Em minha mesa tentava entender como tudo aquilo havia acontecido. Não tinham sinais de uma mudança tão brusca no conselho, então como? Em uma decisão totalmente arbitrária o reizinho, que é como eu e Borges chamávamos o novo CEO do grupo, dispensou todos os estagiários. O setor que já chegou a ter oito pessoas agora tinha quatro. O mais afetado foi o andar de cima, do T.I. onde das quase vinte pessoas sobraram três. Três pessoas para segurar um servidor daquele tamanho. Esse cara devia comer merda e beber urina... se bem que. Ri sozinho imaginando a cena duma dominadora cagando no peito dele. Rafaela não, ela tinha classe demais pra algo tão chulo, Flávia provavelmente faria algo assim, ela era doida pra testar coisas.
Pensar nela me trouxe uma onda de lembranças. Hoje era dia da terapia, quem diria que a semana passou tão rápido. Certamente o que moveu ela foi a força do ódio. E cá estava eu diante da sala da terapeuta. Respirei fundo e entrei. Depois do relatório semanal resolvi usar a carta de história do passado.
- Opa - Ela se ajeitou na poltrona, agora tinha um divã extremamente confortável - Vamos à história! 'Bora, sem pensar muito, um, dois e três.
- Tá bem - gostava disso, se eu ficasse pensando muito eu tendia a bloquear a história inteira - Lembra quando eu falei que já tenho os desejos crossdressers desde a adolescência né? Então, eu passei uns anos adorando e achando errado, até conhecer a Flávia, minha ex-Domme, acontece que ela, ao saber dos meus desejos resolveu usar como sissy, que é a parte mais sexualizada e nem sempre vai tão longe, normalmente as sissys só se montam pra sessões de BDSM mesmo e eu queria ficar mais tempo e ela não curtiu muito isso... - Tomei um fôlego - Acho que, sem ser por mal, ela enterrou ainda mais meu real objetivo sabe? Minha real natureza, ela basicamente fez o que eu já fazia na adolescência, o famoso achar que ta errado... aí quando acabou aquela residência BDSM foi algo estranho, porque eu tinha algumas peças, mas coisas bem... como vou dizer... meio putiane sabe? - Rimos um instante - E meu estilo é bem diferente, eu até curto uma ou outra peça mais curta, mas, no geral, eu prefiro os vestidões maiores... aí quando eu cheguei aqui na Metrópole e entrei na Lótus eu já tinha meio que definido que ia me montar às vezes e tudo bem, achava que era meu teto...
- ... Aí entrou a Rafaela.
- Exato! Aquela coisa toda, a liberdade que senti com ela foi diferente daquela coisa de me montar com o objetivo puramente sexual, era algo pra eu me libertar, me conhecer melhor... quando passei três dias completamente montada naquele acampamento foi algo indescritível, me abriu a mente de tal forma que, assim que o ano novo nasceu eu senti a necessidade de sair dali, já tinha vivido o BDSM suficiente para me conhecer.
- Então você diria que todas as experiências BDSM foram uma ponte para te fazer se descobrir?
- Completamente! Se não fosse a Flávia eu ainda seria aquela pessoa que se monta e acha errado, talvez nem tivesse muito além de duas ou três peças usadas como estímulo de fetiche em uma masturbação e se não fosse a Rafaela, cara eu devo tanto àquela filha da mãe, ela me fez ver que tudo bem eu, na época, ser homem e me vestir de menina e que tudo bem eu dar o passo seguinte e que ela me apoiaria no que eu precisasse...
- E qual foi esse apoio?
- Um deles - Olhei de canto, ela anotava frenéticamente - Foi marcar aqui pra mim, de verdade, você normatizou isso na minha cabeça de tal forma que eu pude parar, respirar e descobrir que é mais que identificação, é desejo de ser e isso foi tão... foda na minha vida que eu acho que nunca vou ter como agradecer.
- Eu é que fico feliz em poder ajudar e acompanhar todo o seu progresso, Fê... sabe que os próximos passos vão ser ainda maiores e mais complicados né?
- Sei sim, mas aí entra outra pessoa...
- Já sei - Ela falou em tom de deboche - a Bethina.
- Tá com ciúme?
- Eu não, quero mais é que vocês sejam felizes... mais alguma coisa?
- Não, só preciso descobrir um jeito de tirar o reizinho do trono e devolver a coroa pra quem merece.
- Sabe que isso não tá nas suas mãos né?
- Sei sim, mas no que eu puder ajudar... nem que seja jogando da escada.
- Nem vem, Fê, você não combina com isso... perder uma das minhas melhores pacientes por algo besta assim - Ela fez uma careta de desaprovação - 'bora nem pensar nisso, aliás, chega por hoje né?
- Odeio que o tempo aqui passa muito rápido - Fui me levantando já me espreguiçando - Bem que o Albert dizia que o tempo era relativo.
E assim a sessão acabou e eu fiquei pensativa em tudo que tinha falado. A psicóloga tinha razão, eu não podia resolver os problemas da empresa, o que eu tinha de fazer era ficar na minha e, quando visse alguma oportunidade, agir. Claro que, no caminho até o estacionamento mandei uma mensagem para Freya me colocando a disposição.
"A menos que você possa oferecer o lombo pra apanhar por enquanto não tem como."
Adorava o tom jocoso dela. Certamente ela seria uma dominadora melhor que a Rafaela. Mais sádica, talvez até um pouco menos humana, mas ainda assim com disposição para ensinar novatos, certamente estava sendo bem treinada e logo assumiria o posto de vice-senhora da casa. Resolvi responder na mesma moeda:
"Só se for casal, sabe como é, namorada ciumenta."
O tempo de eu sair do elevador e chegar na garagem onde minha fiel companheira de estrada me aguardava.
"Mas é gado demais hahaha, você acha que ela toparia?"
Essa pergunta flutuo o no ar por dois minutos. Não conseguia imaginar a reação de Bethina em ir para a cobertura de Rafaela pra ver a namorada dela apanhar ou até coisa pior... Um arrepio me correu pela espinha.
"Hoje eu passo, mas obrigada pelo convite, qualquer dia quem sabe né? Se cuida e se precisar de algo além do BDSM é só chamar."
Sabia que ela não responderia e ainda mostraria à Rafaela todas as mensagens. Não ligo. Eu tinha uma dívida de gratidão que jamais conseguiria quitar com a senhora da cobertura. Quem sabe algum dia eu tenha formas de pagar. Melhor parar de pensar, o estômago me lembrou que Bethina devia ter preparado o jantar o que me deixaria, inevitavelmente, com a louça. Merda. Sorri já ganhando a rua e pensando no quanto a vida tinha me proporcionado coisas boas. Em uma rápida olhada para o céu a Lua brigava com as nuvens por um espaço. Agradeci à senhora da noite por tudo até aqui e pedi forças para continuar.
Sinto que fui atendida.
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