Mandou bem... mas, por favor, me fala que você abriu o jogo com ela...

- Claro, segunda-feira chamei ela lá em casa e não só falei como mostrei, ao vivo!

- Wow! - Ela me estendeu a mão, correspondi - Parabéns! E ela?

- Obrigado, tenho uma ótima terapeuta - Fiz caretinha - Ela reagiu como qualquer um reagiria né? Ficou em choque, sem saber o que dizer... ah, nesse meio tempo a gente confessou atração!

- Porra, essa história ta melhor que a maioria das séries da netflix hem! Devia escrever e vender pra eles, faria sucesso, certeza!

- Maybe a day - Suspirei ponderando a ideia - No dia seguinte ela não veio trabalhar e minha caixinha de maquinações aqui despirocou né... aí na quarta cobrei um favor do Borges e peguei o endereço dela e fui ver qual foi, o porteiro disse que ela não aparecia ali desde terça de manhã... véi, foram os piores momentos, porque pensei mil merdas, mas voltei pra casa pra tentar recolocar a cabeça no lugar...

- E colocou? Quero dizer... não teve certos pensamentos de novo né?

- Não deu tempo - Peguei o celular - Quarta a noite recebi essa mensagem - Deixei que ela lesse, claro que já tínhamos conversado mais, mas o resto era só nosso. - Aí eu fiquei num misto de sorrir feito idiota e chorar.

- ... um choro de alegria, isso merece um brinde! - Brindamos - Se você não se importar e ela quiser... pode trazer ela aqui semana que vem? Quero ter um particular com a moça.

- Virou minha mãe é? - Sorri, mas a doutora ficou séria - Trago sim.

- Tem coisas que eu acho que você não vai conseguir dizer direito pra ela... passos que, imagino que ainda queira tomar, que agora tem mais uma pessoa na caminhada.

- Verdade...

- Mas hey, parou de introspecção, 'bora sorrir e... caralho, quase dez horas da noite, vamos antes que tranquem a gente aqui dentro!

- Vamos sim - Foi uma sessão de duas horas regada a pizza e coca-cola - Obrigado.

- Pelo que? Ah, já sei - ela me deu a pizza doce - Pela pizza né... - De repente fiquei pensativo, ela me abraçou - Relaxa, vai ficar tudo bem, eu posso te ajudar a explicar pra moça tudo... quer dizer, ainda tá com os planos né?

- Tô sim, não posso fugir da minha verdade!

- Puta merda, te doutrinei muito bem, que orgulho!

Nos despedimos e rumei para casa. Amanhã tinha que acordar cedo, pegar um carro do aplicativo e ir buscar Bethina, tínhamos tanto para conversar e tantos pingos nos is para colocar que acho que o final de semana não seria suficiente.

domingo, 6 de outubro de 2019

CdF - Notícias

Decididamente eu não ia conseguir dormir. Tomei um banho gelado e, aos primeiros raios de sol que trespassavam a janela, peguei a bicicleta e fui para a empresa. Quer dizer, sentei na praça em frente e fiquei esperando o horário ouvindo o noticiário no rádio. Perdido entre tantos pensamentos não prestava atenção a nada. Troca de tiros num bairro. Bethina. Ações em queda. Bethina. Sol. Bethina. Joguei a cabeça pra trás.

- Merda... - Pegue o celular, devia mandar mensagem, mas, ao mesmo tempo queria deixar o tempo dizer - ... eu não devia ter feito isso.

Agora era tarde demais pra fazer qualquer coisa. Tinha que dar tempo pra ela digerir tudo. O foda seria rever ela daqui a pouco. Devia ter inventado alguma doença, gripe, rinite, dengue, surto psicótico... qualquer coisa que pudesse ficar em casa, escondido. Não. Não podia mais fugir do que eu queria, do que eu sou. Não posso mais negar isso, não posso esconder. Ou as pessoas aceitam e encaram com naturalidade ou, no mínimo, respeitam. Ainda mais depois de tudo que tinha descoberto na terapia... tanta coisa. Essa semana a terapia seria foda.

- Caiu da cama, rapaz? - A voz de Borges me tirou do meu mar de pensamentos - Bom dia!

- Buenas... - Odiava quem dizia bom dia tão cedo - Ontem fiquei sem internet aí fui dormir cedo, quando acordei faltava pouco pra acordar... resolvi vir mais cedo.

- Tá certo - Ele sentou do meu lado - Obrigado pelo quebra-galhos ontem, tô te devendo uma!

- Opa, que isso.

- Sério, se tiver alguma forma de pagar... - cogitei pedir uns dias de folga, mas não, não cabia mais em mim correr ou até mesmo seguir fugindo e me escondendo - ... bora, vou te pagar um café!

Fomos na padaria que tinha na rua na lateral da empresa. Cheia de engravatados com pastas dignas de filmes de espionagem. Seria prático uma troca em um ambiente desses. Externamente respondia Borges e pensava em quantos desses executivos tinham vidas tão secretas quanto a minha. E a merda de manter ela secreta me fazia pensar muito em quem eu era e quem eu queria ser.

Desjejum tomado seguimos para a empresa falando sobre o ataque de ontem, sobre futebol, a empresa. Ótimos assuntos pra me distrair, espairecer a cabeça e me ligar ao que precisava fazer na empresa e, na hora do almoço, falar com Bethina. Me sentei, liguei o computador, respirei fundo e comecei a trabalhar. O relógio ia passando e nada dela aparecer. Em uma ida ao banheiro não aguentei mais. Puxei o celular e disparei a mensagem.

"Olá, bom dia... tudo bem?"

Esperei alguns minutos e ela não recebeu. Nada. Voltei à minha mesa. Nada. Liguei o automático, ainda era terça-feira e tinham muitos conteúdos para recolocar no site. A hora do almoço chegou e nada. Nenhuma resposta. Nem mesmo recebeu. Arrisquei tudo. Liguei. Chamou, chamou, chamou, caixa postal. Okay, agora eu estava preocupado. Se bem que com a chuva de ontem eu não duvidaria ela estar de cama, misturado com o choque de ontem... se a minha cabeça ainda estava confusa com tudo isso imagina a dela. Do nada descobrir que o homem que ela ama curte se vestir de mulher. E a merda maior é que ela não sabia o todo. 

E o dia passou voando, sem sinal dela. Voltei pra casa e fiquei no escuro pensando o que havia conhecido. Se amanhã ela não aparecesse eu já sabia como cobrar o favor do Borges. Assim fui comer alguma coisa e capotei. Dormi toda a noite atrasada e mais um pouco. O despertar do dia seguinte foi ótimo. Eu tinha uma dívida pra cobrar e pouco trabalho pra fazer. Todo o conteúdo produzido no dia anterior iria para parte do conselho aprovar. Tem horas que acho que uma parte da empresa não confia nos seus funcionários. E lá se ia a quarta-feira, antes de ir embora resolvi cobrar o favor.

- Borges... a Bethina deu algum sinal de vida?

- Pior que não, Fernando - Ele checou o celular, deu pra ver o nome da Rafaela na tela - Tentei ligar e ninguém atendeu...

- Posso cobrar o favor? - Ele sorriu de canto - Eu quero o endereço dela, ir lá ver se tá tudo bem e tals

- Eita, bem que eu tava vendo que vocês dois andavam grudadinhos - Ele puxou o teclado acessando o setor de RH remotamente e imprimindo uma folha com o endereço - Também estou preocupado... espero que ela esteja bem!

Papel em mãos programei no GPS do celular e parti em ritmo acelerado. Ela, realmente, morava na mesma rua, mas não três quarteirões e sim oito. Ela era de humanas, realmente. Ao chegar em um pequeno prédio com seis andares fui logo tocando o interfone do apartamento dela. Nada. Nenhuma resposta. Perguntei na portaria. Nenhum sinal dela desde terça de manhã. Puta merda. Voltei pra casa sem conseguir ter pensamentos ruins. Ao entrar em casa me joguei no sofá. Uma mensagem. O coração foi à boca. 

"Oi Fê, desculpa o sumiço... fui parar no hospital pra um redesign. Tirar os apêndices e tals, sabe como é né? haha

Brincadeiras a parte: tive uma crise de apendicite, passei mal voltando pra casa, achei que fosse uma queda de pressão e... enfim. Vou receber alta no sábado de manhã. Vem me buscar? Beijo."

Foi impossível conter uma lágrima junto de um sorriso. Agradeci aos céus e a mensagem. Essa noite dormiria tranquilo. Obrigado, céus.