"- Data estelar... ah - Rafaela empurrou o teclado que, gentilmente voltou para dentro da parede ocultando-se - Que se foda essa merda de diário de bordo, ninguém vai ouvir mesmo... só restou eu.
- Não é bem verdade.
- Você não é de carne e osso.
- Mas posso lhe servir.
A voz vinha de um humanoide mecânico de pouco mais de um metro e oitenta de altura com inteligência artificial avançada o suficiente para guiar a nave em caso de incapacidade da capitã Rafaela. Claro que ele também poderia supri-la de outras formas menos ortodoxas, mas essa nível interação com uma máquina era algo que sempre foi mal visto no planeta de onde ela tinha vindo, muitos viam tal relação com algo programável como a ruína da civilização. Claro que o colapso veio, mas não por esse motivo.
Enquanto via os pequenos pontos brilhantes no horizonte Rafaela bebia uma grande taça de algo que na Terra seria chamado de vinho. Entre um gole e outro lembrava de como tudo aquilo havia acontecido, como aquela situação havia chego tão longe. Claro que a memória falhava em detalhes, até porque quatrocentos anos terrestres em hibernação foram o suficiente para que diversas lembranças se perdessem na imensidão do cérebro.
Seu planeta, Dommina, apesar de grande era pouco habitado, os poucos que habitavam tinham nos planetas e satélites naturais mais próximos a mão-de-obra que ajudava a manter todo aquele sistema planetário funcionando. De acordo com escrituras antigas foram desses planetas e satélites próximos que vieram os primeiros submissos, seres extremamente dóceis e dispostos a sempre obedecer e receber toda e qualquer punição. Nos primeiros milênios dessa parceria estranha milhões morreram pelas mãos inaptas dos habitantes de Dommina que, não raro, forçavam os submissos para muito além do seu limite físico.
Foi quando surgiu uma Dominadora que fez as primeiras leis. Habitantes de Dommina podiam continuar sua forma de trato com os de fora do planeta, porém teriam de incluir palavras de controle que seriam ditas pelos submissos fosse em qualquer momento, houve à época protestos porém as coisas se encaixaram e os "não-domminantes" agora tinham sua integridade resguardada por leis, tinham mais deveres que direitos, no entanto para eles isso não chegava a ser um problema.
Dois milênios e meio se passaram dessa relação de co-dependência. Submissos vinham aos milhares e serviam, de bom grado, os habitantes de Dommina. Se, vendo da Terra isso parecer cruel, pensemos que é a cultura de outro planeta, milhões de anos-luz do pálido ponto azul na pequena via-láctea. Ocorre que diversos Domminantes decidiram por vontade própria ignorar as leis, milhares morreram e logo os submissos, em um bloco unificado, disseram a palavra para que tudo cessasse e foram embora para seus planetas e satélites natais.
Os poucos que ficaram não sustentavam Dommina com tudo que ela precisava, pior: diversos Domminantes desenvolveram algum sentimento por seus submissos e deixaram o planeta que acabou com uma elite arrogante e cheia de si que sugou até o último recurso natural que havia em abundância - uma bebida semelhante ao néctar, que corria por rios e mares de Dommina - matando, assim, milhares de pessoas por pura soberba.
Quem pensa que Dommina era apenas isso engana-se, muitos daquele planeta tinham outras funções, entre eles diversos optavam por carreiras que iam desde médicos até cientistas. E foram os segundos que deram o veredicto: o planeta estava morrendo e rápido, algo teria de ser feito ou o colapso era inevitável. Como era de se esperar as elites de Dommina ignoraram todos os avisos e seguiram consumindo mais do que o planeta conseguia produzir. No entanto um pequeno grupo - 69 pessoas para ser mais exato - em um esforço homérico construíram naves para deixar o planeta e tentar algum acordo diplomático com os os habitantes do sistema solar próximo. Não havia acordo. Eram irredutíveis e prosperavam a olhos vistos com sua cultura e produção de recursos.
Sem acordo aquele grupo voltou os olhos para as estrelas. Haveria algum lugar para eles naquela vastidão? Pensar nisso tudo incomodava Rafaela. Sua vontade era de poder voltar no tempo e trucidar todos os responsáveis pela ruína do seu planeta. Terminou a taça da bebida e, notando que a garrafa ao seu lado estava vazia, virou-se para o androide que estava parado a espera de ordens.
- Me lembra de novo de porque eu não posso voltar pra hibernação, acho que o álcool derreteu minha memória.
- Quer algum remédio, Senhora?
- Eu fui irônica, criatura.
- Não fui programado para entender ironias, Senhora - Como se puxasse ar dos pulmões que não tinha e notando que Rafaela não mais falaria e aguardava uma resposta a criatura robótica prosseguiu - O módulo de hibernação foi atingido por raios cósmicos vindos de um buraco-negro alguns anos-luz daqui, Senhora, creio que no próximo planeta encontraremos recursos para fazer os reparos necessários na nave e seguir nosso objetivo.
- E qual é nosso objetivo?
- Reestabelecer nossa cultura em outro planeta, buscando um maior equilíbrio entre as práticas de Dommina e as criaturas que serão submissas, buscando uma consensualidade maior, respeitando os limites físicos e psicológicos do ser que será seu escravo pelo tempo que ele desejar.
Rafaela respirou fundo deixando o pensamento ser preenchido por todas aquelas palavras que foram processadas, absorvidas, digeridas e agora faziam com que ela afastasse os lábios como se fosse dizer algo. Mas não havia nada para ser dito, apenas aquele cheiro constante de queimado que era o ar reciclado que vinha do espaço. Engana-se quem pensa que o espaço entre planetas, estrelas e galáxias é bom ou até mesmo inexiste, as poucas partículas que vagam pelo grande vazio tem cheiro de morte.
- E esse planeta que estamos indo tem algum nome? Quero dizer, pra conseguir reparar um módulo de hibernação acredito que eles devam ter algum nível de tecnologia.
- Perfeitamente, Senhora - Como se buscasse dados em uma memória interna uma pausa se fez, o suficiente para que Rafaela deixasse a contemplação das estrelas e focasse no ser alguns metros atrás de si - É um planeta primitivo, ainda divide-se em centenas de pequenos estados que discordam em detalhes e produzem guerras infinitas entre si...
- E você me trouxe para um planeta em guerra?
- De forma alguma, Senhora, esse planeta atualmente encontra-se em conflitos pequenos entre estados menores...
- ... E o que motiva tanta batalha?
- Diversos motivos, religião, disputas por território, disputas históricas, não há um consenso no database da nave sobre o real motivo dos conflitos atuais.
- Que beleza... - A capitã voltou seu olhar para o vazio pontilhado - ... Seria um bom planeta para recomeçar talvez?
- Receio que n... - A voz levemente robótica parou, Rafaela já pensava que teria de pilotar a nave sozinha e ainda reparar o seu valete mecânico - Talvez, Senhora, apesar dos dados estarem bastante incompletos há nessa raça uma necessidade por obedecer ordens, no entanto não todos, mas uma parcela considerável espera uma figura que lhe diga o que fazer em troca de sal.
- Sal?
- Cloreto de sódio, Senhora... parece que é uma forma de pagamento.
- Que bizarro - Rafaela pegou a taça e lembrou-se que estava vazia - Pega mais uma garrafa de Wino, toda essa falação me deu sede.
- Perfeitamente, Senhora - O empregado saiu voltando em alguns instantes com outra garrafa já aberta e servindo sua senhora - Deseja que eu trace curso para esse planeta? - Rafaela sorveu um longo gole vendo um dos pontos do horizonte aumentarem - Senhora?
- Sim, trace o curso para... - Mais um gole e seu corpo se aqueceu por completo - Antes, como chama esse planeta para onde estamos indo?
- Ele nomearam o próprio planeta de... - uma pausa longa o suficiente para fazer com que Rafaela se irritasse suavemente - ... Terra.
Após essa pequena pausa dramática feito por uma criatura robótica a silhueta de outros planetas do sistema solar ficou para trás e a imagem daquele planeta rochoso coberto de água e repleto de criaturas em eterno conflito tomou toda a visão da janela frontal da nave. Tudo aquilo parecia um pesadelo às vezes, ter de ficar vagando planeta após planeta para encontrar um lugar que pudesse se fixar era algo cansativo e temia nunca encontrar esse lugar, ao menos nesse novo mundo poderia reparar o módulo de hibernação e só seria acordada quando seu servo-mecânico encontrasse um local ideal. Por hoje teria de encarar essa bolota insignificante perdida no éter do espaço."
- ... Então amor, o que achou?
- Cara... - Bethina olhava incrédula para a tela do computador, não conseguia concatenar as palavras para o que havia acabado de ler, pediu alguns segundos para respirar e pensar - Ficou muito foda, quando você escreveu isso?
- Tem uns meses, acho que um ano, talvez até mais.
- Tem potencial - Ela se levantava, Fernanda, agora mais segura de si e suas escolhas, trajava um vestido solto, azul, desses de loja popular, usado mais quando ficava em casa, o cabelo preso em coque e o avental completavam o visual - Pensa em continuar?
- Então - Fernanda ponderou um instante - Não sei, um dia escrevi isso, salvei e larguei, já tentei continuar algumas vezes, mas nunca foi pra frente, faltava inspiração.
_ Faltava? Ta dizendo que eu te inspiro é, criaturinha?
Bethina, que, ao contrário de sua namorada, estava o mais despojada possível -calça larga, blusa com ombro caído, cabelo mal penteado - levantou-se da cadeira indo ao encontro de Fernanda. Beijaram-se como adolescentes, mãos pelo corpo, diversas ideias passavam pela cabeça quando a mulher de vestido se afastou.
- Você me inspira muito, você é minha força, meu porto seguro... eu já disse que te amo hoje?
- Várias vezes - Bethina fez uma cara de desdém - Mas eu gosto de ouvir, diz de novo?
- Não - Fernanda fez bico, rodou nos calcanhares deixando Bethina sozinha - Você fica muito convencida depois... e pior
- Pior o que? - A jovem designer de cabelo crespo levantou-se indo atrás da namorada que caminhava com uma habilidade ímpar naquele salto - Fala logo antes que eu mande você ajoelhar.
- Aff - Fernanda desligou o forno onde o escondidinho de carne seca assou e prostou-se de joelhos diante da namorada - ... te odeio.
- Odeia é? - Bethina se aproximou segurando o queixo da namorada e descendo ao nível dela, lhe roubando um selinho - E o que mais?
- Puta jogo baixo... - Fernanda sentia sua última ligação com o masculino erguer-se por baixo do vestido - Por isso que te amo.
- Arrá! Falou!
- Merda - Dito isso um beijo mais intenso das duas ajoelhadas no chão da cozinha fez os dois corpos caírem no piso gelado do ambiente - A janta vai esfriar.
- Ahhhh - Pensando em como era ruim escondidinho de carne seca frio ou até mesmo requentado Bethina controlou-se - Sua empata-foda.
- Depois da janta - Fernanda sorriu lascivamente - o chão vai continuar aqui.
E assim as duas ergueram-se ao passo que Bethina arrumou a mesa enquanto Fernanda trazia o jantar para o deleite das duas, poucos momentos eram tão especiais para as duas quanto aqueles, o sentimento só crescia, dia após dia, mesmo com eventuais brigas no final do dia tudo ficava bem, fosse por uma obra de um deus benevolente que dirigia suas vidas ou fosse por elas mesmas se proporem a nunca irem dormir sem resolver todas as pendências do dia que passou. Houveram alguns dias que nenhum diálogo se ouviu? Houveram, no entanto no final do dia que se seguia tudo ficava bem. Fernanda achou que nunca acharia alguém tão perfeito como Bethina, já Bethina nunca pensou que uma escolha que havia feito na adolescência lhe traria um fruto tão belo.
O amor e seus desdobramentos, dizem, é algo tão misterioso quanto a vida. E como era belo aquele desdobramento. Houvesse mesmo um deus regendo aquelas vidas ele certamente estaria satisfeito do rumo que elas tomaram. Hoje a noite era dedicada ao amor.
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