segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Viagem ao passado e outras reflexões

 E aí pessoas, como estão?


Eu sei, passei muito tempo sem postar nada aqui e não foi por falta de vontade e sim pela depressão nossa de cada dia, ela tem me impedido de fazer algumas coisas pela minha vida e... enfim, acho que agora estou superando algumas partes e entendendo outras.


A coisa é que dia 5/1 eu não comemorei esse ano, a data passou com um sentimento agridoce, ao mesmo tempo que eu gosto da saia eu estava conflitante com ter ela ali, parecia um símbolo de algo que eu ainda não compreendo totalmente e isso me descaralha a cabeça mais do que o normal haha


Acontece que, dia desses, estava conversando com um amigo de longa data (que sim, sabe todo o rolê da saia e aceitou muito de boas) e do nada a gente estava falando sobre o ensino médio e do nada ele fala "se você voltasse naquela idade, naquele ano, com o que você sabe sabe hoje, o que você faria?" na hora soltei "compraria bitcoin em 2010" e hoje estaria rica hahahahaha


Mas acontece que eu fiquei com essa pergunta flutuando na cabeça, quem já leu o blog antes sabe que eu tenho esse "lado" feminino desde uns 11~12 anos e na época do ensino médio eu tinha uns 17... se fosse com a cabeça de hoje, naquele corpo e época eu vou ser bem direto o quê eu faria (além de comprar bitcoin, claro):


Teria começado minha transição ali, naquela idade. Hoje com 36 a coisa vai ficando cada vez mais inviável e impraticável... não que seja impossível, pelo contrário, é que eu já não poderia viver umas coisas típicas de menina de uns 20 e poucos, tipo pintar o cabelo de roxo e tals... ok, eu sei que é possível eu fazer isso com qualquer idade, só que é mais... inapropriado. Sei lá. "Ah Lu, mas cê quer transicionar e ta preocupada com isso?" Sim, eu tenho desses sentimentos conflitantes o tempo todo.


Esses dias reabri meu tumblr, nunca postei nada, só seguia alguns perfis e... depois daquela crise do tumblr que eles baniram conteúdo adulto só ficou coisa de empoderamento trans e afins... e ver aqueles posts, aquelas pessoas repostando fotos de vestidos, de roupas, quadrinhos... me fez sorrir. Acho que a ideia de que, em um momento futuro, eu possa me desfazer dessa casca masculina que cobre meu corpo é uma das poucas coisas que me faz ainda ter esperança em mim.


Lembrei do Fernando Pessoa "crer em mim? Não, nem em nada"


Mas voltando a minha versão de 17 anos sabendo que a casca masculina é errada: aos 18 eu já estaria morando fora daquela cidadezinha de merda no interiorrrrrr e teria a coragem de me arriscar mais e estaria disposta a encarar o que quer que viesse. Quase fui buscar na conversa com aquele amigo a pergunta que hoje eu responderia "Hoje você não teria um amigo e sim uma amiga", porque sim.


Cada dia que passa me sinto mais sufocada dentro dessa máscara (novamente Pessoa se faz presente "quando quis tirar a máscara estava pegada a cara e quando tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido") e sei que, mais cedo ou mais tarde, esse copo vai transbordar.


Esses dias estava sozinha em casa de manhã e vesti a saia 2 (a preta, que eu ainda não postei foto aqui, mas ela é do meu tamanho e veste MUITO bem) e fiquei dando umas voltas pela casa e... o sentimento diante do espelho foi maravilhoso. Quase uma redescoberta da mulher maravilhosa que eu tenho cá dentro pronta pra sair.


Esse post não é algo pedindo socorro, é só algo... um desabafo. Um exercício mental.


Ah: Ultimamente nem tenho tentado esconder nada da mãe, ela inventou de fazer umas mandalas (é um treco bonito e ela faz mó  bem) e eu pedi uma em azul, rosa e branco... ela ainda não fez, mas quando fizer vou por na minha parede, atrás do meu monitor pra eu não esquecer o objetivo principal que é deixar essa borboleta que mora aqui dentro sair, voar, ganhar os céus.


No mais é isso.


Cuidem-se, sejam fieis a vocês, bebam água e pratiquem atividades físicas.


Beijinhos,

~ Lu



ps.: eu vou tentar postar mais esse ano, ando precisando desse cantinho pra desabafar as coisas que tão me incomodando e comemorar as pequenas vitórias ;)

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Dúvidas (e lá vamos nós)

Olá, pessoas, como estão? Estou sem vir aqui mas é por falta de novidades... mas hoje tem coisa nova e provavelmente é o texto que eu mais protelei pra escrever aqui e, talvez, seja um dos mais íntimos e que estou com ele embolado dentro da cabeça. Não sei se por medo do que meus dedos vão escrever enquanto eu tento pensar nas palavras, não sei se pelo rumo que ele vai tomar. Se ele está postado aqui e vocês estão lendo é sinal que eu consegui escrever e postar.


Faz mais de uma semana, talvez mais de mês, que eu estou com o escrito na ponta da língua e quando vou escrever... ele foge. O foda é que, de uns dias pra cá, isso passou a me sufocar, por isso resolvi ligar um mix de LoFi HipHop do Nujabes e meio que forçar a sair, tipo quando estamos mal do estômago e tomamos algum remédio que faz sair... ok, péssimo exemplo, mas é meio assim que me sinto.


Sei que costumo dividir minha vida entre o antes e depois da saia, porém é inevitável, porque ela trouxe algo que me mostrou o outro lado do espelho (inclusive esse foi o título de um blog que tive muitos anos atrás, acho que apaguei ele faz muito tempo, enfim) e ele me sorriu. 


Já escrevi três parágrafos e ainda não consegui concatenar as ideias, que merda. Vamos começar pelo começo mais recente e de trás pra frente: Já se vão alguns dias que eu estou em crise de despersonalização, eu fico sempre com a sensação de que estou sonhando e isso acaba por me deixar apático com o que sinto/vejo/faço e é a porta dos fundos pra crise depressiva entrar com tudo. Como eu não sei a origem dessa crise atual eu estou achando que tem relação com um evento que aconteceu tem mais ou menos um mês...


*efeito de volta no tempo*


Não sei se vocês sabem mas eu gosto muito de ouvir podcasts, sobretudo os que contam histórias, sempre muito bom pra ouvir enquanto limpo a casa, lavo uma louça ou vou buscar pão ou coisa assim. Pois bem, um desses podcasts que ouço com certa regularidade é o GugaCast (Mari, se ler, desculpa, é a única vez que vou citar o nome ok?), gosto que contam histórias dos ouvintes e até fiquei interessado em mandar histórias pra lá, mas nunca fiz porque minhas histórias de vida não são lá grande coisa pra serem contadas num podcast que tem seus milhares de ouvintes. Vou admitir, quando vi o último episódio, com mais de duas horas e meia eu tive certa preguiça de dar o play, porém quando dei vi que eram histórias soltas de uns quarenta minutos cada uma, então tava show.


Como trabalho com comunicação gosto de estar de olho nas tendências e sempre buscando aprender mais sobre tudo e o último episódio era o especial LGBTQIAP+, esse assunto eu tenho real interesse até pra poder me comunicar da forma mais educada e inclusiva possível, sempre em busca de uma evolução.


Pois bem, no episódio em questão eu acabei atingido por várias histórias que me fizeram ora chorar de alegria, ora chorar sentindo a dor das histórias contadas, porém veio a última história e... Puta que pariu.


Eu já tinha tomado um spoiler de leve no instagram, porém ao ouvir o episódio, aquela história... mano do céu. Sem zoeira: eu deitei no chão e fiquei meia hora depois que acabou sem força pra nada. Sugiro que ouçam o episódio todo, mas a grande história é a última, não sei ao certo a minutagem. A propósito: quando forem ouvir, ouçam em um lugar que vocês possam chorar numa boa, não é recomendável ouvir na rua porque... bem... vocês vão acabar chorando litros, estejam avisades.


Mas enfim, conforme a personagem contava sua história eu fui me identificando demais. Quando ela falou que, aos nove anos, viu um vestido amarelo pendurado atrás da porta do banheiro quis muito vestir porém achou errado e não o fez... é muito paralelo com o que aconteceu comigo sabe? Outros relatos, outras passagens de vida e eu ficava igual aquele gif do Leonardo DiCaprio apontando. Pode ser que eu seja uma pessoa muito influenciável, mas seilá... me vi naquela história de um jeito que não sei explicar.


Ok, sei que quem ler talvez não vá ouvir o episódio e/ou não tenha paciência/tempo pra ouvir tudo então qual é o resumo? A personagem do conto (e a pessoa que dava nome ao podcast), depois de um tempo, descobriu-se uma mulher trans... Agora eu não sei se continuo escrevendo porque estou sentindo meu estômago borbulhando igual como quando fui fazer vestibular.


Ta, eu preciso tirar isso da cabeça e, quem sabe, isso ajude a dar um alivio pra cabeça, porém eu preciso de outra música, então vou dar play em um show do Portishead (uma banda que faz umas músicas que me inspiram na hora de escrever), então vamos lá:


Agora uma pequena volta no tempo até o dia que recebi a saia e o espelho me sorriu: os dias seguintes foram maravilhosos. Foi mais ou menos nessa época que surgiu a Fernanda (verdade seja dita: eu já usava esse nome na internet, pra aprimorar a escrita em gênero oposto ao meu) e eu, REALMENTE, achei que poderia ter duas personalidades, uma feminina e outra masculina, só que logo (logo = nos meses seguintes) isso dissipou e ficou um sentimento "tudo bem Lu usar saia" e assim estávamos até o começo da terapia onde essa dúvida ocorreu, porém na época eu estava mais tranquilo quanto a isso... o que fez até minha terapeuta respirar aliviada, porque ela não ia saber como lidar. Aliás, olhando hoje acho que ela se sentiu aliviada quando eu parei de ir... enfim, divagações.


Voltando ao momento presente: ocorre que ouvir aquele episódio do podcast me fez relembrar coisas que eu fazia quando criança/começo da adolescência. Além de entrar no quarto dos meus pais e vestir um tailleur lindo, com saia lápis camurça marrom-claro, camisa branca de botão, meia calça branca (fio 20 acho) e uma camisa de manga comprida em um tom de marrom-claro parecido com o da saia eu fazia outras coisas como, por exemplo: quando era adolescente eu tinha alguns amigos e a gente costumava pedalar com frequência e, por causa do calor, todo mundo acabava tirando a camiseta e, uns amarravam no guidão, outros no banco e eu colocava na testa, foi ali a primeira vez que senti a sensação de ter cabelo comprido e foi... incrível.


Quando terminei o ensino médio mudei de cidade (e de estado!) e lá tive uma forte crise depressiva que se estendeu por quase um ano onde eu mal comia, porém eu tinha uma coisa que sempre quis: o cabelo comprido. Talvez ali eu já tivesse um pequeno vislumbre do que poderia... ser. Quando estávamos pra mudar de cidade (e de estado, de novo!) fui convencido a cortar o cabelo, foram dias até conseguir me olhar no espelho de novo.


Mas, cidade nova e resolvi deixar crescer de novo. Passados mais algum tempo acabei cortando em parte por pressões domésticas e parte porque estava em um grande sei lá. Pois bem, fiz faculdade e acabei conhecendo muita gente legal e tals mas ninguém que me interessasse nem romântica nem sexualmente, vida que segue. No entanto, antes de eu me formar teve o ano de 2018, o ano zero, o ano que comprei a saia. Ali, com aqueles auspícios, eu resolvi não me tolher mais e seguir a minha verdade, ser fiel a mim mesmo, por isso deixei o cabelo crescer (pela terceira vez!) e até na formatura (2019) eu fui de cabelo já bem comprido... meu cabelo cresce mó rápido haha


Escrevi pra caralho, estou aqui sendo guiado por meus dedos e pensando se devo publicar esse texto... são 2:13 da manhã e eu estou, novamente, pensativo se posso (ou não) ser uma pessoa trans ou acabei me deixando influenciar pelo episódio. Queria ter condições de bancar uma terapia pra poder falar tudo isso, mas, por sorte, tenho esse blog que, organicamente, ninguém vai ler, só quem eu enviar o link.


Enfim, durante a escrita eu pausei várias vezes e acabei achando umas histórias interessantes (sobre Chevalier d'Eon) que, quem sabe, em algum momento traga aqui... é isso. Faz uma semana que estou em crise de despersonalização e, talvez, a "culpa" seja por eu não ter certeza sobre qual gênero eu sou. Sigo escrevendo "ele/dele" porém, não sem antes, dar uma pequena pausa antes e isso... me incomoda um pouco. Não sei dizer ao certo o que estou sentindo, por isso a ideia de estar frequentando uma terapia talvez fosse boa nesse momento... mas, o blog é o que tem pra hoje.


Merda. Achei que ia aliviar escrevendo tudo isso e, relendo uns pedaços, estou pensando seriamente em jogar esse escrito numa gaveta escura (não vou fazer) e esquecer dele por estar muito confuso e... ah, que se foda. Vou abrir o blogger e... hey, você está dentro da minha cabeça. Como diz uma música do Black Alien "cuidado pra não tropeçar, a mesa ainda ta aqui, porém mudei certezas de lugar"


Não revisei e nem vou, porque se começar a reler vou deletar partes inteiras então, desde já desculpa o textão e os eventuais erros de palavras escritas. De qualquer forma, obrigade quem leu e, se quiser deixar um comentário, fica a vontade.


Até breve o/


~ Lu

sábado, 5 de fevereiro de 2022

CdF - Outras histórias: Hello World

Dois anos haviam se passado desde aquele período onde Rafaela foi afastada do conselho da Lótus. No regresso dela a empresa sofreu financeiramente com alguns acionistas debandando, porém no começo do segundo ano um dos maiores grupos educacionais do mundo viu potencial e investiu pesado, o que permitiu um crescimento ainda maior com todos os benefícios aos funcionários que a mandatária gostava de manter.


Outra tarde de sexta começava e, no setor de comunicação a baixa demanda daquele dia permitia inúmeras conversas paralelas e revisão de conteúdos já aprovados, variações de peças já usadas em outros anos para servirem de gaveta ou um mero referencial. Desde a saída de Borges, Bethina assumiu a chefia do setor e, na estante ao fundo da sala podiam se ver alguns troféus em premiações de comunicação, ainda faltava o peixe grande que viria da Riviera Francesa, porém todos ali sabiam que ele viria, mais cedo ou mais tarde.


Dois andares acima Pablo, um dos responsáveis por manter o site da Lótus funcionando bebericava uma caneca de café pensativo. Haviam dias que ponderava se deveria dar esse passo, esse salto no escuro. Lembrou-se de um dos seus personagens de jogos preferido, onde ele subia as torres mais altas e pulava em uma carroça com feno, esse era o salto de fé. Ajustando os óculos que insistiam em correr pelo nariz o jovem de cabelos escuros, pele branca, corpo com IMC dentro do que se tem por normalidade e vinte e três anos de idade abriu uma tela extra além do compilador java que denunciava dezenas de erros no código, menos mal, antes eram centenas.


Com dois cliques em um ícone logo abaixo da lixeira ele abriu o software de envio de mensagens para qualquer pessoa na empresa, tudo de forma criptografada e usando os próprios servidores da Lótus como motor, nada estava na internet dentro desse programa. Correu a lista de possíveis nomes. Ana, Beatriz, Bethina, Carlos, Eduardo, Fernanda, Freya. Parou. Um clique decidido em cima do nome da redatora senior do setor de comunicação. Digitou uma frase e ponderou se devia enviar. Um alt+tab e a compilação ainda estava em curso tinha mais alguns minutos de espera que poderiam ser buscando mais café ou dando o salto de fé.


- Dona Fernanda - Optou pelo salto - Posso falar com a senhora?


O silêncio o sufocou mais que o dia em que, por uma miserável ponto-e-vírgula toda a parte responsiva do site parou de funcionar. Foram os dezesseis minutos mais tensos de sua vida até agora. Online. Digitando.


- Claro - Do outro lado da tela Fernanda tentava entender o que alguém do T.I. queria com ela, será que tinha clicado em algo que não devia? - Pois não? - Um instante se passou, Pablo, agora com a respiração mais cadenciada pousou as mãos sobre o teclado, seu ímpeto foi congelado - Mas antes - Parada cardíaca do jovem - Sem essa de senhora, não sou tão velha assim haha.


O suor frio correu a espinha por todas as suas vertebras mesmo com o ar condicionado ligado. "Respira fundo, vai, agora você consegue." pensava enquanto as mãos voltavam para o teclado.


- Gostaria de conversar com você, se possível pessoalmente... tem como?


- Tem sim - Fernanda franziu o cenho pensando na frase de Bethina que um dia a curiosidade a levaria à ruína, claro que ela dizia isso em um contexto do eterno jogo de RPG que nunca terminavam - Onde?


- Aqui na T.I. tem muita gente.


- Aqui na comunicação só tem gente haha - A redatora ajustou uma mecha de cabelo atrás da orelha percebendo que poderia ser algo grave - Eu conheço um lugar... você tem como sair agora?


- Tenho, me dê cinco minutos.


- Perfeito, te encontro na porta do seu setor.


- Beleza.


Pela cabeça de Fernanda passou um milhão de coisas, desde um admirador secreto até alguém que descobriu o segredo da Rafaela e queria saber o que fazer com a informação, enquanto subia os dois andares pelo elevador pensava porque ela, em meio a dezenas de funcionários, tinha sido a escolhida. Talvez porque fosse uma das funcionárias mais velhas da empresa, quase... seis anos. Bastante tempo. Quando parou na porta do T.I. podia sentir o ar gelado vazando por baixo da porta e pensou que ali deveria estar metade de conta de luz do prédio inteiro. A porta se abriu e o polo norte vazou um instante.


- O-obrigado por vir - Pablo tinha o olhar caído - Dona Fernanda.


- Esquece essa coisa de dona - Ela tocou sutilmente o ombro do rapaz - Me chama só de Fernanda.


- Ta bem... Don.. Fernanda.


- Melhor assim - A redatora sorriu - Vem, conheço um lugar ótimo para conversar, sem distrações.


- Onde?


- Lá em cima.


- Em uma das salas de reunião da presidência? - O jovem acompanhava Fernanda que trajava uma saia longa que lhe deixava apenas os pés fora do tecido e, na parte de cima uma blusa com estampa desbotada. - Mas... lá não é... só da presidência?


- Não, é mais pra cima - Do bolso da saia Fernanda tirou a chave que tinha cópia faziam seis longos anos - É no terraço.


- No terraço? - Pablo estranhou que Fernanda tivesse a chave, porém tinha ouvido falar da horta que havia ali. 


Tão logo a porta foi aberta a brisa jogou os cabelos de Fernanda para trás como uma onda. Já pablo, com camisa social, calça jeans e cabelo cheio de gel pouco foi afetado pelo vento. Um pequeno corredor entre painéis solares e uma horta com alface, couve, morangos além de temperos diversos culminava em um par de bancos com vista para a área não tão povoada da Metrópole. Sentaram-se.


- Então, o que queria conversar?


- Eu... - Pablo não sabia por onde começar, tinha ensaiado essa conversa tantas vezes na sua mente que agora estava procurando a palavra, era como se o seu código-fonte tivesse um erro crasso e não mostrasse nem mesmo um hello world. Respirou fundo uma, duas, na terceira a compilação da sua linguagem funcionou - Desculpa falar assim... Mas, desde que descobri que a senhora... digo, você é uma mulher trans eu...


- Tem curiosidade em saber como é? - Fernanda sentiu um pouco de raiva do rapaz na sua frente, era mais um nerd curioso querendo saber se ela tinha cortado o pau fora, se sentia prazer, se toparia alguma coisa a mais, ela ponderou sair e cantar a pedra à Freya que tomaria a decisão em demitir ou não - É sério, me fez sair do meu posto por uma curiosidade adolescente?


- Não não, calma. - Pablo tentava compilar o código da fala o mais rápido que conseguia - Aqui - Ele pegou o celular, desbloqueou e abri as fotos - Eu às vezes gosto de me montar como menina e...


- ... E você acha que pode ser trans? - Fernanda respirou profundamente mal olhando a tela do pequeno aparelho, não era a primeira vez que via algo assim - Sugiro você procurar uma psicóloga, o plano de saúde da firma tem umas ótimas.


- Não, não é nada disso - O rapaz tentava controlar sua oxigenação para que pudesse ter clareza no pensamento - Eu gosto de ser homem, eu só queria... sei lá, uma amiga.


- Estou ouvindo - Fernanda baixou a guarda, ele parecia com ela, anos atrás - O que exatamente espera?


- Eu moro em uma quitinete a meia cidade daqui, vim do interior do estado trabalhar na Lótus, mesmo morando aqui faz alguns anos eu não tenho amigos... - O olhar de Pablo se iluminou - Porém quando eu soube da sua história, da sua jornada eu fiquei... impactado.


- Impactado como?


- Bem... - Um sorriso se desenhou no canto dos lábios dele - ... Eu li o seu livro e gosto da ideia ser crossdresser, porém sozinho não tem graça... 


- Bom, você tem a internet inteira né?


- A internet é legal, mas falta... humanidade.


- Saquei. - Fernanda ainda tentava pensar o que faria por ele. - Mas assim... beleza, a gente é amigo e aí? Você vai querer que eu vá na sua casa e fique te vendo se montar?


- B-bem - A ideia de Pablo em linhas gerais era essa, no entanto lembrou do Altaïr e resolveu dar seu segundo salto de fé do dia - Eu acabei vendo nas suas redes que você e a dona Bethina vão em eventos de anime... cosplay e essas coisas...


- E você quer uma carona?


- É... sei lá, algo assim...


- Alguém junto para te dar coragem de sair do armário.


- Tipo isso, mas sem a parte do armário, eu estou de boa com minha sexualidade...


- Então o problema são só as roupas?


- São, como vim de uma cidade muito pequena eu fico encucado com isso, fico achando que é errado e...


- Tudo bem - Fernanda entendeu o ponto dele, se tivesse tido esse apoio desde o começo talvez as coisas tivessem sido menos traumáticas e demoradas - Só que eu vou precisar falar com a Bê primeiro... mas ela é... de boa... que dia é hoje...


- Seis...?


- Ah, perfeito, a TPM dela já foi, fica mais fácil de domar a fera.


- Então...?


- Eu vou te ajudar, vou testar meus dotes de maquiadora - Fernanda, enfim, olhou as fotos com mais esmero - E vou te passar o contato de uma mina que faz roupas sob medida, mas relaxa, ela é bem discreta e não é careira... foi ela que fez meu vestido de noiva inclusive.


- Sério? - Pablo tinha os olhos marejados por trás dos óculos - Só...


- Eu sei, não vou falar com ninguém, só com a Bê... me adiciona aí na sua agenda que, durante o final de semana, quem sabe, marcamos algo.


Se abraçaram enquanto Pablo voltava a agradecer Fernanda. Caminharam sendo brindados pela brisa Leste-Oeste que, ela jurava, sentir o cheiro do mar vindo junto do vento. Antes de passar pela porta ela pegou um galho de manjericão, molho de tomate ficava infinitamente mais saboroso com ele.


Ao fim da pequena escada que levava do andar da sala da presidência ao terraço se despediram. O jovem entrou no elevador enquanto Freya, no fundo do corredor olhava fixamente para Fernanda que a cumprimentou com um aceno de cabeça. A secretária leal de Rafaela fez um gesto como quem diz que está de olho. A redatora fez uma careta e mostrou a língua relembrando o que já tinham vivido juntas. Quer dizer, Fernando viveu, Fernanda meio que só assistiu. Por oito andares ela pensou em fazer uma sessão com Rafaela, Freya, Vali e aquele outro rapaz que aparecia esporadicamente na cobertura. Será que Bethina toparia? Soltou o ar pesadamente voltando ao setor de comunicação que estava idêntico a pouco menos de uma hora atrás. Menos mal.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

CdF - Epílogo

 Epilogo


"
Ontem foi, provavelmente, o dia mais tenso na vida da Fernanda. A primeira vez que ela foi totalmente como a mulher linda que ela é. Haviam se passado alguns meses e o ano passado acabou voando tão rápido e com tanta coisa sendo feita simultaneamente que, mesmo com tudo agendado, ela não se sentiu a vontade para bagunçar a Lótus. Ainda não.

Lembro bem do dia que fui comunicar a Rafaela que, depois da virada do ano, ela não teria mais um funcionário e sim uma funcionária. Ela quis saber detalhes, me chamou para o almoço naquele restaurante que nunca foi pro meu bico e contei tudo. Falei das crises, das conversas que tínhamos e de todos os próximos passos. Acho que era meio de outubro ou um pouco antes... Ela quis saber até se Fernanda faria a cirurgia. Respondi que sim, dali alguns dias e, por isso, íamos nos ausentar. Por incrível que pareça ela aceitou de boa, era como se ela soubesse o quanto Fê precisava daquele apoio, aquela base.

E pensar que a cirurgia ocorreu tão bem e a recuperação foi tão rápida que me assustei. Ver Fernanda, agora uma mulher por dentro e por fora me causou uma pequena estranheza inicial... mas, tudo estava ali. Rafaela deixou que ela ficasse de licença um prazo maior do que o do atestado. Naquele tempo ela fez inúmeras demandas pro meu setor para algumas propagandas inclusivas de pessoas trans e coisas do tipo. Além disso promoveu cursos, seminários internos... ela tinha o poder de pavimentar um bom caminho até o regresso da borboleta agora dona das próprias asas.

Aquele ano a Lótus entrou em férias alguns dias antes para algumas reformas no prédio ou algo do tipo. Ainda bem, pois nesses dias extras pudemos correr atrás dos documentos. Quando a identidade saiu Fernanda ficou longos minutos olhando para a própria imagem naquela foto minúscula e que todo mundo sai horrível. Por algum complô do universo ela saiu linda, essa desgraçada aprendeu a se maquiar tão bem quanto eu.

Passados alguns dias fomos ao shopping juntas, ela uma mulher mais alta e eu, para não ficar muito baixa, tive que me virar com salto. Naquele dia senti saudade do meu all star. Depois fomos a um pagode e lembrei daquele dia da sessão de fotos... ela estava maravilhosa. Ficamos alguns dias na Ilha que a mãe dela mora e depois fomos passear pela Metrópole. Eu confesso que ia ficando tensa conforme o dia do regresso ao trampo ia chegando... como ela reagiria? Como os outros reagiriam? Que medo.

No dia do regresso todo mundo olhou com estranheza, alguns perguntaram quem era, outros descobriram logo de cara, mas, fora a estranheza, não notei nenhum preconceito ou até mesmo algo que pudesse soar ofensivo. O treinamento somado às constantes evoluções do mundo foram determinantes para que chegássemos aqui... aquela pandemia fez muita gente repensar o que era certo e o que era errado também. A recepcionista olhou estranho, achei que ela ia dizer alguma coisa como não ser de deus ou coisa do tipo... graças que não.

No fim a aceitação dela foi tão boa e tão positiva que acho que tive medo a toa. Mas também, conhecendo minha borboletinha como conheço, sei que ela tem incontáveis voos a realizar ainda. Sobretudo agora que é minha subordinada na empresa... vai ser uma nova fase pra nós duas, um aprendizado. Não sei como acharam que eu era boa o suficiente para substituir o Borges que foi trabalhar numa multinacional de alimentos com, dizem, um salário menor mas com muitas viagens internacionais pra fazer pela nova empresa. Sucesso pra ele.

Guardei esse último instante para olhá-la na janela, escovando o cabelo seminua. A cada passada os fios pareciam ganhar mais brilho, aquela cintura mais desenhada, os seios que vieram um pouco menores que os meus e aquela bunda... ah aquela bunda. Os anos de ciclista dela estavam ali naquele patrimônio que é só meu. O foda de pensar nas mudanças estéticas de Fernanda é ver o quanto ela não mudou por dentro. Continua uma criança que coleciona carrinho e gosta de ver corrida de carro na TV, que cozinha divinamente bem, tem um senso de humor único... o tanto de coisa que mudou nela não mudou em nada o meu sentimento por ela, aliás, mudou sim. Amo ela cada dia mais sendo dona de si, sendo a mulher que ela nasceu para ser e o melhor: sendo minha mulher. Nada é mais perfeito que isso.
"

- E aí, o quê achou?

- Que nós duas - Fernanda me olhou fixamente - temos um futuro brilhante escrevendo.


- Acha mesmo?


- Acho sim - Ela deu uma olhada para a tela - Algumas pequenas adaptações e pode virar um livro, quem sabe filme, série... já pensou?


- Não viaja, mô...


- Não tô viajando.


E assim, selamos o contrato de parceria com um beijo. Oficialmente temos uma história para começar a contar e que irá durar muitos e muitos anos ou, como diria o poeta: infinito enquanto dure. E, enquanto durar, será repleto de amor.

sábado, 9 de janeiro de 2021

Dois

 

Passou o dia 5 e, por N motivos eu não consegui postar o que eu queria... então esperei o dia certo pra fazer esse post. Então é hora de estralar os dedos e escrever um pouco.


Mas o que tem o dia 5 de janeiro de tão especial? Simples: faz 2 anos que eu recebi a saia, aquela que foi o divisor de águas do que eu era pro que eu sou. Foram tantas descobertas, tantas coisas que fixei no meu novo eu que acho que não consigo descrever em palavras sabe? Mas vou tentar.

Tive sessão de terapia (menines, papo sério: façam terapia! Procurando bem sempre acha uma bem gente boa e bem em conta) e comentei o quanto eu sentia que tinha mudado depois da saia e minha terapeuta (que vai ler aqui, pq vou mandar o link pra ela haha) disse "e a terapia?" e eu "a terapia ajudou pra caralho" e ajudou mesmo, porque ajudou a fixar algumas coisas cá dentro.

A primeira e talvez mais importante pra mim é: Não, eu não sou trans. Longe disso ser um problema, mas eu me identifico de boas com meu sexo de nascimento e só curto parecer, a ideia de deixar esse meu lado mais feminino sair pra dar umas voltas, pra fazer umas fotos, passar horas em lojas online fuçando é o meu objetivo.

Uma das coisas que me aquece o coração é a ideia de modelar, fazer do crossdressismo (transformei crossdresser em verbo haha) uma arte e quando eu digo arte é no objetivo principal da arte que é chocar, é causar a estranheza, é provocar o que já está estabelecido e, com isso, transformar um pouquinho que seja a realidade do mundo... aliás, se meus relatos, minhas dúvidas e minhas conclusões ajudarem UMA pessoa a se encontrar nesse mundo confuso já vai me deixar feliz num nível que não vou conseguir explicar.

A segunda é eu ter descoberto que crossdresser é o objetivo que quero, como já disse, é um processo lento, doloroso mas que hoje olho pra trás e vejo que, velho, valeu a pena... ta valendo a pena. E o projeto é seguir em frente, por enquanto não vou falar muito, mas conforme a coisa for ganhando forma vocês vão saber!

Um parênteses antes de encerrar: Os escritos de Fernandes vão voltar, essa temporada (a terceira) é a última... o que não quer dizer que não vou escrever mais pros Contos de Fernandes, mas né... quando eu terminar e escrever tudo que planejei a história vai fechar e depois acaba virando novelão e... não esse é o objetivo.


E que esses dois anos virem três, seis, dez, vinte e que eu possa inspirar outres crossdressers a saírem, fazerem o que der na telha quando quiser! Quem foi que definiu que vestido/saia é exclusivo do vestuário feminino? Nos próximos meses vou trazer um termo novo aqui pro blog que quero expandir, o tal do genderless que se aplica mais à moda e tals, mas ainda vou boltar um conteúdo show sobre isso! Me aguardem ;)

Ah, você menina/mulher que gosta de se montar como menino, aqui tem espaço pra vocês também viu? Se tem uma coisa que esse blog quer é ouvir a voz de todo mundo!


Agora pra comemorar esses dois anos da minha saia (ainda solitária) eu fiz uma foto na laje, durante o dia... não é uma mega foto mas fica de marco especial pra data que passou! Ei-la: 




Cuidem-se, bebam bastante água, cuidado com os embustes, sejam felizes e fieis a vocês em primeiro lugar! 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

CdF s3e2: Pedal

Eu devia ter tomado uma atitude muito tempo atrás, meses atrás mas não tomei e agora ela parecia tão grande quando, na verdade, era só o que eu sempre desejei e pronto. Confesso que tinham dias que eu não queria tomar os remédios, não queria me olhar no espelho... mas, no fundo, eu notava que aquela silhueta que brotava no espelho era quem eu sempre quis ser, era a criatura que eu tanto namorei nos aplicativos que trocam o rosto, nas malfadadas tentativas de me maquiar... estava vindo, porém eu ia me desapegar do Fernando pra sempre e isso era o que mais me assustava.

Junto da terapia me foi sugerida uma rotina fixa, atividades que eu pudesse me focar cem por cento do tempo até não ter mais tantos surtos quanto tive no começo do ano. A ideia era ótima e o apoio de Bethina era o que me impedia de saltar da janela. Mas, ao mesmo tempo, eu me sentia egoísta obrigando ela a viver isso tudo. 

A imensa verdade é que essa criação de uma rotina ajudou pra caralho, no entanto não posso ficar o tempo todo fazendo alguma coisa, tem momentos que preciso de uma dose de ócio pra aflorar a criatividade, foi numa dessas que eu chamei Bethina pra pedalar no parque depois do trabalho na sexta. Ela quis reclamar mas acho que a exaustão a fez aceitar. Claro que eu não tinha a menor vontade de ficar andando a esmo nas ciclovias e sim achar um banco, respirar um pouco de ar puro...

- Sabê, Bê - Era curioso como o parque estava tão vazio, achar um lugar pra sentar foi extremamente fácil - Às vezes acho que eu tô atrapalhando a sua vida.

- Às vezes você fala umas bobagens - Ela sorriu me olhando de canto - Mas vamos ver, por que você acha isso?

- Ah sei lá - Respirei fundo tentando fugir daqueles olhos - Sou uma criatura meio bizarra ainda... estou na fronteira do que eu sou e quero ser...

- E...?

- E isso atrapalha sua vida cara, você merece alguém mais centrado, mais certo das ideias e não essa...

Não tive como continuar. Bethina puxou meu rosto e me deu um beijo tão apaixonado que não sei como contive a inundação de lágrimas dentro das pálpebras, de repente todo aquele diálogo, todas as minhas palavras, todo o parque, a Metrópole, o país, o planeta, o universo e toda a criação deixaram de existir e só nós duas estávamos ali, não poderia precisar quanto tempo durou, mas foi o suficiente para fazer qualquer núvem que pairava em meu pensamento ficar seriamente desnorteada.

- Sabe qual o seu problema Fê? - Não consegui responder, apenas fiz a negativa com o queixo - Você pensa demais... lembra o dia que você comprou sua primeira saia?

- L-lembro - A lágrima escorreu - Eu já te contei essa história?

- Não, mas eu sou hacker e achei teu blog velho.

- Olha ela - Enxuguei a lágrima - Continue.

- Então... Você teve a decisão, foi lá, comprou, pagou e quando ela chegou pelo correio você se sentiu a pessoa mais realizada do mundo, nada importava, sem passado, sem futuro... só aquele ventinho frio por baixo e a sensação de liberdade... - As lágrimas voltaram - Me diz, as saias seguintes foram tão prazerosas quanto essa?

- Não tanto... não vou dizer que virou algo normal, porque ainda me dá certos calafrios entrar em uma loja e comprar algo pra minha sobrinha, afilhada ou até mesmo noiva...

- Noiva? - Bethina me deu um tapa no braço - A senhorita anda me traindo é?

- Não! - Corei de leve - É só...

- Eu sei boba. - Pausamos um instante - E que você não quer entrar em uma loja e dizer que é pra você? Poder experimentar... me diz, quantas vezes você comprou o tamanho errado e teve que voltar na loja pra trocar?

- Poucas... 

- A maioria você aceita a derrota e joga a peça no canto e na primeira doação de natal você se livra delas, tô ligada.

- Nossa... você tem um jeitinho tão cínico de falar essas coisas...

- Você diz cínico e eu digo verdadeira... agora 'bora pra casa.

Eu estava ali durante todo o trajeto até em casa, eu respondia, falava mas não me sentia aqui, tudo estava martelando dentro da cabeça. Ela tinha razão. Perdi no par ou ímpar e ela escolheu que eu fosse tomar banho primeiro. Acho que ela já esperava essa reação minha e por isso me fez confrontar o espelho. Cá estava eu vendo meu reflexo, cabelo solto, rosto afinando, seios já despontando e ereções quase nulas... e talvez fosse isso aí, esse é o objetivo que eu, desde aquela primeira vez que vi a possibilidade de me montar e agora a oportunidade real de me tornar a mulher que sempre quis ser. Respirei fundo e entrei debaixo do chuveiro enquanto o cheiro de comida vinha da cozinha. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CdF s3e1 - Surpresa

Ainda lembro da primeira crise forte, foi no meio da noite com Fernanda tossindo muito, antes que eu pudesse ampará-la ela saiu para o banheiro e a tosse cessou. Sorri aliviada esperando o sono voltar... mas algo dentro de mim não deixou. Da fresta da janela vinha o ruído típico da Metrópole acordando com uma fina brisa que dava ao sexto dia do ano um ar de outono. Me levantei indo até a porta do banheiro fechada que vazava luz por baixo. Bati uma vez. Silêncio. Bati duas. Nada. Bati a terceira.

- Amor - Falei em tom preocupado voltando a bater - Tudo bem aí?

Silêncio. Com o histórico dela eu odiava o silêncio. Já ponderava como faria pra arrombar a porta e levá-la às pressas pro hospital. Testei a fechadura. Não estava trancada. No fundo do box podia ver uma silhueta abaixada sentada no chão. Meu primeiro pensamento - e que se tornou ação - foi me aproximar.

- Fica longe - A voz desafinada tomou conta do ambiente - Vai embora! - Os soluços de choro se misturavam às ondas sonoras que preenchiam o diminuto cômodo - Eu sou uma aberração!

Tinha dito à psicologa que saberia lidar com as prováveis crises dela durante a parte medicamentosa da transição, mas vê-la se chamar de aberração foi como uma faca entrando no meu peito. Naquele momento tudo que podia fazer foi abraçá-la até a crise passar e dormimos ali mesmo. No dia seguinte ela me pediu desculpa.

Os dias que se seguiram também não foram fáceis. Quase toda noite, nas mais variadas intensidades, Fernanda se achava uma aberração, um ser entre o masculino e o feminino. Toda a puberdade condensada em um ano e meio, talvez dois anos. Pesquisei o que fazer. Perguntei à psicologa e as duas voltaram com o mesmo resultado: só o tempo. Negócio é fazer como minha mãe sempre disse: se você quer mesmo ver o céu noturno iluminado tem que segurar o rojão. Por isso aguentei firme uma semana.

Pensei em pedir ajuda para Freya, mas não tinha como, ela estava na Itália com Rafaela e aquele outro rapaz. Aguenta firme, Bethina. Você é forte. Dez dias se passaram e as férias já estavam no fim. Talvez uma rotina ajudasse. Umas poucas pessoas voltaram dias antes do restante dos funcionários porque teríamos reuniões internas para alinhar discursos. Fernanda preferiu se esconder atrás da máscara de menino, o foda que eu não podia julgar ela, tudo a seu tempo. 

Logo depois da primeira reunião Freya notou meu estado e, tão logo conseguiu, me puxou de lado para conversar.

- Você tá bem? - Ela me olhava preocupada - Parece que você não dorme fazem noites...

- É porque eu não durmo mesmo - Eu estava com tremedeiras - Eu sabia que ia ser difícil... mas tanto...

- Fala de Fernanda?

- Sim.

- Me conta.

- Ah... ela tem tido umas reações adversas aos remédios, tido uns surtos de noite... aí mesmo que nos últimos dias ela esteja mais tranquila eu não consigo pregar o olho direito.

- Entendi... - Freya puxou o celular do bolso, mandou uma mensagem meio longa, achei um pouco falta de respeito mas ela é minha superior, então né, melhor esperar, vai que é algo mais importante que meu drama pessoal - A dona Rafaela quer falar contigo.

- É? - Estava em uma condição tão lamentável que nem me arrepiei com a situação - Sobre o que ela quer falar?

- Surpresa.

Caminhei da pequena sala de reuniões onde estava conversando com Freya pelo corredor até a sala da presidência. Fernanda me mandou mensagem toda amorosa perguntando o que tinha acontecido. A bipolaridade de humor dela era ágil, pelo visto a rotina era o que ela precisava para entrar um pouco nos eixos. Respondi que Rafaela tinha me chamado para discutir alguns detalhes de design de alguns produtos. Uma mentira que não fazia mal algum. Bati de leve na porta e ouvi a voz característica da chefa falando para eu entrar.

- Mandou me chamar, chefa?

- Mandei... - Rafaela estava com o olho fixo no monitor do notebook, dois segundos depois me olhou de cima abaixo - Realmente, Freya tem razão, você está só o pó da gaita.

- Como assim?

- Está com olheiras, ombros caídos... - Ela se levantou e caminhou na minha direção - Eu nem consigo imaginar pelo que você está passando com Fernanda... mas eu tenho uma proposta.

- Proposta? - Arqueei a sobrancelha - Que proposta?

- Vou te dar um final de semana em um spa, só pra você... - Ela me tocou os lábios quando eu ia falar - E pode deixar que eu cuido de Fernanda por esses dias, sei quais botões tocar pra acalmar aquela borboletinha saindo do casulo... e quando Fernanda perguntar diga que vai fazer um curso na Cidade Maravilhosa, se ela não acreditar diga pra vir falar comigo.

Não ousei questionar. Não conseguia reagir. Não que fosse a coisa mais certa do mundo, mas sentia que precisava desse espacinho, desses dois dias para pensar em tudo e relaxar e confiava em Rafaela cuidando de Fernanda. Sem qualquer outra reação a abracei, gesto que foi retribuído. Quem disse que chefe é tudo ruim e não liga pra funcionário mesmo? Pelo visto queimei minha língua.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Sessão de Terapia

Olá pessoas, como estão?

Sei que quase ninguém lê aqui e depois do livro que virou a história de Fernandes (CdF, pra quem chegou faz pouco tempo, é 'Cronicas de Fernandes') menos gente ainda lê (a média de acessos diz que tem entre 3 e 10 views por post), porém como o objetivo aqui nunca foi fazer sucesso e sim escrever uma história que foi surgindo conforme minhas dúvidas surgiam... é, até que rendeu né? E teremos uma temporada 3? Quién lo sabe? Eu adoro trilogias, quem sabe né? Mas por ora, vamos deixar assim.

A verdade é que criei esse blog como válvula de escape pra mim, uma pessoa confusa no que dizia respeito a sua sexualidade e suas neuras internas. Comprar a saia, pra mim, foi um divisor de águas imenso, me fez bem, melhorou minha auto-estima, porém trouxe consigo dezenas de dúvidas que vou escrever aqui mais como um desabafo do que como algo pra inspirar ninguém ok? Eu estou escrevendo a MINHA jornada até aqui.

O começo


Quando eu comprei a saia em finais de 2018 (juro, parece muito mais tempo) eu dividi minha personalidade, o Lu era o menino-hétero-bonitinho-que-curte-automobilismo e a Fê que era a menina-que-curte-rosa-e-tudo-do-universo-feminino, só que eu não me sentia bem com isso, aí eu comecei a "matar" a Fê, só que né, ficou uma sensação meio de vazio e resolvi pegar a personagem que eu já tinha criado (o Fernando é uma personagem que criei quase como uma fanfic dos escritos da Senhora Pam, o incrível e super recomendado Senhora de Três) e a minha ideia quando comecei a escrever era ir tateando as coisas sabem? Primeiro a ideia da personagem ser a sissy de uma domme era o meu desejo na época, depois a personagem "evoluiu" pra crossdresser (onde passei também) e por fim se descobriu que a personagem é, na verdade, uma mulher trans.

Eu não sei quantos de vocês que leem aqui também tem o hábito de escrever, mas quando eu escrevo eu não controlo o que minhas personagens vão fazer sabe? Eu tenho a ideia e deixo fluir e no fim eu acabo me surpreendendo com os rumos do que escrevo, por isso o próximo paragrafo...

No meio pro fim do ano passado eu estava realmente achando que eu poderia ser uma pessoa trans, sério mesmo, já estava lendo relatos, vendo os remédios que se toma e todo o processo, porém a ideia não me satisfazia, ela era como uma febre terçã, durava pouco e não era o caminho que eu queria... e assim o ano de 2019 se arrastou comigo usando a saia vez ou outra e contanto pra algumas pessoas e aí vem o próximo parágrafo.

Felicidade compartilhada


Como já contei naquele post eu senti uma alegria tão intensa e imensa por ter realizado isso que eu quis berrar pra todo mundo. Só que quase instantaneamente veio a realidade e falou "ow peraê" e lembrei que moro em Santa Catarina, um dos estados mais homofóbicos/racistas do Brasil (aqui é tutu alemón) então respirei fundo e, durante o ano de 2019, eu fui escolhendo a dedo as pessoas que eu falaria sobre e todas (até o momento umas 10 mulheres e 2 homens (tenho mais amigas que amigos, fazer o que né?)) super compreensivos, alguns até me falaram que era tão bom me ver feliz com algo (relembrar isso me mareja as vistas), porém tem uma única pessoa que eu queria falar só que por ora não tenho como que é minha mãe (Fernandes, te invejo) e acho que é isso que me falta pra ter uma felicidade interna plena... mas se a reação de todo mundo foi boa por que eu acho que da minha mãe vai ser diferente? Não sei. Esse é um dos mistérios da vida.

Um outro caminho


Comecei 2020 com um emprego na área que sou formado (publicidade) e o panorama era o melhor possível, estava conseguindo guardar uma grana, no meio do ano ia viajar pra SP pra "sentir" a cidade e conhecer pessoalmente algumas pessoas que só conheço da internet e em dezembro/janeiro eu pegaria as férias e ia de novo pra SP procurar emprego na minha área e, encontrando, eu me demitiria e ia pra cidade que quero morar sozinho já tem um tempo... só que aí veio o coronga e miou tanto os meus planos quanto da empresa que eu trabalhava, ou seja: fui demitido em abril, por sorte o Lu aqui é uma pessoa precavida e tinha uma reserva que durou até julho (pois é, daqui pra frente vai ser osso...) e agora estou correndo atrás de uns freelazinhos.

E como a vida é uma caixinha de surpresas minha prima me manda um vídeo de um cara chamado Guilherme Rocker, figura magricela com um cabelo incrível... pois bem, assisti alguns vídeos dele curtindo o estilo, porém o gatilho que fez a chave virar foi o documentário sobre o Walter Mercado que tem na netflix nossa de cada dia... lá alguém falou que o Walter era andrógino e essa palavra tipo explodiu na minha cabeça saca? Tipo aquele gif.. wooooow

Fui ler sobre e passei a me interessar pelo estilo e veio de encontro com algo que eu já tinha na cabeça desde o começo do ano...

Falando no começo do ano de volta: Quando eu entrei no emprego eu resolvi fazer terapia (menines, façam terapia, é ótimo!) e fui logo falando pra ela minhas neuras e tudo mais e ela tem me ajudado a normatizar essa coisa de usar saia na minha cabeça... eu falei uma frase que ela até guardou e foi uma paráfrase duma "ministra" do governo atual: Meninos usam azul e meninas rosa... e eu? Eu gosto do roxo.

(quem não sabe roxo é a mistura de azul com vermelho)

E aí sigo aqui, encantado por coisas roxas e cada vez mais interessado na ideia de ser andrógino, parece que o "não-escolher" também é uma forma de escolha afinal.

No mais é isso que eu queria dividir com vocês! E não se esqueçam de se permitir porque sim, você merece ser feliz hoje!

Até a próxima 
~ Lu