sábado, 25 de abril de 2020

CdF s2e11 - Lembranças

Confesso que era um pouco doloroso ver dia após dia Fernanda ter que deixar sua realidade e ir de "menino" para a empresa. Sempre fingia dormir pra acompanhar o ritual de tirar o pijama, escovar o cabelo, colocar calça, camiseta, tênis... alguns dias atrás me cortou o coração ver ela abraçando a camisola e deixando sobre a poltrona. Queria resolver toda essa situação o quanto antes... mas não dependia de mim muito menos dela, era questão de tempo.

Tão logo ela saiu em um passo de fazer inveja a qualquer felino sorrateiro me levantei. Desde que vim morar aqui essa casa tinha café, logo, estávamos mais próximos de uma civilidade humanamente aceita. Enquanto passava a bebida dos deuses pensava em artes que tinha enviado ontem para aprovação o que me deixou com relativamente pouca coisa para fazer. Até pretendia limpar o banheiro, mas Fernanda tinha um hábito quase inumano em limpar o banheiro quase todos os dias.

Um gole na bebida quente e a alma saiu da cama e entrou em meu corpo. Agora sim estava pronta para começar o dia. E-mail aberto, uma aba com música eletrônica menos paulada. Saudades de ir à uma balada, será que Fê iria comigo? Podia esperar a tempestade passar e acho que ela toparia, uma baladinha suave, beber um pouquinho, acho que ela trajar a liberdade fora das paredes desse apartamento vai fazer bem pra ela. Era uma ideia.

Um arquivo gigantesco vindo, centenas de fotos de um restaurante para ter um banco de dados para futuras postagens. Ótimas fotos, porém eram daqueles pratos refinados, onde se come pouco e se paga caro. Locais onde Rafaela certamente deveria ir.

Rafaela. Pensar nela me trouxe a situação de merda que acabou ficando a empresa. Um engomadinho daqueles certamente iria mandar embora todo mundo se pudesse, tudo em nome do lucro. Mas aposto que ela daria um jeito de reverter, tipo naqueles filmes bobos que Fê adorava assistir. Será que a vida imita a arte? Será que não somos frutos da arte de alguém? Perguntas estranhas para uma sexta-feira.

Só agora me liguei que era sexta-feira. Dia de correções, artes no maior estilo dedo no cu e gritaria. Na Lótus esse era o dia mais fraco, todas as artes já tinham sido feitas na quinta e na sexta era só arrumar o que precisasse. Não era raro o setor pedir pizza, salgado ou alguma coisa, ainda lembro do dia que, sem nenhum motivo, estávamos comendo salgados com refrigerante quando Rafaela e Freya entraram, geral achou que iam acabar demitidos ou levar um puta esporro, mas não, ela se juntou à plebe. A aba com nova mensagem pula.

- Bom dia Bethina! - Um dos clientes que eu já fazia arte antes de vir morar aqui - A arte ficou foda, como sempre, só precisa de um tapa sutil saca?

Saco. Saco sim. Juro que pensei em responder isso e testar o limite da amizade com Dora que, ironicamente, tinha uma loja de equipamentos de aventura. Não respondi, apenas refiz e ela aprovou já dizendo que faria o depósito do mês ainda hoje. E acabou. Nenhuma outra demanda, nada para hoje. O café semi frio me fazia ter lembranças e ligar pontos na minha cabeça.

Rafaela. Freya. Tapa. Aquela cena. Fechei os olhos mordendo o lábio inferior. Senti o interior de minhas pernas umedecer. Foda-se. Larguei o computador ligado e fui pra cama. Tirei a blusa, o shorts e arremessei a calcinha pra longe. Aquela cena vinha em flashes.

A mão esquerda veio apalpar os seios e a direita foi direto no ponto de umidade. O toque me arrepiou por completa. E aquela cena. Tudo começou em um dia que fui levar um material para aprovação, em vez de deixar um post-it e colocar na mesa da Freya eu resolvi espiar e acabei vendo, pela fresta da porta, aquilo que não vou esquecer e que agora era o combustível dos meus toques de prazer.

Freya com o corpo deitado na mesa de Rafaela, saia levantada, uma bunda redonda, poderia colocar ela na palma das duas mãos e levantá-la se quisesse. Rafaela estava impecável em seu tailleur em tons escuros, mas na mão tinha uma ferramenta. Algo que só fui aprender o nome muito tempo depois. O som dos tapas que a secretária levava não ecoavam, era como se a sala do escritório fosse feita para isso.

Não sei exatamente o que me fez ficar assistindo aquela cena, nunca fui muito adepta de BDSM mas vendo ali, ao vivo, quase tive vontade de abrir a porta e me oferecer para ser a próxima. Me estiquei e peguei o chinelo da Fê no lado dela da cama. Com a mão esquerda comecei a bater na minha própria coxa, tudo sem parar aquele movimento frenético da mão direita.

Deviam fazer uns dois minutos que eu estava olhando aquela maravilha quando o rosto da Freya se virou para a porta e fui vista. Tenho consciência disso. Fui tomada por um apavoro mas, ao mesmo tempo desejei que Rafaela fosse avisada da stalker e eu tivesse o mesmo destino da secretária. Mas em um segundo de lucidez saí dali e voltei correndo para minha baia.

Claro que agora a imaginação vinha com toda a carga. Quero mais. Fui até o guarda-roupas e peguei meu vibrador. Posicionei ele e ergui a bunda pro espelho. Puta merda, Bethina, que bunda linda. Eu me comeria. Liguei a vibração no máximo enquanto com a, agora livre, mão direita, dava incontáveis chineladas em minha própria raba. Afundei o rosto no travesseiro para que ninguém ouvisse meus gemidos altos. Com esse ritmo eu não duraria muito mais. Em uma batida mais forte o gozo veio com uma intensidade que não vinha fazia algum tempo. 

Desfaleci alguns instantes não sem antes desligar meu amigo vibratório. Completamente nua, corpo todo suado, nem a roupa de cama sobrou no lugar e o pior: zero forças para arrumar tudo isso. Deixei o corpo apagar aos poucos querendo transformar a lembrança assistida em lembrança vivida. Será que se eu ameaçasse falar o que vi Rafaela toparia me dar uma surra daquelas?

Tantas possibilidades que a cabeça estava na lua sem ver o tempo passar. Só dei conta quando um helicoptero passou. Quatro horas da tarde. Me levantei com as pernas tremendo, coloquei toda a roupa de cama na máquina de lavar e me meti no banho.

Hoje Fernanda estava fodida. Eu ia exigir o couro daquela piranha. Preferencialmente o couro da língua e dos dedos dela. Pensar nela e nas possibilidades me deixou excitada de novo. 

Chuveirinho meu amigo, me ajuda.

sábado, 4 de abril de 2020

CdF s2e10: Gratidão

Em minha mesa tentava entender como tudo aquilo havia acontecido. Não tinham sinais de uma mudança tão brusca no conselho, então como? Em uma decisão totalmente arbitrária o reizinho, que é como eu e Borges chamávamos o novo CEO do grupo, dispensou todos os estagiários. O setor que já chegou a ter oito pessoas agora tinha quatro. O mais afetado foi o andar de cima, do T.I. onde das quase vinte pessoas sobraram três. Três pessoas para segurar um servidor daquele tamanho. Esse cara devia comer merda e beber urina... se bem que. Ri sozinho imaginando a cena duma dominadora cagando no peito dele. Rafaela não, ela tinha classe demais pra algo tão chulo, Flávia provavelmente faria algo assim, ela era doida pra testar coisas.

Pensar nela me trouxe uma onda de lembranças. Hoje era dia da terapia, quem diria que a semana passou tão rápido. Certamente o que moveu ela foi a força do ódio. E cá estava eu diante da sala da terapeuta. Respirei fundo e entrei. Depois do relatório semanal resolvi usar a carta de história do passado.

- Opa - Ela se ajeitou na poltrona, agora tinha um divã extremamente confortável - Vamos à história! 'Bora, sem pensar muito, um, dois e três.

- Tá bem - gostava disso, se eu ficasse pensando muito eu tendia a bloquear a história inteira - Lembra quando eu falei que já tenho os desejos crossdressers desde a adolescência né? Então, eu passei uns anos adorando e achando errado, até conhecer a Flávia, minha ex-Domme, acontece que ela, ao saber dos meus desejos resolveu usar como sissy, que é a parte mais sexualizada e nem sempre vai tão longe, normalmente as sissys só se montam pra sessões de BDSM mesmo e eu queria ficar mais tempo e ela não curtiu muito isso... - Tomei um fôlego - Acho que, sem ser por mal, ela enterrou ainda mais meu real objetivo sabe? Minha real natureza, ela basicamente fez o que eu já fazia na adolescência, o famoso achar que ta errado... aí quando acabou aquela residência BDSM foi algo estranho, porque eu tinha algumas peças, mas coisas bem... como vou dizer... meio putiane sabe? - Rimos um instante - E meu estilo é bem diferente, eu até curto uma ou outra peça mais curta, mas, no geral, eu prefiro os vestidões maiores... aí quando eu cheguei aqui na Metrópole e entrei na Lótus eu já tinha meio que definido que ia me montar às vezes e tudo bem, achava que era meu teto...

- ... Aí entrou a Rafaela.

- Exato! Aquela coisa toda, a liberdade que senti com ela foi diferente daquela coisa de me montar com o objetivo puramente sexual, era algo pra eu me libertar, me conhecer melhor... quando passei três dias completamente montada naquele acampamento foi algo indescritível, me abriu a mente de tal forma que, assim que o ano novo nasceu eu senti a necessidade de sair dali, já tinha vivido o BDSM suficiente para me conhecer.

- Então você diria que todas as experiências BDSM foram uma ponte para te fazer se descobrir?

- Completamente! Se não fosse a Flávia eu ainda seria aquela pessoa que se monta e acha errado, talvez nem tivesse muito além de duas ou três peças usadas como estímulo de fetiche em uma masturbação e se não fosse a Rafaela, cara eu devo tanto àquela filha da mãe, ela me fez ver que tudo bem eu, na época, ser homem e me vestir de menina e que tudo bem eu dar o passo seguinte e que ela me apoiaria no que eu precisasse...

- E qual foi esse apoio?

- Um deles - Olhei de canto, ela anotava frenéticamente - Foi marcar aqui pra mim, de verdade, você normatizou isso na minha cabeça de tal forma que eu pude parar, respirar e descobrir que é mais que identificação, é desejo de ser e isso foi tão... foda na minha vida que eu acho que nunca vou ter como agradecer.

- Eu é que fico feliz em poder ajudar e acompanhar todo o seu progresso, Fê... sabe que os próximos passos vão ser ainda maiores e mais complicados né?

- Sei sim, mas aí entra outra pessoa...

- Já sei - Ela falou em tom de deboche - a Bethina.

- Tá com ciúme?

- Eu não, quero mais é que vocês sejam felizes... mais alguma coisa?

- Não, só preciso descobrir um jeito de tirar o reizinho do trono e devolver a coroa pra quem merece.

- Sabe que isso não tá nas suas mãos né?

- Sei sim, mas no que eu puder ajudar... nem que seja jogando da escada.

- Nem vem, Fê, você não combina com isso... perder uma das minhas melhores pacientes por algo besta assim - Ela fez uma careta de desaprovação - 'bora nem pensar nisso, aliás, chega por hoje né? 

- Odeio que o tempo aqui passa muito rápido - Fui me levantando já me espreguiçando - Bem que o Albert dizia que o tempo era relativo.

E assim a sessão acabou e eu fiquei pensativa em tudo que tinha falado. A psicóloga tinha razão, eu não podia resolver os problemas da empresa, o que eu tinha de fazer era ficar na minha e, quando visse alguma oportunidade, agir. Claro que, no caminho até o estacionamento mandei uma mensagem para Freya me colocando a disposição.

"A menos que você possa oferecer o lombo pra apanhar por enquanto não tem como."

Adorava o tom jocoso dela. Certamente ela seria uma dominadora melhor que a Rafaela. Mais sádica, talvez até um pouco menos humana, mas ainda assim com disposição para ensinar novatos, certamente estava sendo bem treinada e logo assumiria o posto de vice-senhora da casa. Resolvi responder na mesma moeda:

"Só se for casal, sabe como é, namorada ciumenta."

O tempo de eu sair do elevador e chegar na garagem onde minha fiel companheira de estrada me aguardava.

"Mas é gado demais hahaha, você acha que ela toparia?"

Essa pergunta flutuo o no ar por dois minutos. Não conseguia imaginar a reação de Bethina em ir para a cobertura de Rafaela pra ver a namorada dela apanhar ou até coisa pior... Um arrepio me correu pela espinha.

"Hoje eu passo, mas obrigada pelo convite, qualquer dia quem sabe né? Se cuida e se precisar de algo além do BDSM é só chamar."

Sabia que ela não responderia e ainda mostraria à Rafaela todas as mensagens. Não ligo. Eu tinha uma dívida de gratidão que jamais conseguiria quitar com a senhora da cobertura. Quem sabe algum dia eu tenha formas de pagar. Melhor parar de pensar, o estômago me lembrou que Bethina devia ter preparado o jantar o que me deixaria, inevitavelmente, com a louça. Merda. Sorri já ganhando a rua e pensando no quanto a vida tinha me proporcionado coisas boas. Em uma rápida olhada para o céu a Lua brigava com as nuvens por um espaço. Agradeci à senhora da noite por tudo até aqui e pedi forças para continuar. 

Sinto que fui atendida.