quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

CdF: Alta

Nunca o espaço entre uma sexta-feira e o sábado demorou tanto para Fernando. Passou a acreditar na relatividade do tempo, enquanto tomava uma ducha gelada para acordar notava que havia um silêncio quase irreal na Metrópole, deveriam fazer uns bons anos que ele não sabia o que era acordar cedo no final de semana, talvez só quando viajava, mas mesmo assim agora era diferente.

Tomou um gole do refrigerante de cola que tinha na geladeira, comeu uma maçã e se vestiu, chamou um carro pelo aplicativo já pensando se Bethina ficaria na sua casa ou iria para a casa dela própria. Na cabeça dele não fazia a menor diferença, tudo que queria era que ela se sentisse o mais confortável possível, até porque uma vez confessados os sentimentos e aquela quantidade inenarrável de mensagens trocadas nos últimos dois dias deveria querer dizer alguma coisa.

- Quer dizer alguma coisa - Balbuciou Fernando trancando a porta - ... não quer? - Deu uma rápida olhada para cima como se perguntasse a algum deus que estivevesse de plantão no final de semana.

Ao entrar no carro o motorista parecia pouco propenso à conversas e Fernando também não sabia se queria conversar, estava com tantas caraminholas dentro da cabeça que preferia não abrir a boca com medo de que as palavras fugissem e se nunca mais voltassem. Cada pensamento besta que acabou sorrindo de canto o que foi prontamente percebido por Astolfo, o motorista.

- Pelo sorriso está indo buscar alguém querido no hospital...

- Tá tão na cara assim?

- Ô se tá, ta exalando.

- É? - Fernando sentiu o rosto queimar - Exalando, gostei dessa palavra.

- Bonita né? - O motorista pareceu se entreter com o som dela - Dia desses entrou uma psicóloga muito falante e acabou falando essa palavra, aí fiquei com ela na cabeça... mas acho que é mais que uma palavra - Virou uma esquina, o destino estava no meio do quarteirão seguinte - é um sentimento, tipo estar exalando uma sensação boa.

- Sinestesia, a relação de planos sensoriais diferentes, tipo dizer que a cor azul é fria ou que uma música faz arrepiar.

- O senhor é professor?

- Publicitário, gosto de brincar com as palavras.

- Legal, tenho um filho estudando isso aí, cada dia que ele volta da aula é uma coisa nova que eu e minha velha passamos a perceber nas propagandas... vocês são tinhosos hem.

- Só o suficiente - Fernando riu enquanto o motorista estacionava - Obrigado pela conversa e um ótimo dia pra ti.

- Pro senhor também!

E assim, como se fosse carregado pelo vento Fernando entrou no hospital já perguntando pelo quarto de Bethina e, enquanto aguardava notou uma das funcionárias decorando uma árvore de natal, estranhou a cena, puxou o celular e faltavam menos de duas semanas para a época que menos gostava no ano, mas é a melhor época para fazer peças, todas muito iguais entre si, poucas palavras já causavam um impacto grande no público.

Tão logo soube o número do quarto foi guiado até lá pela mesma força mística que fez tantos homens lançarem-se ao mar em todas as histórias épicas. Por um instante sentiu-se Ulisses atravessando mares e perigos indo atrás da pessoa amada. Porta cento e um. Bateu suavemente três vezes.

- Pode entrar - A voz de Bethina foi como o canto de uma ninfa dentro da cabeça de Fernando.

Ao abrir a porta a imagem de Bethina, em um vestido florido, de alças finas, solto do corpo, nos pés uma rasteirinha e o cabelo solto mostrando ao mundo todo seu volume quase lhe fez desfalecer tamanha a emoção em vê-la ali. O abraço que culminou em um beijo foi apenas a cereja daquela profusão de sentimentos que, mantendo as palavras do motorista, exalavam entre eles. Palavras essas que sumiam entre um beijo e outro emendado por sentenças quase sem sentido para quem visse de fora aquela situação. Passados não mais que um par de minutos Fernando tomou a iniciativa.

- Já está liberada ou ainda precisa esperar mais?

- O médico assinou minha alta tem uns cinco minutos, estava vendo as mensagens lá da firma... até a dona Freya perguntando de mim.

- E você respondeu ela?

- Eu não - Bethina deu de ombros - Terça-feira eu respondo com o atestado, não sou obrigada.

Foi impossível não sorrir com a petulância da jovem que caminhava com certa lentidão para o lado de fora do quarto ao que Fernando, tal qual o bom cavalheiro que era carregava a mochila com os pertences da moça.

Optaram por motivos óbvios que o melhor era ela ficar no apartamento de Fernando para se resguardar e evitar esforço, fora que eles tinham muito a conversar e um final de semana parecia tão pouco tempo que passou voando e logo era segunda-feira. Ele foi para a empresa e ela voltou para o seu apartamento, oito quadras distante.

Aquele dia restou para ele transmitir as notícias acerca da designer tentando não demonstrar que ele estava mais apaixonado por ela como jamais esteve por qualquer outra mulher em sua vida. Ainda que estar com esse sentimento lhe deixasse um pouco confuso, mas... quando nada foi extremamente confuso na cabeça dele? Confuso para Fernando era o normal.

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