Hoje olhando Bethina cozinhar enquanto eu ficava no computador tentando escrever algo notei o quão idiota eu tinha sido até o momento. Tantos momentos que quase fui flagrada, tantas vezes que quis desistir de tudo apenas por achar que já tinha vivido aquela experiência juvenil. Agora eu estava em um dilema imenso: seguir pelo caminho da operação e virar uma mulher completa ou me manter essa criatura híbrida.
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Já diria o poeta que cada escolha é uma renúncia. Confesso que a ideia de apenas tomar os hormônios me atraía mais do que operar, teria peito, talvez tivesse uma ereção vez ou outra... seria a mulher que sempre quis sem deixar de ser o homem que nasci. "Homem". Pensar nesse termo me deu um peso absurdo. Até mesmo "mulher" me era estranho. Gostava de usar "menino" e "menina", talvez pela inocência das palavras. Enquanto olhava o cursor na tela em branco deixei a vista desfocar algumas vezes, hoje estava com uma bermuda mais larga, camiseta, cabelo preso por uma piranha... Bethina ao contrário estava com um belo vestido, o que contrastava com o fato dela estar limpando a cozinha.
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Desde aquela noite que tomei a decisão morávamos juntos. Ela devolveu o apartamento, trouxe suas coisas pra cá e tentávamos seguir dali. Por sorte eu tinha conseguido um bom espaço e tanto o quarto quanto a sala eram áreas grandes que cabia a pequena coleção de bonecas negras dela. Eram bonitas, alguns dos vestidos, inclusive, entraram na minha lista dos sonhos.
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Aquele cursor piscando me sufocava. Fechei o bloco de notas. Apelei pra uma banda que sempre me apoiou e foi dali que segui, de olhos completamente fechados, escrevendo as próximas linhas, sem pensar muito na ortografia, nas regras linguísticas e, sobretudo, esquecendo aquela maldita regra da redação publicitária de que menos é mais.
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A terapia me ajudou nos últimos tempos a ter uma confiança maior no que eu sou e onde eu quero chegar - ainda que com dúvidas - e, independente das opiniões alheias, eu estou firme nessa escolha. Claro que eu não vou estar firme como uma rocha e sim como um palanque de cerca no banhado, não caio para lado nenhum, porém não estou firme. Pensar isso me trouxe uma certa dor no, um certo desconforto, a vontade de pegar o telefone e ligar para ela agora e dizer tudo que estava entalado em minha garganta era tanta que eu não conseguia conter meus dedos digitando cada vez mais rápido, cada vez mais intensos, cada vez mais visceral. Eu sentia como se as palavras me dominassem e eu estivesse, enfim, pronta para dizer ao mundo inteiro "hey mundo, essa sou eu" e aceitar as consequências.
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Claro que essa síncope não durava muito e logo a racionalidade me dizia para repensar, que tudo não era tão simples como eu gostaria que fosse. Tomar no cu. Qual o problema com você, sociedade? Eu me sinto bem assim, eu gosto disso, eu estou disposta à críticas como "essa saia não combina com essa blusa" ou ainda "você veio de vestido longo? Nossa, ta muito calor pra isso", agora críticas ao fato de, biologicamente, eu ainda ser homem e estar de vestido? Qual o problema? São só pedaços de pano costurados de forma diferente. Merda. Pensar nisso tudo me cansava, me deprimia... mas era preciso.
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Que Bethina - agora no banheiro tomando um demorado banho de sábado - não me visse com a garrafa inteira de vinho diante do monitor. Eu precisava desse momento. Eu precisava dessa liberdade. Dessa fluidez de letras saindo de meu cérebro e indo por minhas terminações nervosas socando o teclado com velocidade e violência e se desenhando letras no monitor. O cursor solitário agora ganhava a companhia de cem, duzentas, trezentas, mil palavras. Estava tão rápido que fiquei com medo de não conseguir parar. Reabri os olhos passando a vista pelo que já fora escrito, nenhum erro. Apenas o nome de Bethina, que, para o corretor, tinha que ser sem o H que lhe dava charme e o transformava em algo único. Botão direito, adicionar palavra ao dicionário. Pronto. Toma essa, Word.
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Ela cantarola uma música. Give me a reason to be... a woman, I just wanna be a woman. Conhecia essa letra. Glory Box do Portishead era uma das música que me fazia soltar pequenos suspiros no começo da vida "adulta". Gostava da ideia de "be a woman", hoje tanto faz. Estaria mentindo se falasse que não gosto da ideia de me transformar em uma mulher completa. Ter, além dos peitos, uma bela vagina penetrável. O foda que isso, agora, se tornava algo tão secundário que já pensava na ideia de tomar os hormônios mas não ir pra mesa de cirurgia. Teria o peito, o rosto ficaria mais feminino, os incômodos pelos do corpo ou cairiam ou ficariam finos o suficiente para que a depilação fosse menos agressiva. E ainda manteria o pinto. Pinto. Que termo bosta.
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De repente bateu uma saudade da cobertura. Uma rápida olhada no relógio. Vinte horas e dois minutos. Certamente Vali estava preparando o jantar enquanto Rafaela e Freya ainda discutiam coisas da empresa. Confesso que a saudade se dissipou ao pensar que a vida ficaria limitada à uma só: o que Rafaela decidir seria a lei. Gostava do conceito. Gostava das práticas. Mas viver aquilo na totalidade? Sem chance. Soube de um dos amigos da minha ex-senhora que teria uma puta festa de carnaval, fechando um clube por três dias. Não lembro o nome da Domme que mandou o convite, mas devia ser algum daqueles nomes toscos baseados em algo dark ou gótico. Tinha horas que eu queria baixar meu lado publicitária naquela galera e dizer que uma Domme pode usar branco e se chamar Silvia. Rafaela, inclusive, era o melhor exemplo disso. Claro que o preto era a cor preferida da galera, mas o bordô, o roxo e até o tons escuros de azul e verde super combinavam com as práticas. Rebranding. Qualquer hora escrevia algo assim e mandava para Rafaela. Na pior das hipóteses ela ia rir.
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O chuveiro parou. Bethina levaria alguns minutos até secar o cabelo, passar todos os cremes, colocar alguma roupa extremamente confortável e reclamar que eu estava indo tomar banho muito tarde. Virei a última dose de vinho da garrafa em um gole longo. Não queimou nem nada. O efeito viria daqui meia hora ou menos, tontura, sentidos largos, sono... acho que o banho vai ficar para amanhã.
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Os olhos seguiam fechados como se eu pudesse sentir cada palavra que escrevia, mas, na verdade, eu pensava em tantas outras coisas enquanto escrevo, que nem sei dizer ao certo mais no que eu penso. A imensa verdade é que, assim, eu escrevo algo mais mental e menos visual, me preocupo menos se eu repeti tal palavra no decorrer desse parágrafo ou tenho que usar um sinônimo. A porta do banheiro abriu. Segui de olhos fechados digitando, estava tentando não pensar na conversa que teria com minha progenitora dali alguns dias sobre absolutamente tudo isso aqui. Pensar nisso, admito, me fez querer outra garrafa de vinho. Não tinha. Será que o mercado ainda estava aberto? "Não fode", foi a voz da minha consciência. Tinha tantas palavras passando ao mesmo tempo por minha cabeça que perdi totalmente a noção de tempo e espaço, eu estava flutuando, minha única certeza de ainda estar no mesmo lugar era o fato da gravidade ainda ser a mesma.
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_ Admiro pra caralho essa sua habilidade - A voz vinha de Bethina, meio metro atrás da minha orelha esquerda - Digitar sem olhar pro teclado ou mesmo pro monitor? Namoral amor, cê é foda.
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_ É prática - Respondi à ela enquanto escrevia exatamente a cena que acontecia - Com o tempo você não pensa mais na sequência do teclado e sim no que você quer dizer, seu cérebro entra em um moto tão automático que você não precisa pensar na ordem das letras e sim na ordem do que quer escrever...
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_ Tipo pedalar? Você diz que pedala no automático - Ela parou um instante - Você está transcrevendo o que estou dizendo? Puta merda, Fê...
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_ Não gosta? - Arqueei a sobrancelha ainda sem abrir os olhos - Quiser eu apago...
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_ Não, deixa... só é meio estranho você de olhos fechados digitando nessa velocidade e sem errar... puta que pariu, até meus palavrões você digita, pára com isso Fê, anda logo, parou.. vai tomar banho enquanto eu leio o que você escreveu.
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_ Não vou tomar banho hoje - Fiz caretinha - Tô com preguiça... mais a mais mal saí de casa.
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_ Namorada porquinha essa minha e... - ela parou completamente, abri os olhos - A senhorita andou bebendo, dona Fernanda?
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_ Só um pouquin...
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_ Um pouquinho é o caralho, cê bebeu a garrafa toda garota.
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O flagrante é, sem sombra de dúvidas, uma das piores coisas para o mentiroso. Aquela vez da camisola até deu certo, mas a do guarda-roupas... não deu tempo de pensar em uma saída. Enquanto eu digitava Bethina falava algo sobre eu não poder beber tanto porque isso estimulava as inquietas sombras e muitos outros blá-blá-blá que ela falava e eu entrei em um modo onde não mais a ouvia. Podia continuar escrevendo sem me preocupar com o ruído ao meu redor. Quando ela começou a puxar a cadeira me lembrei de minha mãe quando vinha duas e tanto da manhã reclamar que eu ainda estava no computador. Bethina pausou suas palavras e ficou apenas lendo o que eu escrevia, a verdade é que eu adorava a voz dela e, mesmo tomando um bronca por quebrar um dos nossos acordos sobre bebida, eu ainda estava amando ouvir a voz dela. Eu era uma boba apaixonada? Com certeza. Curiosidade do momento: ela estava completamente dividida entre me tirar da frente do computador e me colocar, de roupa e tudo, debaixo do chuveiro e simplesmente seguir olhando o que eu escrevia. Sorri de canto.
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_ Desistiu?
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_ Não... estou te esperando terminar... - o tom de voz dela era amistoso, conciliador eu diria - Que pausa foi essa? Terminou?
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_ Não... se deixar eu fico escrevendo aqui indefinidamente...
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_ E sobre o quê escrevia quando saí do banho?
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_ Sobre... estar flutuando, sobre as possibilidades do meio do ano e todas as nuances que poderia significar aquela revelação...
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_ Poderia??? - O tom de voz dela agora mudou - Você me prometeu que ia falar tudo, garota.
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_ Escolha errada de palavras... poderá!
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_ Acho bom, agora dá um salvar aí que vou te dar banho e cama... chega pra mocinha hoje.
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A verdade é que, a presença do vinho só me fez ter mais inspiração pra escrever e, certamente, embalaria meu sono daqui alguns minutos. Não que precisasse, caminhar com Bethina pelos brechós das redondezas procurando peças tanto para ela quanto para mim era algo que eu nunca imaginei que fosse ter. E, mesmo caminhando horas, não encontramos nada que valesse nosso rico dinheirinho. Mas serviu para que eu tivesse ainda mais certeza que viver como menina a maior parte do tempo era o que eu queria e quero. Com a ameaça de puxar o computador da tomada termino esse longo texto escrito de olhos fechados e com um beliscão que me obriga a dizer algo que eu digo à ela o tempo todo: eu te amo, Bê.CdF