segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CdF s3e1 - Surpresa

Ainda lembro da primeira crise forte, foi no meio da noite com Fernanda tossindo muito, antes que eu pudesse ampará-la ela saiu para o banheiro e a tosse cessou. Sorri aliviada esperando o sono voltar... mas algo dentro de mim não deixou. Da fresta da janela vinha o ruído típico da Metrópole acordando com uma fina brisa que dava ao sexto dia do ano um ar de outono. Me levantei indo até a porta do banheiro fechada que vazava luz por baixo. Bati uma vez. Silêncio. Bati duas. Nada. Bati a terceira.

- Amor - Falei em tom preocupado voltando a bater - Tudo bem aí?

Silêncio. Com o histórico dela eu odiava o silêncio. Já ponderava como faria pra arrombar a porta e levá-la às pressas pro hospital. Testei a fechadura. Não estava trancada. No fundo do box podia ver uma silhueta abaixada sentada no chão. Meu primeiro pensamento - e que se tornou ação - foi me aproximar.

- Fica longe - A voz desafinada tomou conta do ambiente - Vai embora! - Os soluços de choro se misturavam às ondas sonoras que preenchiam o diminuto cômodo - Eu sou uma aberração!

Tinha dito à psicologa que saberia lidar com as prováveis crises dela durante a parte medicamentosa da transição, mas vê-la se chamar de aberração foi como uma faca entrando no meu peito. Naquele momento tudo que podia fazer foi abraçá-la até a crise passar e dormimos ali mesmo. No dia seguinte ela me pediu desculpa.

Os dias que se seguiram também não foram fáceis. Quase toda noite, nas mais variadas intensidades, Fernanda se achava uma aberração, um ser entre o masculino e o feminino. Toda a puberdade condensada em um ano e meio, talvez dois anos. Pesquisei o que fazer. Perguntei à psicologa e as duas voltaram com o mesmo resultado: só o tempo. Negócio é fazer como minha mãe sempre disse: se você quer mesmo ver o céu noturno iluminado tem que segurar o rojão. Por isso aguentei firme uma semana.

Pensei em pedir ajuda para Freya, mas não tinha como, ela estava na Itália com Rafaela e aquele outro rapaz. Aguenta firme, Bethina. Você é forte. Dez dias se passaram e as férias já estavam no fim. Talvez uma rotina ajudasse. Umas poucas pessoas voltaram dias antes do restante dos funcionários porque teríamos reuniões internas para alinhar discursos. Fernanda preferiu se esconder atrás da máscara de menino, o foda que eu não podia julgar ela, tudo a seu tempo. 

Logo depois da primeira reunião Freya notou meu estado e, tão logo conseguiu, me puxou de lado para conversar.

- Você tá bem? - Ela me olhava preocupada - Parece que você não dorme fazem noites...

- É porque eu não durmo mesmo - Eu estava com tremedeiras - Eu sabia que ia ser difícil... mas tanto...

- Fala de Fernanda?

- Sim.

- Me conta.

- Ah... ela tem tido umas reações adversas aos remédios, tido uns surtos de noite... aí mesmo que nos últimos dias ela esteja mais tranquila eu não consigo pregar o olho direito.

- Entendi... - Freya puxou o celular do bolso, mandou uma mensagem meio longa, achei um pouco falta de respeito mas ela é minha superior, então né, melhor esperar, vai que é algo mais importante que meu drama pessoal - A dona Rafaela quer falar contigo.

- É? - Estava em uma condição tão lamentável que nem me arrepiei com a situação - Sobre o que ela quer falar?

- Surpresa.

Caminhei da pequena sala de reuniões onde estava conversando com Freya pelo corredor até a sala da presidência. Fernanda me mandou mensagem toda amorosa perguntando o que tinha acontecido. A bipolaridade de humor dela era ágil, pelo visto a rotina era o que ela precisava para entrar um pouco nos eixos. Respondi que Rafaela tinha me chamado para discutir alguns detalhes de design de alguns produtos. Uma mentira que não fazia mal algum. Bati de leve na porta e ouvi a voz característica da chefa falando para eu entrar.

- Mandou me chamar, chefa?

- Mandei... - Rafaela estava com o olho fixo no monitor do notebook, dois segundos depois me olhou de cima abaixo - Realmente, Freya tem razão, você está só o pó da gaita.

- Como assim?

- Está com olheiras, ombros caídos... - Ela se levantou e caminhou na minha direção - Eu nem consigo imaginar pelo que você está passando com Fernanda... mas eu tenho uma proposta.

- Proposta? - Arqueei a sobrancelha - Que proposta?

- Vou te dar um final de semana em um spa, só pra você... - Ela me tocou os lábios quando eu ia falar - E pode deixar que eu cuido de Fernanda por esses dias, sei quais botões tocar pra acalmar aquela borboletinha saindo do casulo... e quando Fernanda perguntar diga que vai fazer um curso na Cidade Maravilhosa, se ela não acreditar diga pra vir falar comigo.

Não ousei questionar. Não conseguia reagir. Não que fosse a coisa mais certa do mundo, mas sentia que precisava desse espacinho, desses dois dias para pensar em tudo e relaxar e confiava em Rafaela cuidando de Fernanda. Sem qualquer outra reação a abracei, gesto que foi retribuído. Quem disse que chefe é tudo ruim e não liga pra funcionário mesmo? Pelo visto queimei minha língua.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Sessão de Terapia

Olá pessoas, como estão?

Sei que quase ninguém lê aqui e depois do livro que virou a história de Fernandes (CdF, pra quem chegou faz pouco tempo, é 'Cronicas de Fernandes') menos gente ainda lê (a média de acessos diz que tem entre 3 e 10 views por post), porém como o objetivo aqui nunca foi fazer sucesso e sim escrever uma história que foi surgindo conforme minhas dúvidas surgiam... é, até que rendeu né? E teremos uma temporada 3? Quién lo sabe? Eu adoro trilogias, quem sabe né? Mas por ora, vamos deixar assim.

A verdade é que criei esse blog como válvula de escape pra mim, uma pessoa confusa no que dizia respeito a sua sexualidade e suas neuras internas. Comprar a saia, pra mim, foi um divisor de águas imenso, me fez bem, melhorou minha auto-estima, porém trouxe consigo dezenas de dúvidas que vou escrever aqui mais como um desabafo do que como algo pra inspirar ninguém ok? Eu estou escrevendo a MINHA jornada até aqui.

O começo


Quando eu comprei a saia em finais de 2018 (juro, parece muito mais tempo) eu dividi minha personalidade, o Lu era o menino-hétero-bonitinho-que-curte-automobilismo e a Fê que era a menina-que-curte-rosa-e-tudo-do-universo-feminino, só que eu não me sentia bem com isso, aí eu comecei a "matar" a Fê, só que né, ficou uma sensação meio de vazio e resolvi pegar a personagem que eu já tinha criado (o Fernando é uma personagem que criei quase como uma fanfic dos escritos da Senhora Pam, o incrível e super recomendado Senhora de Três) e a minha ideia quando comecei a escrever era ir tateando as coisas sabem? Primeiro a ideia da personagem ser a sissy de uma domme era o meu desejo na época, depois a personagem "evoluiu" pra crossdresser (onde passei também) e por fim se descobriu que a personagem é, na verdade, uma mulher trans.

Eu não sei quantos de vocês que leem aqui também tem o hábito de escrever, mas quando eu escrevo eu não controlo o que minhas personagens vão fazer sabe? Eu tenho a ideia e deixo fluir e no fim eu acabo me surpreendendo com os rumos do que escrevo, por isso o próximo paragrafo...

No meio pro fim do ano passado eu estava realmente achando que eu poderia ser uma pessoa trans, sério mesmo, já estava lendo relatos, vendo os remédios que se toma e todo o processo, porém a ideia não me satisfazia, ela era como uma febre terçã, durava pouco e não era o caminho que eu queria... e assim o ano de 2019 se arrastou comigo usando a saia vez ou outra e contanto pra algumas pessoas e aí vem o próximo parágrafo.

Felicidade compartilhada


Como já contei naquele post eu senti uma alegria tão intensa e imensa por ter realizado isso que eu quis berrar pra todo mundo. Só que quase instantaneamente veio a realidade e falou "ow peraê" e lembrei que moro em Santa Catarina, um dos estados mais homofóbicos/racistas do Brasil (aqui é tutu alemón) então respirei fundo e, durante o ano de 2019, eu fui escolhendo a dedo as pessoas que eu falaria sobre e todas (até o momento umas 10 mulheres e 2 homens (tenho mais amigas que amigos, fazer o que né?)) super compreensivos, alguns até me falaram que era tão bom me ver feliz com algo (relembrar isso me mareja as vistas), porém tem uma única pessoa que eu queria falar só que por ora não tenho como que é minha mãe (Fernandes, te invejo) e acho que é isso que me falta pra ter uma felicidade interna plena... mas se a reação de todo mundo foi boa por que eu acho que da minha mãe vai ser diferente? Não sei. Esse é um dos mistérios da vida.

Um outro caminho


Comecei 2020 com um emprego na área que sou formado (publicidade) e o panorama era o melhor possível, estava conseguindo guardar uma grana, no meio do ano ia viajar pra SP pra "sentir" a cidade e conhecer pessoalmente algumas pessoas que só conheço da internet e em dezembro/janeiro eu pegaria as férias e ia de novo pra SP procurar emprego na minha área e, encontrando, eu me demitiria e ia pra cidade que quero morar sozinho já tem um tempo... só que aí veio o coronga e miou tanto os meus planos quanto da empresa que eu trabalhava, ou seja: fui demitido em abril, por sorte o Lu aqui é uma pessoa precavida e tinha uma reserva que durou até julho (pois é, daqui pra frente vai ser osso...) e agora estou correndo atrás de uns freelazinhos.

E como a vida é uma caixinha de surpresas minha prima me manda um vídeo de um cara chamado Guilherme Rocker, figura magricela com um cabelo incrível... pois bem, assisti alguns vídeos dele curtindo o estilo, porém o gatilho que fez a chave virar foi o documentário sobre o Walter Mercado que tem na netflix nossa de cada dia... lá alguém falou que o Walter era andrógino e essa palavra tipo explodiu na minha cabeça saca? Tipo aquele gif.. wooooow

Fui ler sobre e passei a me interessar pelo estilo e veio de encontro com algo que eu já tinha na cabeça desde o começo do ano...

Falando no começo do ano de volta: Quando eu entrei no emprego eu resolvi fazer terapia (menines, façam terapia, é ótimo!) e fui logo falando pra ela minhas neuras e tudo mais e ela tem me ajudado a normatizar essa coisa de usar saia na minha cabeça... eu falei uma frase que ela até guardou e foi uma paráfrase duma "ministra" do governo atual: Meninos usam azul e meninas rosa... e eu? Eu gosto do roxo.

(quem não sabe roxo é a mistura de azul com vermelho)

E aí sigo aqui, encantado por coisas roxas e cada vez mais interessado na ideia de ser andrógino, parece que o "não-escolher" também é uma forma de escolha afinal.

No mais é isso que eu queria dividir com vocês! E não se esqueçam de se permitir porque sim, você merece ser feliz hoje!

Até a próxima 
~ Lu