sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

CdF: s2e7: Vinho

Hoje olhando Bethina cozinhar enquanto eu ficava no computador tentando escrever algo notei o quão idiota eu tinha sido até o momento. Tantos momentos que quase fui flagrada, tantas vezes que quis desistir de tudo apenas por achar que já tinha vivido aquela experiência juvenil. Agora eu estava em um dilema imenso: seguir pelo caminho da operação e virar uma mulher completa ou me manter essa criatura híbrida.
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Já diria o poeta que cada escolha é uma renúncia. Confesso que a ideia de apenas tomar os hormônios me atraía mais do que operar, teria peito, talvez tivesse uma ereção vez ou outra... seria a mulher que sempre quis sem deixar de ser o homem que nasci. "Homem". Pensar nesse termo me deu um peso absurdo. Até mesmo "mulher" me era estranho. Gostava de usar "menino" e "menina", talvez pela inocência das palavras. Enquanto olhava o cursor na tela em branco deixei a vista desfocar algumas vezes, hoje estava com uma bermuda mais larga, camiseta, cabelo preso por uma piranha... Bethina ao contrário estava com um belo vestido, o que contrastava com o fato dela estar limpando a cozinha.
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Desde aquela noite que tomei a decisão morávamos juntos. Ela devolveu o apartamento, trouxe suas coisas pra cá e tentávamos seguir dali. Por sorte eu tinha conseguido um bom espaço e tanto o quarto quanto a sala eram áreas grandes que cabia a pequena coleção de bonecas negras dela. Eram bonitas, alguns dos vestidos, inclusive, entraram na minha lista dos sonhos.
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Aquele cursor piscando me sufocava. Fechei o bloco de notas. Apelei pra uma banda que sempre me apoiou e foi dali que segui, de olhos completamente fechados, escrevendo as próximas linhas, sem pensar muito na ortografia, nas regras linguísticas e, sobretudo, esquecendo aquela maldita regra da redação publicitária de que menos é mais.
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A terapia me ajudou nos últimos tempos a ter uma confiança maior no que eu sou e onde eu quero chegar - ainda que com dúvidas - e, independente das opiniões alheias, eu estou firme nessa escolha. Claro que eu não vou estar firme como uma rocha e sim como um palanque de cerca no banhado, não caio para lado nenhum, porém não estou firme. Pensar isso me trouxe uma certa dor no, um certo desconforto, a vontade de pegar o telefone e ligar para ela agora e dizer tudo que estava entalado em minha garganta era tanta que eu não conseguia conter meus dedos digitando cada vez mais rápido, cada vez mais intensos, cada vez mais visceral. Eu sentia como se as palavras me dominassem e eu estivesse, enfim, pronta para dizer ao mundo inteiro "hey mundo, essa sou eu" e aceitar as consequências.
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Claro que essa síncope não durava muito e logo a racionalidade me dizia para repensar, que tudo não era tão simples como eu gostaria que fosse. Tomar no cu. Qual o problema com você, sociedade? Eu me sinto bem assim, eu gosto disso, eu estou disposta à críticas como "essa saia não combina com essa blusa" ou ainda "você veio de vestido longo? Nossa, ta muito calor pra isso", agora críticas ao fato de, biologicamente, eu ainda ser homem e estar de vestido? Qual o problema? São só pedaços de pano costurados de forma diferente. Merda. Pensar nisso tudo me cansava, me deprimia... mas era preciso.
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Que Bethina - agora no banheiro tomando um demorado banho de sábado - não me visse com a garrafa inteira de vinho diante do monitor. Eu precisava desse momento. Eu precisava dessa liberdade. Dessa fluidez de letras saindo de meu cérebro e indo por minhas terminações nervosas socando o teclado com velocidade e violência e se desenhando letras no monitor. O cursor solitário agora ganhava a companhia de cem, duzentas, trezentas, mil palavras. Estava tão rápido que fiquei com medo de não conseguir parar. Reabri os olhos passando a vista pelo que já fora escrito, nenhum erro. Apenas o nome de Bethina, que, para o corretor, tinha que ser sem o H que lhe dava charme e o transformava em algo único. Botão direito, adicionar palavra ao dicionário. Pronto. Toma essa, Word.
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Ela cantarola uma música. Give me a reason to be... a woman, I just wanna be a woman. Conhecia essa letra. Glory Box do Portishead era uma das música que me fazia soltar pequenos suspiros no começo da vida "adulta". Gostava da ideia de "be a woman", hoje tanto faz. Estaria mentindo se falasse que não gosto da ideia de me transformar em uma mulher completa. Ter, além dos peitos, uma bela vagina penetrável. O foda que isso, agora, se tornava algo tão secundário que já pensava na ideia de tomar os hormônios mas não ir pra mesa de cirurgia. Teria o peito, o rosto ficaria mais feminino, os incômodos pelos do corpo ou cairiam ou ficariam finos o suficiente para que a depilação fosse menos agressiva. E ainda manteria o pinto. Pinto. Que termo bosta.
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De repente bateu uma saudade da cobertura. Uma rápida olhada no relógio. Vinte horas e dois minutos. Certamente Vali estava preparando o jantar enquanto Rafaela e Freya ainda discutiam coisas da empresa. Confesso que a saudade se dissipou ao pensar que a vida ficaria limitada à uma só: o que Rafaela decidir seria a lei. Gostava do conceito. Gostava das práticas. Mas viver aquilo na totalidade? Sem chance. Soube de um dos amigos da minha ex-senhora que teria uma puta festa de carnaval, fechando um clube por três dias. Não lembro o nome da Domme que mandou o convite, mas devia ser algum daqueles nomes toscos baseados em algo dark ou gótico. Tinha horas que eu queria baixar meu lado publicitária naquela galera e dizer que uma Domme pode usar branco e se chamar Silvia. Rafaela, inclusive, era o melhor exemplo disso. Claro que o preto era a cor preferida da galera, mas o bordô, o roxo e até o tons escuros de azul e verde super combinavam com as práticas. Rebranding. Qualquer hora escrevia algo assim e mandava para Rafaela. Na pior das hipóteses ela ia rir.
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O chuveiro parou. Bethina levaria alguns minutos até secar o cabelo, passar todos os cremes, colocar alguma roupa extremamente confortável e reclamar que eu estava indo tomar banho muito tarde. Virei a última dose de vinho da garrafa em um gole longo. Não queimou nem nada. O efeito viria daqui meia hora ou menos, tontura, sentidos largos, sono... acho que o banho vai ficar para amanhã.
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Os olhos seguiam fechados como se eu pudesse sentir cada palavra que escrevia, mas, na verdade, eu pensava em tantas outras coisas enquanto escrevo, que nem sei dizer ao certo mais no que eu penso. A imensa verdade é que, assim, eu escrevo algo mais mental e menos visual, me preocupo menos se eu repeti tal palavra no decorrer desse parágrafo ou tenho que usar um sinônimo. A porta do banheiro abriu. Segui de olhos fechados digitando, estava tentando não pensar na conversa que teria com minha progenitora dali alguns dias sobre absolutamente tudo isso aqui. Pensar nisso, admito, me fez querer outra garrafa de vinho. Não tinha. Será que o mercado ainda estava aberto? "Não fode", foi a voz da minha consciência. Tinha tantas palavras passando ao mesmo tempo por minha cabeça que perdi totalmente a noção de tempo e espaço, eu estava flutuando, minha única certeza de ainda estar no mesmo lugar era o fato da gravidade ainda ser a mesma.
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_ Admiro pra caralho essa sua habilidade - A voz vinha de Bethina, meio metro atrás da minha orelha esquerda - Digitar sem olhar pro teclado ou mesmo pro monitor? Namoral amor, cê é foda.
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_ É prática - Respondi à ela enquanto escrevia exatamente a cena que acontecia - Com o tempo você não pensa mais na sequência do teclado e sim no que você quer dizer, seu cérebro entra em um moto tão automático que você não precisa pensar na ordem das letras e sim na ordem do que quer escrever...
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_ Tipo pedalar? Você diz que pedala no automático - Ela parou um instante - Você está transcrevendo o que estou dizendo? Puta merda, Fê...
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_ Não gosta? - Arqueei a sobrancelha ainda sem abrir os olhos - Quiser eu apago...
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_ Não, deixa... só é meio estranho você de olhos fechados digitando nessa velocidade e sem errar... puta que pariu, até meus palavrões você digita, pára com isso Fê, anda logo, parou.. vai tomar banho enquanto eu leio o que você escreveu.
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_ Não vou tomar banho hoje - Fiz caretinha - Tô com preguiça... mais a mais mal saí de casa.
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_ Namorada porquinha essa minha e... - ela parou completamente, abri os olhos - A senhorita andou bebendo, dona Fernanda? 
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_ Só um pouquin...
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_ Um pouquinho é o caralho, cê bebeu a garrafa toda garota.
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O flagrante é, sem sombra de dúvidas, uma das piores coisas para o mentiroso. Aquela vez da camisola até deu certo, mas a do guarda-roupas... não deu tempo de pensar em uma saída. Enquanto eu digitava Bethina falava algo sobre eu não poder beber tanto porque isso estimulava as inquietas sombras e muitos outros blá-blá-blá que ela falava e eu entrei em um modo onde não mais a ouvia. Podia continuar escrevendo sem me preocupar com o ruído ao meu redor. Quando ela começou a puxar a cadeira me lembrei de minha mãe quando vinha duas e tanto da manhã reclamar que eu ainda estava no computador. Bethina pausou suas palavras e ficou apenas lendo o que eu escrevia, a verdade é que eu adorava a voz dela e, mesmo tomando um bronca por quebrar um dos nossos acordos sobre bebida, eu ainda estava amando ouvir a voz dela. Eu era uma boba apaixonada? Com certeza. Curiosidade do momento: ela estava completamente dividida entre me tirar da frente do computador e me colocar, de roupa e tudo, debaixo do chuveiro e simplesmente seguir olhando o que eu escrevia. Sorri de canto.
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_ Desistiu?
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_ Não... estou te esperando terminar... - o tom de voz dela era amistoso, conciliador eu diria - Que pausa foi essa? Terminou?
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_ Não... se deixar eu fico escrevendo aqui indefinidamente...
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_ E sobre o quê escrevia quando saí do banho?
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_ Sobre... estar flutuando, sobre as possibilidades do meio do ano e todas as nuances que poderia significar aquela revelação...
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_ Poderia??? - O tom de voz dela agora mudou - Você me prometeu que ia falar tudo, garota.
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_ Escolha errada de palavras... poderá!
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_ Acho bom, agora dá um salvar aí que vou te dar banho e cama... chega pra mocinha hoje.
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A verdade é que, a presença do vinho só me fez ter mais inspiração pra escrever e, certamente, embalaria meu sono daqui alguns minutos. Não que precisasse, caminhar com Bethina pelos brechós das redondezas procurando peças tanto para ela quanto para mim era algo que eu nunca imaginei que fosse ter. E, mesmo caminhando horas, não encontramos nada que valesse nosso rico dinheirinho. Mas serviu para que eu tivesse ainda mais certeza que viver como menina a maior parte do tempo era o que eu queria e quero. Com a ameaça de puxar o computador da tomada termino esse longo texto escrito de olhos fechados e com um beliscão que me obriga a dizer algo que eu digo à ela o tempo todo: eu te amo, Bê.CdF

sábado, 22 de fevereiro de 2020

CdF: s2e6: Estelar

"- Data estelar... ah - Rafaela empurrou o teclado que, gentilmente voltou para dentro da parede ocultando-se - Que se foda essa merda de diário de bordo, ninguém vai ouvir mesmo... só restou eu.

- Não é bem verdade.

- Você não é de carne e osso.

- Mas posso lhe servir.

A voz vinha de um humanoide mecânico de pouco mais de um metro e oitenta de altura com inteligência artificial avançada o suficiente para guiar a nave em caso de incapacidade da capitã Rafaela. Claro que ele também poderia supri-la de outras formas menos ortodoxas, mas essa nível interação com uma máquina era algo que sempre foi mal visto no planeta de onde ela tinha vindo, muitos viam tal relação com algo programável como a ruína da civilização. Claro que o colapso veio, mas não por esse motivo.

Enquanto via os pequenos pontos brilhantes no horizonte Rafaela bebia uma grande taça de algo que na Terra seria chamado de vinho. Entre um gole e outro lembrava de como tudo aquilo havia acontecido, como aquela situação havia chego tão longe. Claro que a memória falhava em detalhes, até porque quatrocentos anos terrestres em hibernação foram o suficiente para que diversas lembranças se perdessem na imensidão do cérebro.

Seu planeta, Dommina, apesar de grande era pouco habitado, os poucos que habitavam tinham nos planetas e satélites naturais mais próximos a mão-de-obra que ajudava a manter todo aquele sistema planetário funcionando. De acordo com escrituras antigas foram desses planetas e satélites próximos que vieram os primeiros submissos, seres extremamente dóceis e dispostos a sempre obedecer e receber toda e qualquer punição. Nos primeiros milênios dessa parceria estranha milhões morreram pelas mãos inaptas dos habitantes de Dommina que, não raro, forçavam os submissos para muito além do seu limite físico.

Foi quando surgiu uma Dominadora que fez as primeiras leis. Habitantes de Dommina podiam continuar sua forma de trato com os de fora do planeta, porém teriam de incluir palavras de controle que seriam ditas pelos submissos fosse em qualquer momento, houve à época protestos porém as coisas se encaixaram e os "não-domminantes" agora tinham sua integridade resguardada por leis, tinham mais deveres que direitos, no entanto para eles isso não chegava a ser um problema.

Dois milênios e meio se passaram dessa relação de co-dependência. Submissos vinham aos milhares e serviam, de bom grado, os habitantes de Dommina. Se, vendo da Terra isso parecer cruel, pensemos que é a cultura de outro planeta, milhões de anos-luz do pálido ponto azul na pequena via-láctea. Ocorre que diversos Domminantes decidiram por vontade própria ignorar as leis, milhares morreram e logo os submissos, em um bloco unificado, disseram a palavra para que tudo cessasse e foram embora para seus planetas e satélites natais.

Os poucos que ficaram não sustentavam Dommina com tudo que ela precisava, pior: diversos Domminantes desenvolveram algum sentimento por seus submissos e deixaram o planeta que acabou com uma elite arrogante e cheia de si que sugou até o último recurso natural que havia em abundância - uma bebida semelhante ao néctar, que corria por rios e mares de Dommina - matando, assim, milhares de pessoas por pura soberba.

Quem pensa que Dommina era apenas isso engana-se, muitos daquele planeta tinham outras funções, entre eles diversos optavam por carreiras que iam desde médicos até cientistas. E foram os segundos que deram o veredicto: o planeta estava morrendo e rápido, algo teria de ser feito ou o colapso era inevitável. Como era de se esperar as elites de Dommina ignoraram todos os avisos e seguiram consumindo mais do que o planeta conseguia produzir. No entanto um pequeno grupo - 69 pessoas para ser mais exato - em um esforço homérico construíram naves para deixar o planeta e tentar algum acordo diplomático com os os habitantes do sistema solar próximo. Não havia acordo. Eram irredutíveis e prosperavam a olhos vistos com sua cultura e produção de recursos.

Sem acordo aquele grupo voltou os olhos para as estrelas. Haveria algum lugar para eles naquela vastidão? Pensar nisso tudo incomodava Rafaela. Sua vontade era de poder voltar no tempo e trucidar todos os responsáveis pela ruína do seu planeta. Terminou a taça da bebida e, notando que a garrafa ao seu lado estava vazia, virou-se para o androide que estava parado a espera de ordens.

- Me lembra de novo de porque eu não posso voltar pra hibernação, acho que o álcool derreteu minha memória.

- Quer algum remédio, Senhora?

- Eu fui irônica, criatura.

- Não fui programado para entender ironias, Senhora - Como se puxasse ar dos pulmões que não tinha e notando que Rafaela não mais falaria e aguardava uma resposta a criatura robótica prosseguiu - O módulo de hibernação foi atingido por raios cósmicos vindos de um buraco-negro alguns anos-luz daqui, Senhora, creio que no próximo planeta encontraremos recursos para fazer os reparos necessários na nave e seguir nosso objetivo.

- E qual é nosso objetivo?

- Reestabelecer nossa cultura em outro planeta, buscando um maior equilíbrio entre as práticas de Dommina e as criaturas que serão submissas, buscando uma consensualidade maior, respeitando os limites físicos e psicológicos do ser que será seu escravo pelo tempo que ele desejar.

Rafaela respirou fundo deixando o pensamento ser preenchido por todas aquelas palavras que foram processadas, absorvidas, digeridas e agora faziam com que ela afastasse os lábios como se fosse dizer algo. Mas não havia nada para ser dito, apenas aquele cheiro constante de queimado que era o ar reciclado que vinha do espaço. Engana-se quem pensa que o espaço entre planetas, estrelas e galáxias é bom ou até mesmo inexiste, as poucas partículas que vagam pelo grande vazio tem cheiro de morte.

- E esse planeta que estamos indo tem algum nome? Quero dizer, pra conseguir reparar um módulo de hibernação acredito que eles devam ter algum nível de tecnologia.

- Perfeitamente, Senhora - Como se buscasse dados em uma memória interna uma pausa se fez, o suficiente para que Rafaela deixasse a contemplação das estrelas e focasse no ser alguns metros atrás de si - É um planeta primitivo, ainda divide-se em centenas de pequenos estados que discordam em detalhes e produzem guerras infinitas entre si...

- E você me trouxe para um planeta em guerra?

- De forma alguma, Senhora, esse planeta atualmente encontra-se em conflitos pequenos entre estados menores...

- ... E o que motiva tanta batalha?

- Diversos motivos, religião, disputas por território, disputas históricas, não há um consenso no database da nave sobre o real motivo dos conflitos atuais.

- Que beleza... - A capitã voltou seu olhar para o vazio pontilhado - ... Seria um bom planeta para recomeçar talvez?

- Receio que n... - A voz levemente robótica parou, Rafaela já pensava que teria de pilotar a nave sozinha e ainda reparar o seu valete mecânico - Talvez, Senhora, apesar dos dados estarem bastante incompletos há nessa raça uma necessidade por obedecer ordens, no entanto não todos, mas uma parcela considerável espera uma figura que lhe diga o que fazer em troca de sal.

- Sal?

- Cloreto de sódio, Senhora... parece que é uma forma de pagamento.

- Que bizarro - Rafaela pegou a taça e lembrou-se que estava vazia - Pega mais uma garrafa de Wino, toda essa falação me deu sede.

- Perfeitamente, Senhora - O empregado saiu voltando em alguns instantes com outra garrafa já aberta e servindo sua senhora - Deseja que eu trace curso para esse planeta? - Rafaela sorveu um longo gole vendo um dos pontos do horizonte aumentarem - Senhora?

- Sim, trace o curso para... - Mais um gole e seu corpo se aqueceu por completo - Antes, como chama esse planeta para onde estamos indo?

- Ele nomearam o próprio planeta de... - uma pausa longa o suficiente para fazer com que Rafaela se irritasse suavemente - ... Terra.

Após essa pequena pausa dramática feito por uma criatura robótica a silhueta de outros planetas do sistema solar ficou para trás e a imagem daquele planeta rochoso coberto de água e repleto de criaturas em eterno conflito tomou toda a visão da janela frontal da nave. Tudo aquilo parecia um pesadelo às vezes, ter de ficar vagando planeta após planeta para encontrar um lugar que pudesse se fixar era algo cansativo e temia nunca encontrar esse lugar, ao menos nesse novo mundo poderia reparar o módulo de hibernação e só seria acordada quando seu servo-mecânico encontrasse um local ideal. Por hoje teria de encarar essa bolota insignificante perdida no éter do espaço."

- ... Então amor, o que achou?

- Cara... - Bethina olhava incrédula para a tela do computador, não conseguia concatenar as palavras para o que havia acabado de ler, pediu alguns segundos para respirar e pensar - Ficou muito foda, quando você escreveu isso?

- Tem uns meses, acho que um ano, talvez até mais.

- Tem potencial - Ela se levantava, Fernanda, agora mais segura de si e suas escolhas, trajava um vestido solto, azul, desses de loja popular, usado mais quando ficava em casa, o cabelo preso em coque e o avental completavam o visual - Pensa em continuar?

- Então - Fernanda ponderou um instante - Não sei, um dia escrevi isso, salvei e larguei, já tentei continuar algumas vezes, mas nunca foi pra frente, faltava inspiração.

_ Faltava? Ta dizendo que eu te inspiro é, criaturinha?

Bethina, que, ao contrário de sua namorada, estava o mais despojada possível -calça larga, blusa com ombro caído, cabelo mal penteado - levantou-se da cadeira indo ao encontro de Fernanda. Beijaram-se como adolescentes, mãos pelo corpo, diversas ideias passavam pela cabeça quando a mulher de vestido se afastou.

- Você me inspira muito, você é minha força, meu porto seguro... eu já disse que te amo hoje?

- Várias vezes - Bethina fez uma cara de desdém - Mas eu gosto de ouvir, diz de novo?

- Não - Fernanda fez bico, rodou nos calcanhares deixando Bethina sozinha - Você fica muito convencida depois... e pior

- Pior o que? - A jovem designer de cabelo crespo levantou-se indo atrás da namorada que caminhava com uma habilidade ímpar naquele salto - Fala logo antes que eu mande você ajoelhar.

- Aff - Fernanda desligou o forno onde o escondidinho de carne seca assou e prostou-se de joelhos diante da namorada - ... te odeio.

- Odeia é? - Bethina se aproximou segurando o queixo da namorada e descendo ao nível dela, lhe roubando um selinho - E o que mais?

- Puta jogo baixo... - Fernanda sentia sua última ligação com o masculino erguer-se por baixo do vestido - Por isso que te amo.

- Arrá! Falou!

- Merda - Dito isso um beijo mais intenso das duas ajoelhadas no chão da cozinha fez os dois corpos caírem no piso gelado do ambiente - A janta vai esfriar.

- Ahhhh - Pensando em como era ruim escondidinho de carne seca frio ou até mesmo requentado Bethina controlou-se - Sua empata-foda.

- Depois da janta - Fernanda sorriu lascivamente - o chão vai continuar aqui.

E assim as duas ergueram-se ao passo que Bethina arrumou a mesa enquanto Fernanda trazia o jantar para o deleite das duas, poucos momentos eram tão especiais para as duas quanto aqueles, o sentimento só crescia, dia após dia, mesmo com eventuais brigas no final do dia tudo ficava bem, fosse por uma obra de um deus benevolente que dirigia suas vidas ou fosse por elas mesmas se proporem a nunca irem dormir sem resolver todas as pendências do dia que passou. Houveram alguns dias que nenhum diálogo se ouviu? Houveram, no entanto no final do dia que se seguia tudo ficava bem. Fernanda achou que nunca acharia alguém tão perfeito como Bethina, já Bethina nunca pensou que uma escolha que havia feito na adolescência lhe traria um fruto tão belo.

O amor e seus desdobramentos, dizem, é algo tão misterioso quanto a vida. E como era belo aquele desdobramento. Houvesse mesmo um deus regendo aquelas vidas ele certamente estaria satisfeito do rumo que elas tomaram. Hoje a noite era dedicada ao amor.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

CdF: s2e5: Desvelo

Devo confessar que ainda me causava um pouco de estranheza ver Fernando assim... quer dizer, Fernanda. Fernanda. Fernanda. Foca, Bethina, ela é Fernanda, daqui pra frente vai ser ela e pronto, sem mais dúvidas. Seria um saco segurar a ideia na empresa, mas depois do meio do ano eu ia começar a cutucar pra falar por lá... se bem que eles não tem nada com isso. Se um homem quiser vir trabalhar de vestido qual o problema? É só um pedaço de pano que a sociedade dava algum valor a ele porque ela não sabe viver sem ter um objeto e enche-lo de significados.

Mas era lindo ver ela dormindo. O dia amanheceu tão preguiçoso que podia jurar que toda a Metrópole havia desaparecido, só restou a gente nessa cama. O cabelo jogado pro lado, o vestido completamente amarrotado, a saia de tule fazia parecer que ela tinha uma cintura a mais. Tão linda quanto confusa. Até sem maquiagem essa filha da puta ficava linda... já pensou quando ela começar a virar menina mesmo? Aliás, menina não, mulher. De acordo com minhas pesquisas o queixo afinaria, o rosto também, o nariz ficaria mais arrebitado, a pele mais macia... isso tudo com meus dotes de maquiadora. Perfeito.

- Bom dia, amor - Ela acordou com um sorriso tão sereno que quis morar dentro dele - Dormiu bem?

- Você me fez dormir otimamente bem - Roubei um selinho - Sua safada.

- Eu sou a safada? - Ela me deu um tapa - Bem eu que apareceu com um pintão de borracha e me comeu na moralzinha!

- Ah, agora vai reclamar? - Franzi o cenho - Olha que te boto de joelhos no milho.

- Agora vou ter que chamar de Dona Bethina, é sério isso? - Ela segurou um riso - Nem vem!

- Cala a boca, escrava - Coloquei o indicador sobre os lábios dela, obviamente ela me mordeu o dedo - Filha da...

- Não, mas falando sério - Fernanda me deu um beijo no dedo - Eu adorei, quando quiser repetir...

- Eu tava aqui pensando... você se lembra de quando começou a ter esses desejos? - Me expressei mal - Digo, tipo se vestir de menina e tals.

- Foi aos doze mais ou menos... - Ela olhou pro lado, buscando as memórias - eu entrei no quarto dos meus pais quando eles não estavam, fuçando o guarda-roupa eu achei um tailleur lindo, saia marrom, camisa branca... coloquei a saia e me senti muito bem, mas me senti errado também, fugi dali por uns dias... mas um dia - Ela pausou - Eu montei o look completo e puta merda, eu fiquei linda... mas depois a coisa perdeu um pouco o sentido até eu chegar na internet e descobrir os termos certos, sissy e crossdresser.

- Sissy é o que mesmo?

- Crossdresser só no momento de uma sessão BDSM ou algo assim - Ela falava com uma propriedade que não sei se me assustava ou admirava - Quando eu tive uma Domme eu era mais sissy do que cross...

- Como você conheceu uma Domme?

- História estranha pra um sábado de manhã - Ela riu - Mas então, eu era um garoto juvenil que buscava informações e logo conheceu uma Domme e acabou se mudando pra cidade que ela morava pra fazer faculdade...

- Tu fez faculdade servindo uma domme? 

- Basicamente...

- Que daora, mas continue.

- Então, logo que eu terminei a faculdade ela me levou pra morar com ela, ser submisso em tempo integral... logo ela adotou uma mulher - Confesso que senti uma ponta de ciume - e ficamos por uns meses numa relação regada com sessões esporádicas e tals, foi divertido enquanto durou.

- E por que acabou?

- Ela se mudou pra Londres.

- Carai

- Exato, depois disso eu fiquei recluso em uma quitinete fazendo freelas, me alimentando mal e comprando roupas via internet... devo ter ficado pouco mais de um ano nessas até que surgiu uma oportunidade aqui e eu vim de mala e cuia.

- E quem te mandou fazer terapia? Porque essa doutora é caro para um caralho.

- Segredo - Ela se fechou - Não posso citar nomes, mas digamos que tive uma relação super breve com uma dominadora aqui da cidade... coisa de uma semana, tive um surto psicótico beeeem legal, ia me jogar da janela do vigésimo andar mas né... - Fê respirou fundo - Estou aqui.

- E sem querer me salvou - Sorri a olhando nos olhos - Porque né, eu não sei se ainda estaria nessa empresa se não fosse você.

- Como assim?

- Convenhamos, o trabalho é legal, mas tem umas pessoas ali babacas pra caralho.

- Tipo quem?

- Uns conselheiros, eu estava mostrando pros traines a parte de impressão de prévias e um deles veio botando banca, dizendo que a gente gastava muito em papel, tinta, manutenção e que os traines nem se acostumassem muito porque se tudo desse certo haveriam cortes de funcionários... mó cuzão.

- Lembra o nome?

- E esse povo lá usa crachá? - Tentava lembrar o rosto - Mas era um tipo alto, meio musculoso... acho que já vi ele com Rafaela alguma vez.

Fernanda se fechou mais ainda um instante. Ela ficava linda até pensando seriamente... puta merda, Bethina, você esta completamente apaixonada por essa mulher. Um som de buzina atravessou a janela dando o início de vida para a Metrópole dezenas de metros abaixo. Fê me olhou fixamente por alguns segundos, roubou um selinho.

- Vamos levantar ou ficar aqui mais um tempo?

- Depois de você me falar quem foi a sua Domme relâmpago eu deixo você levantar.

- Eu vou acabar fazendo xixi na cama.

- Problema teu, a cama é tua.

- Olha que filha da puta é essa minha namorada - Ela sabia apertar os botões certos pra me desmontar - Eu não posso expor essas pessoas assim sabe? Se for uma pessoa pública, como fica?

- Hum... Pode levantar, eu autorizo - Fernanda levantou correndo pro banheiro enquanto eu fiquei deitada pensando quem seria essa pessoa pública - Eu acho que já sei.

- Sabe do que, amor? - Caralho, linda até escovando os dentes - Levanta logo, vamos fazer uma feira, comer pastel.

- Boa - Levantei indo até o banheiro - Eu conheço ela?

- Cara, eu não vou te falar, não insiste.

- Pela sua defensiva isso é um sim... vamos fazer assim, eu digo uns nomes e você só diz quente ou frio, que tal?

- Morno.

- Chata pra caralho - Dei um beliscão naquela pele branca do braço - Coloca uma roupa legal pra gente ir fazer a feira... adoro aquele teu vestido amarelho com bolsos na lateral.

- Ainda não né - Podia sentir na voz o desejo - Depois de julho a gente vê tudo isso... feito?

- Feito, até lá você me diz quem é essa senhora que você teve.

- Não vai rolar.

Se havia algo que minha mãe sempre disse ao meu respeito era o quanto eu conseguia ser chata quando tinha interesse em algo. Podia usar da minha chatice habitual até que ela se enchesse e acabasse falando. Tinha de pensar em uma estratégia pra arrancar essa informação, muito embora eu tivesse uma suspeita... até por aquela camisola e a forma um pouco mais carinhosa que a pessoa que eu penso tratava ela. Aquela cena desses dias atrás... tudo fazia sentido, só precisava da confirmação. O dia passou tranquilo, naquela noite decidimos ficar quietinhos na cama quando resolvi soltar a bomba:

- Eu já sei quem é - Dei um gole curto no vinho - Não precisa esconder mais.

- Puta merda - Fernanda estava com um pijama macio de lhamas ao passo que eu estava com um modelo semelhante, mas de flamingos - Você é insistente, diz quem você acha que é.

- A Sandra.

- A auxiliar de recepcionista? - Ele riu - O que te levou a pensar isso?

- Quando você dá bom dia ela responde seca, claramente ela ainda queria dar mais tapas nessa sua bunda rosada. - Segurei o riso - Fora que ela mal olha.

- Nossa - Senti a respiração dela sair inteira - Você descobriu! Você é foda, amor.

- Eu sei - Decididamente assistir o céu noturno era mais divertido que netflix - Mas falando sério... eu sei mesmo.

- Cara, não insiste nisso.

- Relaxa, por mim tanto faz teus relacionamentos antigos, foram eles que te moldaram pra ser essa pessoa maravilhosa que é hoje.

- Tá... - ela deu um gole no vinho - Então quem você acha que é?

- Na sinceridade? - Ela assentiu com a cabeça - É a Rafaela, né?

- Nossa - Fernanda ficou mais branca que a parede, decididamente era essa a resposta, ela tomou mais um gole do vinho deixando a taça no chão enquanto caía na cama, os olhos cerrados, o sorriso fino só confirmava o que eu descobri e, a frase que veio a seguir, inflou meu ego pra caralho, calma Bethina, pé no chão. - Você é foda, amor.

- Eu sei - Caí pro lado a abraçando - Bora dormir né?