Eu devia ter tomado uma atitude muito tempo atrás, meses atrás mas não tomei e agora ela parecia tão grande quando, na verdade, era só o que eu sempre desejei e pronto. Confesso que tinham dias que eu não queria tomar os remédios, não queria me olhar no espelho... mas, no fundo, eu notava que aquela silhueta que brotava no espelho era quem eu sempre quis ser, era a criatura que eu tanto namorei nos aplicativos que trocam o rosto, nas malfadadas tentativas de me maquiar... estava vindo, porém eu ia me desapegar do Fernando pra sempre e isso era o que mais me assustava.
Junto da terapia me foi sugerida uma rotina fixa, atividades que eu pudesse me focar cem por cento do tempo até não ter mais tantos surtos quanto tive no começo do ano. A ideia era ótima e o apoio de Bethina era o que me impedia de saltar da janela. Mas, ao mesmo tempo, eu me sentia egoísta obrigando ela a viver isso tudo.
A imensa verdade é que essa criação de uma rotina ajudou pra caralho, no entanto não posso ficar o tempo todo fazendo alguma coisa, tem momentos que preciso de uma dose de ócio pra aflorar a criatividade, foi numa dessas que eu chamei Bethina pra pedalar no parque depois do trabalho na sexta. Ela quis reclamar mas acho que a exaustão a fez aceitar. Claro que eu não tinha a menor vontade de ficar andando a esmo nas ciclovias e sim achar um banco, respirar um pouco de ar puro...
- Sabê, Bê - Era curioso como o parque estava tão vazio, achar um lugar pra sentar foi extremamente fácil - Às vezes acho que eu tô atrapalhando a sua vida.
- Às vezes você fala umas bobagens - Ela sorriu me olhando de canto - Mas vamos ver, por que você acha isso?
- Ah sei lá - Respirei fundo tentando fugir daqueles olhos - Sou uma criatura meio bizarra ainda... estou na fronteira do que eu sou e quero ser...
- E...?
- E isso atrapalha sua vida cara, você merece alguém mais centrado, mais certo das ideias e não essa...
Não tive como continuar. Bethina puxou meu rosto e me deu um beijo tão apaixonado que não sei como contive a inundação de lágrimas dentro das pálpebras, de repente todo aquele diálogo, todas as minhas palavras, todo o parque, a Metrópole, o país, o planeta, o universo e toda a criação deixaram de existir e só nós duas estávamos ali, não poderia precisar quanto tempo durou, mas foi o suficiente para fazer qualquer núvem que pairava em meu pensamento ficar seriamente desnorteada.
- Sabe qual o seu problema Fê? - Não consegui responder, apenas fiz a negativa com o queixo - Você pensa demais... lembra o dia que você comprou sua primeira saia?
- L-lembro - A lágrima escorreu - Eu já te contei essa história?
- Não, mas eu sou hacker e achei teu blog velho.
- Olha ela - Enxuguei a lágrima - Continue.
- Então... Você teve a decisão, foi lá, comprou, pagou e quando ela chegou pelo correio você se sentiu a pessoa mais realizada do mundo, nada importava, sem passado, sem futuro... só aquele ventinho frio por baixo e a sensação de liberdade... - As lágrimas voltaram - Me diz, as saias seguintes foram tão prazerosas quanto essa?
- Não tanto... não vou dizer que virou algo normal, porque ainda me dá certos calafrios entrar em uma loja e comprar algo pra minha sobrinha, afilhada ou até mesmo noiva...
- Noiva? - Bethina me deu um tapa no braço - A senhorita anda me traindo é?
- Não! - Corei de leve - É só...
- Eu sei boba. - Pausamos um instante - E que você não quer entrar em uma loja e dizer que é pra você? Poder experimentar... me diz, quantas vezes você comprou o tamanho errado e teve que voltar na loja pra trocar?
- Poucas...
- A maioria você aceita a derrota e joga a peça no canto e na primeira doação de natal você se livra delas, tô ligada.
- Nossa... você tem um jeitinho tão cínico de falar essas coisas...
- Você diz cínico e eu digo verdadeira... agora 'bora pra casa.
Eu estava ali durante todo o trajeto até em casa, eu respondia, falava mas não me sentia aqui, tudo estava martelando dentro da cabeça. Ela tinha razão. Perdi no par ou ímpar e ela escolheu que eu fosse tomar banho primeiro. Acho que ela já esperava essa reação minha e por isso me fez confrontar o espelho. Cá estava eu vendo meu reflexo, cabelo solto, rosto afinando, seios já despontando e ereções quase nulas... e talvez fosse isso aí, esse é o objetivo que eu, desde aquela primeira vez que vi a possibilidade de me montar e agora a oportunidade real de me tornar a mulher que sempre quis ser. Respirei fundo e entrei debaixo do chuveiro enquanto o cheiro de comida vinha da cozinha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comenta aí ;)