Decididamente eu não ia conseguir dormir. Tomei um banho gelado e, aos primeiros raios de sol que trespassavam a janela, peguei a bicicleta e fui para a empresa. Quer dizer, sentei na praça em frente e fiquei esperando o horário ouvindo o noticiário no rádio. Perdido entre tantos pensamentos não prestava atenção a nada. Troca de tiros num bairro. Bethina. Ações em queda. Bethina. Sol. Bethina. Joguei a cabeça pra trás.
- Merda... - Pegue o celular, devia mandar mensagem, mas, ao mesmo tempo queria deixar o tempo dizer - ... eu não devia ter feito isso.
Agora era tarde demais pra fazer qualquer coisa. Tinha que dar tempo pra ela digerir tudo. O foda seria rever ela daqui a pouco. Devia ter inventado alguma doença, gripe, rinite, dengue, surto psicótico... qualquer coisa que pudesse ficar em casa, escondido. Não. Não podia mais fugir do que eu queria, do que eu sou. Não posso mais negar isso, não posso esconder. Ou as pessoas aceitam e encaram com naturalidade ou, no mínimo, respeitam. Ainda mais depois de tudo que tinha descoberto na terapia... tanta coisa. Essa semana a terapia seria foda.
- Caiu da cama, rapaz? - A voz de Borges me tirou do meu mar de pensamentos - Bom dia!
- Buenas... - Odiava quem dizia bom dia tão cedo - Ontem fiquei sem internet aí fui dormir cedo, quando acordei faltava pouco pra acordar... resolvi vir mais cedo.
- Tá certo - Ele sentou do meu lado - Obrigado pelo quebra-galhos ontem, tô te devendo uma!
- Opa, que isso.
- Sério, se tiver alguma forma de pagar... - cogitei pedir uns dias de folga, mas não, não cabia mais em mim correr ou até mesmo seguir fugindo e me escondendo - ... bora, vou te pagar um café!
Fomos na padaria que tinha na rua na lateral da empresa. Cheia de engravatados com pastas dignas de filmes de espionagem. Seria prático uma troca em um ambiente desses. Externamente respondia Borges e pensava em quantos desses executivos tinham vidas tão secretas quanto a minha. E a merda de manter ela secreta me fazia pensar muito em quem eu era e quem eu queria ser.
Desjejum tomado seguimos para a empresa falando sobre o ataque de ontem, sobre futebol, a empresa. Ótimos assuntos pra me distrair, espairecer a cabeça e me ligar ao que precisava fazer na empresa e, na hora do almoço, falar com Bethina. Me sentei, liguei o computador, respirei fundo e comecei a trabalhar. O relógio ia passando e nada dela aparecer. Em uma ida ao banheiro não aguentei mais. Puxei o celular e disparei a mensagem.
"Olá, bom dia... tudo bem?"
Esperei alguns minutos e ela não recebeu. Nada. Voltei à minha mesa. Nada. Liguei o automático, ainda era terça-feira e tinham muitos conteúdos para recolocar no site. A hora do almoço chegou e nada. Nenhuma resposta. Nem mesmo recebeu. Arrisquei tudo. Liguei. Chamou, chamou, chamou, caixa postal. Okay, agora eu estava preocupado. Se bem que com a chuva de ontem eu não duvidaria ela estar de cama, misturado com o choque de ontem... se a minha cabeça ainda estava confusa com tudo isso imagina a dela. Do nada descobrir que o homem que ela ama curte se vestir de mulher. E a merda maior é que ela não sabia o todo.
E o dia passou voando, sem sinal dela. Voltei pra casa e fiquei no escuro pensando o que havia conhecido. Se amanhã ela não aparecesse eu já sabia como cobrar o favor do Borges. Assim fui comer alguma coisa e capotei. Dormi toda a noite atrasada e mais um pouco. O despertar do dia seguinte foi ótimo. Eu tinha uma dívida pra cobrar e pouco trabalho pra fazer. Todo o conteúdo produzido no dia anterior iria para parte do conselho aprovar. Tem horas que acho que uma parte da empresa não confia nos seus funcionários. E lá se ia a quarta-feira, antes de ir embora resolvi cobrar o favor.
- Borges... a Bethina deu algum sinal de vida?
- Pior que não, Fernando - Ele checou o celular, deu pra ver o nome da Rafaela na tela - Tentei ligar e ninguém atendeu...
- Posso cobrar o favor? - Ele sorriu de canto - Eu quero o endereço dela, ir lá ver se tá tudo bem e tals
- Eita, bem que eu tava vendo que vocês dois andavam grudadinhos - Ele puxou o teclado acessando o setor de RH remotamente e imprimindo uma folha com o endereço - Também estou preocupado... espero que ela esteja bem!
Papel em mãos programei no GPS do celular e parti em ritmo acelerado. Ela, realmente, morava na mesma rua, mas não três quarteirões e sim oito. Ela era de humanas, realmente. Ao chegar em um pequeno prédio com seis andares fui logo tocando o interfone do apartamento dela. Nada. Nenhuma resposta. Perguntei na portaria. Nenhum sinal dela desde terça de manhã. Puta merda. Voltei pra casa sem conseguir ter pensamentos ruins. Ao entrar em casa me joguei no sofá. Uma mensagem. O coração foi à boca.
"Oi Fê, desculpa o sumiço... fui parar no hospital pra um redesign. Tirar os apêndices e tals, sabe como é né? haha
Brincadeiras a parte: tive uma crise de apendicite, passei mal voltando pra casa, achei que fosse uma queda de pressão e... enfim. Vou receber alta no sábado de manhã. Vem me buscar? Beijo."
Brincadeiras a parte: tive uma crise de apendicite, passei mal voltando pra casa, achei que fosse uma queda de pressão e... enfim. Vou receber alta no sábado de manhã. Vem me buscar? Beijo."
Foi impossível conter uma lágrima junto de um sorriso. Agradeci aos céus e a mensagem. Essa noite dormiria tranquilo. Obrigado, céus.
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