Ao chegar no consultório hoje me dei conta de que fazia exatamente um mês que eu não vinha à terapia. Primeiro foi um cancelamento por causa de urgência que nunca foi reposto, depois a doutora tirou duas semanas pra ir em um simpósio, congresso ou coisa assim e, semana passada, fui eu que faltei por causa de uma luxação. Nossa. E revendo mentalmente tudo que aconteceu parece que uma sessão seria pouca.
- Fernando - a recepcionista me chamou pelo nome - Pode entrar.
- Obrigado!
Já conhecia o caminho, quase um ano vindo aqui toda sexta-feira depois do trabalho, o tapete característico na porta. Soltei os ombros, respirei fundo e dei duas batidas suaves já abrindo e entrando. Decididamente a doutora nunca foi de cerimônias, pelo menos não comigo. Até torcíamos pro mesmo time. Se eu tivesse tido um apoio assim desde a infância certamente metade dos meus fantasmas jamais teriam surgido. Se bem que... foram importantes, apesar do sofrimento que causaram.
- Fernandes! - Ela saiu de trás da mesa e veio ao meu encontro me abraçando - Saudade de você! Como está?
- Saudade também - Correspondi ao abraço, ela já não era mais só minha terapeuta, era minha amiga, pelo menos era o que transparecia - Me-ni-na, aconteceu tanta coisa nesse mês que olha...
- Senta aí, vamos conversar! Aliás, antes... - Abraço desfeito, ela foi para a sua cadeira e eu fui pra minha - Tá com fome? Você é meu último paciente hoje e esse final de semana é do Thomas ficar com a Bia... então, sem hora pra chegar em casa!
- Quase falei um "coisa boa" - Rimos - Mas eu aceito sim - Thomas era o ex-marido e Beatrice a filha do casal, que tinha onze anos - Ajudo até a pagar.
- Mas aí a coisa ficou boa! O que vai querer?
- Ah, publicitários adoram pizza...
- Sério? Sempre achei que fosse um esteriótipo.
- E é, mas eu adoro mesmo.
- Beleza... vou pedir de calabresa e uma de chocolate com morango pra sobremesa... - ela me viu pegar o cartão - e deixa que eu pago, pela sua cara já sei que temos longas histórias! Então, manda bala!
- Bom... vejamos - Me levantei e caminhei até o sofá que tinha numa das paredes do consultório - Eu conheci alguém...
- A moça da empresa? - Ela checou as anotações - Bethina com "TH" né?
- Isso... então, lembra que semana passada eu torci o pé? Então, ela foi lá em casa cuidar de mim e tals e rolou.
- Aff - Ela fez uma cara de tédio - Conta tudo, não me esconda nada!
- Tá bem - Respirei fundo - Ela foi lá em casa, jantamos, bebemos um pouco e transamos, foi... como eu posso dizer... mágico.
- Gostei dessa palavra - Era nítido que a doutora grifava a palavra - E o que mais?
- Bom, antes da gente ir pros finalmentes aconteceu uma coisa - Bateram na porta, era o entregador das pizzas da pizzaria do outro lado da rua - Rápido hem.
- Muito e ali é a melhor da região - Sem esperar nem nada ela já tomou uma fatia nas mãos e mandou que eu me servisse - E que coisa aconteceu antes de vocês transarem de forma mágica?
- Como tá esfriando eu resolvi lavar a camisola pra guardar limpinha, só que nisso eu deixei secando na lavanderia e, bem... Bethina viu.
- Puta merda, e aí?
- Aí o redator publicitário aqui inventou uma história de que tinha lavado roupa para uma vizinha e tals e não é que colou?
- Fernando... o que falamos sobre esconder?
- Eu sei, eu sei, isso foi uma reação natural, eu não controlei, quando eu vi já tinha dito e vida que segue, ela colocou a camisola e ficou linda... disse que achou muito grande e eu mantive a história de que a vizinha era mais ou menos da minha largura e, no fim, rolou, transamos... de forma mágica.
- Certo - A doutora serviu o refrigerante - E agora vocês tão namorando?
- Não, ainda não! - Tomei um gole da bebida pegando mais uma fatia - Teve o dia seguinte!
- Sei - Ela também se serviu de mais uma fatia - Vocês transaram magicamente de novo?
- Antes fosse! Enquanto eu dormia por causa do remédio pra dor, vinho e magia ela fuçou o apartamento inteiro e, advinha, achou meu guarda-roupa CD...
- Puta merda! - Ela engasgou, tinha horas que eu esquecia completamente que ela era uma das psicólogas mais caras e renomadas do país, mas no perfil dela dizia que ela se adaptava a cada paciente, se a pessoa prezava a norma culta ela virava uma catedrática, se a pessoa era mais simples ela não tinha receio de falar em linguagem mais popular, fico curioso como ela tratava da Rafaela, uma hora eu pergunto - E depois?
- Depois ela me acusou de ter mentido pra ela, que eu tinha um relacionamento e não queria assumir e tudo mais! Foi mó merda na hora, quase joguei tudo fora... só que, como que eu vou jogar fora o que eu sou? Não posso jogar fora a minha verdade.
- Isso mesmo! Mandou bem... mas, por favor, me fala que você abriu o jogo com ela...
- Claro, segunda-feira chamei ela lá em casa e não só falei como mostrei, ao vivo!
- Wow! - Ela me estendeu a mão, correspondi - Parabéns! E ela?
- Obrigado, tenho uma ótima terapeuta - Fiz caretinha - Ela reagiu como qualquer um reagiria né? Ficou em choque, sem saber o que dizer... ah, nesse meio tempo a gente confessou atração!
- Porra, essa história ta melhor que a maioria das séries da netflix hem! Devia escrever e vender pra eles, faria sucesso, certeza!
- Maybe a day - Suspirei ponderando a ideia - No dia seguinte ela não veio trabalhar e minha caixinha de maquinações aqui despirocou né... aí na quarta cobrei um favor do Borges e peguei o endereço dela e fui ver qual foi, o porteiro disse que ela não aparecia ali desde terça de manhã... véi, foram os piores momentos, porque pensei mil merdas, mas voltei pra casa pra tentar recolocar a cabeça no lugar...
- E colocou? Quero dizer... não teve certos pensamentos de novo né?
- Não deu tempo - Peguei o celular - Quarta a noite recebi essa mensagem - Deixei que ela lesse, claro que já tínhamos conversado mais, mas o resto era só nosso. - Aí eu fiquei num misto de sorrir feito idiota e chorar.
- ... um choro de alegria, isso merece um brinde! - Brindamos - Se você não se importar e ela quiser... pode trazer ela aqui semana que vem? Quero ter um particular com a moça.
- Virou minha mãe é? - Sorri, mas a doutora ficou séria - Trago sim.
- Tem coisas que eu acho que você não vai conseguir dizer direito pra ela... passos que, imagino que ainda queira tomar, que agora tem mais uma pessoa na caminhada.
- Verdade...
- Mas hey, parou de introspecção, 'bora sorrir e... caralho, quase dez horas da noite, vamos antes que tranquem a gente aqui dentro!
- Vamos sim - Foi uma sessão de duas horas regada a pizza e coca-cola - Obrigado.
- Pelo que? Ah, já sei - ela me deu a pizza doce - Pela pizza né... - De repente fiquei pensativo, ela me abraçou - Relaxa, vai ficar tudo bem, eu posso te ajudar a explicar pra moça tudo... quer dizer, ainda tá com os planos né?
- Tô sim, não posso fugir da minha verdade!
- Puta merda, te doutrinei muito bem, que orgulho!
Nos despedimos e rumei para casa. Amanhã tinha que acordar cedo, pegar um carro do aplicativo e ir buscar Bethina, tínhamos tanto para conversar e tantos pingos nos is para colocar que acho que o final de semana não seria suficiente.