Ainda lembro da primeira crise forte, foi no meio da noite com Fernanda tossindo muito, antes que eu pudesse ampará-la ela saiu para o banheiro e a tosse cessou. Sorri aliviada esperando o sono voltar... mas algo dentro de mim não deixou. Da fresta da janela vinha o ruído típico da Metrópole acordando com uma fina brisa que dava ao sexto dia do ano um ar de outono. Me levantei indo até a porta do banheiro fechada que vazava luz por baixo. Bati uma vez. Silêncio. Bati duas. Nada. Bati a terceira.
- Amor - Falei em tom preocupado voltando a bater - Tudo bem aí?
Silêncio. Com o histórico dela eu odiava o silêncio. Já ponderava como faria pra arrombar a porta e levá-la às pressas pro hospital. Testei a fechadura. Não estava trancada. No fundo do box podia ver uma silhueta abaixada sentada no chão. Meu primeiro pensamento - e que se tornou ação - foi me aproximar.
- Fica longe - A voz desafinada tomou conta do ambiente - Vai embora! - Os soluços de choro se misturavam às ondas sonoras que preenchiam o diminuto cômodo - Eu sou uma aberração!
Tinha dito à psicologa que saberia lidar com as prováveis crises dela durante a parte medicamentosa da transição, mas vê-la se chamar de aberração foi como uma faca entrando no meu peito. Naquele momento tudo que podia fazer foi abraçá-la até a crise passar e dormimos ali mesmo. No dia seguinte ela me pediu desculpa.
Os dias que se seguiram também não foram fáceis. Quase toda noite, nas mais variadas intensidades, Fernanda se achava uma aberração, um ser entre o masculino e o feminino. Toda a puberdade condensada em um ano e meio, talvez dois anos. Pesquisei o que fazer. Perguntei à psicologa e as duas voltaram com o mesmo resultado: só o tempo. Negócio é fazer como minha mãe sempre disse: se você quer mesmo ver o céu noturno iluminado tem que segurar o rojão. Por isso aguentei firme uma semana.
Pensei em pedir ajuda para Freya, mas não tinha como, ela estava na Itália com Rafaela e aquele outro rapaz. Aguenta firme, Bethina. Você é forte. Dez dias se passaram e as férias já estavam no fim. Talvez uma rotina ajudasse. Umas poucas pessoas voltaram dias antes do restante dos funcionários porque teríamos reuniões internas para alinhar discursos. Fernanda preferiu se esconder atrás da máscara de menino, o foda que eu não podia julgar ela, tudo a seu tempo.
Logo depois da primeira reunião Freya notou meu estado e, tão logo conseguiu, me puxou de lado para conversar.
- Você tá bem? - Ela me olhava preocupada - Parece que você não dorme fazem noites...
- É porque eu não durmo mesmo - Eu estava com tremedeiras - Eu sabia que ia ser difícil... mas tanto...
- Fala de Fernanda?
- Sim.
- Me conta.
- Ah... ela tem tido umas reações adversas aos remédios, tido uns surtos de noite... aí mesmo que nos últimos dias ela esteja mais tranquila eu não consigo pregar o olho direito.
- Entendi... - Freya puxou o celular do bolso, mandou uma mensagem meio longa, achei um pouco falta de respeito mas ela é minha superior, então né, melhor esperar, vai que é algo mais importante que meu drama pessoal - A dona Rafaela quer falar contigo.
- É? - Estava em uma condição tão lamentável que nem me arrepiei com a situação - Sobre o que ela quer falar?
- Surpresa.
Caminhei da pequena sala de reuniões onde estava conversando com Freya pelo corredor até a sala da presidência. Fernanda me mandou mensagem toda amorosa perguntando o que tinha acontecido. A bipolaridade de humor dela era ágil, pelo visto a rotina era o que ela precisava para entrar um pouco nos eixos. Respondi que Rafaela tinha me chamado para discutir alguns detalhes de design de alguns produtos. Uma mentira que não fazia mal algum. Bati de leve na porta e ouvi a voz característica da chefa falando para eu entrar.
- Mandou me chamar, chefa?
- Mandei... - Rafaela estava com o olho fixo no monitor do notebook, dois segundos depois me olhou de cima abaixo - Realmente, Freya tem razão, você está só o pó da gaita.
- Como assim?
- Está com olheiras, ombros caídos... - Ela se levantou e caminhou na minha direção - Eu nem consigo imaginar pelo que você está passando com Fernanda... mas eu tenho uma proposta.
- Proposta? - Arqueei a sobrancelha - Que proposta?
- Vou te dar um final de semana em um spa, só pra você... - Ela me tocou os lábios quando eu ia falar - E pode deixar que eu cuido de Fernanda por esses dias, sei quais botões tocar pra acalmar aquela borboletinha saindo do casulo... e quando Fernanda perguntar diga que vai fazer um curso na Cidade Maravilhosa, se ela não acreditar diga pra vir falar comigo.
Não ousei questionar. Não conseguia reagir. Não que fosse a coisa mais certa do mundo, mas sentia que precisava desse espacinho, desses dois dias para pensar em tudo e relaxar e confiava em Rafaela cuidando de Fernanda. Sem qualquer outra reação a abracei, gesto que foi retribuído. Quem disse que chefe é tudo ruim e não liga pra funcionário mesmo? Pelo visto queimei minha língua.