terça-feira, 31 de dezembro de 2019

CdF: Fogos

- Eu não sabia que dava pra subir aqui - A voz de Bethina me tirou de meus devaneios acerca do ano que havia passado - A vista é linda, olha esse céu...

Ela parecia deslumbrada ao ver o céu repleto de pequenas bolas de plasma com diferentes idades e algumas que nem mesmo deveriam existir mais mas, devido a grandiosidade do universo, lá estava seu brilho chegando em ondas radioativas no espectro de luz visível.

- É bonito né? - Tinha crescido numa cidade pequena, a maioria das estrelas sumia com a poluição luminosa da Metrópole - Tem que ver longe da cidade.

- Eu imagino - Ela foi se aproximando, a iluminação aqui em cima era inexistente - Como que você tem a chave daqui?

- Pedi pro síndico, disse que queria plantar hortaliças e ele deu.

- Você sempre consegue as chaves que quer - ela segurou o riso - você já podia roubar casas... chegaria nas portas "oi, vim plantar hortaliças, me dá uma cópia da sua chave?" e te dariam.

Rimos por alguns segundos enquanto eu, com o canto do olho tentava ver a roupa dela. Meu prédio ficava acima dos prédios ao redor e longe o suficiente para não chegar luz onde estávamos, a única luz visível era da escada e da pequena lâmpada vermelha que piscava em cima do para-raios alguns metros acima de nossas cabeças.

A verdade é que, meia hora atrás, Bethina me perguntou onde era o melhor lugar para ver os fogos do ano novo. Falei que tinha as chaves do terraço e ela mandou que eu viesse que ela já subiria, provavelmente terminaria de se arrumar, mandar mensagens para parentes distantes ou até mesmo dar aquela última passada no banheiro, como bom obedecedor de regras que sou, acatei e subi. Agora eu tinha curiosidade na roupa dela e no que ela tinha nas mãos. Burro, estava com o celular no bolso. Não sei de quem foi a ideia de colocar uma lanterna no aparelho, mas era uma daquelas coisas do tipo "como ninguém pensou nisso antes?", puxei-o do bolso trazendo luz ao ambiente.

Um vestido branco, longo, com flores amarelas bordadas na altura dos joelhos, o cabelo com volume todo armado, no colo uma medalhinha que nunca tinha reparado que ela usava, nos pés a boa e velha sandália de dedos famosa. No braço esquerdo diversas pulseiras e o braço direito, tão logo viu a luz, escondeu-se atrás.

- Pode-se saber o que a senhorita está aprontando?

- Você subiu tão rápido que quase dá vontade de brincar aqui em cima... - ela tinha um sorriso perverso nos lábios - ... já deve ter ouvido falar de BDSM né?

- Claro - Confesso que um arrepio me subiu do cócs até a nuca, desceu e subiu novamente, hora de dar linha pra essa pipa - Já tive uma Senhora uma vez...

- Ah é? - Ela não pareceu surpresa - E quem foi?

- Você não conhece - hora de história pela metade - Faz uns anos tive um relacionamento com uma Senhora e tals... foi divertido enquanto durou.

- E essa Senhora tem um nome? - Ela viu que a história tinha buracos - Quero dizer... é alguém que eu conheço?

- Só se você estivesse em Belô uns três anos atrás. - Suspirei brevemente - O nome dela é Flávia, hoje mora em Londres acho... o pai dela é dono de diversas empresas e ela só fica recebendo os dividendos e tals.

- Entendi - Ela entendeu que era história não resolvida e não era ideal para o clima festivo - Na real eu tenho um pedido e uma pequena confissão pra fazer...

- Ih, lá vem - Ri um segundo enquanto notava que ela estava um pouco incomodada - Qual é o pedido?

- Que você use isso - Ela tirou o braço direito de trás revelando meu vestido branco usado no reveillon do ano passado, confesso que me pegou completamente no contra-pé - E depois a gente conversa.

Olhei em volta, não havia mais ninguém no terraço e as janelas dos arredores não era tão visível o que fazíamos aqui em cima. Mas, claro, a sensação de estar me montando em público trazia um imenso frio na barriga, o flagrante, as mil histórias prontas na cabeça, a possibilidade de quem ver filmar tudo e colocar na internet... hesitei um instante. Se o objetivo já era fazer isso um dia, que seja hoje. Tirei a camiseta, a bermuda e coloquei a peça que ficou um pouco justa na parte da barriga, acho que precisava voltar a me alimentar direito. 

Passados dois minutos eu estava dentro do vestido sentindo o vento frio entrando por baixo e me aplacando o calor nas partes íntimas. Em seguida Bethina me puxou para perto dela e fez uma maquiagem simples, mas que, com certeza, deve ter ficado infinitamente melhor que as que eu tentava fazer por conta própria.

- P-pronto... - confesso, estava morrendo de medo - C-como estou?

- Você está linda meu amor - Ela colou os lábios rosados aos meus rubros, confesso, a sensação daquele beijo que misturava os batons era algo que eu não tinha experimentado, o ato só foi interrompido pelos primeiros fogos do ano que se iniciava ali - Dizem que o que fazemos na virada do ano é o que faremos o resto do ano.

- Te beijar o ano todo? - Fiz caretinha - Parece bom...

- Só bom?

- Bom foi só o primeiro adjetivo... - hora da fuga linguística - parece maravilhoso mesmo!

- Ah bom, achei que era só bom - Ela fez um bico por um instante - Mas maravilhoso é ótimo.

- É sim - Tomei a mão na dela - Agora... o que ia confessar?

- Então - ela olhava os fogos, ao passo que eu fazia o mesmo - Lembra aquele dia que fui na sua psicologa?

- Lembro sim.

- Então... - Senti a mão dela esfriar subitamente, apertei um pouco como se buscasse passar confiança à Bethina - Ela me contou parte da sua história, dos seus traumas, seus rolês e tals

- Que fofoqueira - Merda, esse era o momento que ela iria terminar comigo ou algo assim, merda, já sentia o coração despedaçar inteiro - E...?

- E ela... na verdade eu joguei verde e colhi maduro - A mão dela ganhou calor novamente - Eu perguntei se você era algo além de crossdresser, se ia dar o passo seguinte e... bem... ela não negou - Cogitei falar algo mas ela não deixou - A verdade é que antes de te conhecer eu tinha decidido não ter mais relacionamento nenhum com homens sabe? Tive umas fitas mó complicadas, agressão e o caralho a quatro, por isso eu só estava me relacionando com meninas e já tinha definido dentro da minha cabeça que só teria um relacionamento sério com outra mulher e aí do nada você apareceu, puta cara gentil me mostrando a empresa, gente boa pra caralho, demorou um pouquinho pra tomar a iniciativa mas quando tomou teve um pouco de receio de se mostrar por inteiro e eu te entendo perfeitamente sabe? - Estávamos cara a cara, mesmo com a penumbra eu podia ver os olhos dela rasos em lágrimas - Aquele dia que saí daqui eu fui conversando com alguma entidade superior perguntando se isso era alguma pegadinha... aí meu apêndice deu ruim e não consegui te contatar nem nada e... 

- Fala logo - Ela parecia cansada de tanto falar e aproveitou minha interrupção para respirar - Pra ti, qual seria esse passo seguinte?

- Qual era o termo... - ela olhou para o lado dois segundos - ... transicionar gênero... é isso? É esse seu caminho?

- Provavelmente - Minha vez de olhar para o vazio - Sempre me senti meio errado por dentro e, quando invadi um quarto que não o meu e usei uma saia tive um clique... e acho que é por aí que devo seguir, não vai ser um caminho fácil, pelo que li os remédios tem reações bem tensas, fora as mudanças externas que não vai dar pra esconder muito tempo... A minha pergunta é: você quer, realmente, estar comigo nesses momentos?

- Quero sim - Ela me deu um beijo - Cara, eu te amo e tava em um puta conflito interno por me deixar seduzir por um homem de novo... e aí você, sem querer, resolveu isso pra mim.

- Quer dizer que você se vê mais...

- ... Como lésbica, tem anos essa história de não relacionar com homens - Ela respirou aliviada - Obrigada, Fê.

- Uau - Foi impossível conter uma lágrima fujona - Isso parece série da netflix - rimos - uma lésbica que se apaixona por um homem que, na verdade, é uma mulher trans... 

- Puta merda - Bethina também chorava copiosamente agora - Vamos escrever isso e ficar ricas!

- Feito!

E assim, entre risos, lágrimas e confissões os fogos iluminavam o céu da grande Metrópole. Não sabia porque mas agora me sentia ainda mais seguro em poder ser quem eu realmente era, dar aquele passo com a certeza que não vou querer voltar, seguir em frente, sem mais medos ou receios. Na real eu sabia o motivo dessa força toda que imbuiu meu ser e o nome dela era tão simples quanto complexo, além de ser uma das forças primordiais do universo. Essa força chama-se amor.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

CdF: Alta

Nunca o espaço entre uma sexta-feira e o sábado demorou tanto para Fernando. Passou a acreditar na relatividade do tempo, enquanto tomava uma ducha gelada para acordar notava que havia um silêncio quase irreal na Metrópole, deveriam fazer uns bons anos que ele não sabia o que era acordar cedo no final de semana, talvez só quando viajava, mas mesmo assim agora era diferente.

Tomou um gole do refrigerante de cola que tinha na geladeira, comeu uma maçã e se vestiu, chamou um carro pelo aplicativo já pensando se Bethina ficaria na sua casa ou iria para a casa dela própria. Na cabeça dele não fazia a menor diferença, tudo que queria era que ela se sentisse o mais confortável possível, até porque uma vez confessados os sentimentos e aquela quantidade inenarrável de mensagens trocadas nos últimos dois dias deveria querer dizer alguma coisa.

- Quer dizer alguma coisa - Balbuciou Fernando trancando a porta - ... não quer? - Deu uma rápida olhada para cima como se perguntasse a algum deus que estivevesse de plantão no final de semana.

Ao entrar no carro o motorista parecia pouco propenso à conversas e Fernando também não sabia se queria conversar, estava com tantas caraminholas dentro da cabeça que preferia não abrir a boca com medo de que as palavras fugissem e se nunca mais voltassem. Cada pensamento besta que acabou sorrindo de canto o que foi prontamente percebido por Astolfo, o motorista.

- Pelo sorriso está indo buscar alguém querido no hospital...

- Tá tão na cara assim?

- Ô se tá, ta exalando.

- É? - Fernando sentiu o rosto queimar - Exalando, gostei dessa palavra.

- Bonita né? - O motorista pareceu se entreter com o som dela - Dia desses entrou uma psicóloga muito falante e acabou falando essa palavra, aí fiquei com ela na cabeça... mas acho que é mais que uma palavra - Virou uma esquina, o destino estava no meio do quarteirão seguinte - é um sentimento, tipo estar exalando uma sensação boa.

- Sinestesia, a relação de planos sensoriais diferentes, tipo dizer que a cor azul é fria ou que uma música faz arrepiar.

- O senhor é professor?

- Publicitário, gosto de brincar com as palavras.

- Legal, tenho um filho estudando isso aí, cada dia que ele volta da aula é uma coisa nova que eu e minha velha passamos a perceber nas propagandas... vocês são tinhosos hem.

- Só o suficiente - Fernando riu enquanto o motorista estacionava - Obrigado pela conversa e um ótimo dia pra ti.

- Pro senhor também!

E assim, como se fosse carregado pelo vento Fernando entrou no hospital já perguntando pelo quarto de Bethina e, enquanto aguardava notou uma das funcionárias decorando uma árvore de natal, estranhou a cena, puxou o celular e faltavam menos de duas semanas para a época que menos gostava no ano, mas é a melhor época para fazer peças, todas muito iguais entre si, poucas palavras já causavam um impacto grande no público.

Tão logo soube o número do quarto foi guiado até lá pela mesma força mística que fez tantos homens lançarem-se ao mar em todas as histórias épicas. Por um instante sentiu-se Ulisses atravessando mares e perigos indo atrás da pessoa amada. Porta cento e um. Bateu suavemente três vezes.

- Pode entrar - A voz de Bethina foi como o canto de uma ninfa dentro da cabeça de Fernando.

Ao abrir a porta a imagem de Bethina, em um vestido florido, de alças finas, solto do corpo, nos pés uma rasteirinha e o cabelo solto mostrando ao mundo todo seu volume quase lhe fez desfalecer tamanha a emoção em vê-la ali. O abraço que culminou em um beijo foi apenas a cereja daquela profusão de sentimentos que, mantendo as palavras do motorista, exalavam entre eles. Palavras essas que sumiam entre um beijo e outro emendado por sentenças quase sem sentido para quem visse de fora aquela situação. Passados não mais que um par de minutos Fernando tomou a iniciativa.

- Já está liberada ou ainda precisa esperar mais?

- O médico assinou minha alta tem uns cinco minutos, estava vendo as mensagens lá da firma... até a dona Freya perguntando de mim.

- E você respondeu ela?

- Eu não - Bethina deu de ombros - Terça-feira eu respondo com o atestado, não sou obrigada.

Foi impossível não sorrir com a petulância da jovem que caminhava com certa lentidão para o lado de fora do quarto ao que Fernando, tal qual o bom cavalheiro que era carregava a mochila com os pertences da moça.

Optaram por motivos óbvios que o melhor era ela ficar no apartamento de Fernando para se resguardar e evitar esforço, fora que eles tinham muito a conversar e um final de semana parecia tão pouco tempo que passou voando e logo era segunda-feira. Ele foi para a empresa e ela voltou para o seu apartamento, oito quadras distante.

Aquele dia restou para ele transmitir as notícias acerca da designer tentando não demonstrar que ele estava mais apaixonado por ela como jamais esteve por qualquer outra mulher em sua vida. Ainda que estar com esse sentimento lhe deixasse um pouco confuso, mas... quando nada foi extremamente confuso na cabeça dele? Confuso para Fernando era o normal.