sábado, 8 de fevereiro de 2020

CdF: s2e5: Desvelo

Devo confessar que ainda me causava um pouco de estranheza ver Fernando assim... quer dizer, Fernanda. Fernanda. Fernanda. Foca, Bethina, ela é Fernanda, daqui pra frente vai ser ela e pronto, sem mais dúvidas. Seria um saco segurar a ideia na empresa, mas depois do meio do ano eu ia começar a cutucar pra falar por lá... se bem que eles não tem nada com isso. Se um homem quiser vir trabalhar de vestido qual o problema? É só um pedaço de pano que a sociedade dava algum valor a ele porque ela não sabe viver sem ter um objeto e enche-lo de significados.

Mas era lindo ver ela dormindo. O dia amanheceu tão preguiçoso que podia jurar que toda a Metrópole havia desaparecido, só restou a gente nessa cama. O cabelo jogado pro lado, o vestido completamente amarrotado, a saia de tule fazia parecer que ela tinha uma cintura a mais. Tão linda quanto confusa. Até sem maquiagem essa filha da puta ficava linda... já pensou quando ela começar a virar menina mesmo? Aliás, menina não, mulher. De acordo com minhas pesquisas o queixo afinaria, o rosto também, o nariz ficaria mais arrebitado, a pele mais macia... isso tudo com meus dotes de maquiadora. Perfeito.

- Bom dia, amor - Ela acordou com um sorriso tão sereno que quis morar dentro dele - Dormiu bem?

- Você me fez dormir otimamente bem - Roubei um selinho - Sua safada.

- Eu sou a safada? - Ela me deu um tapa - Bem eu que apareceu com um pintão de borracha e me comeu na moralzinha!

- Ah, agora vai reclamar? - Franzi o cenho - Olha que te boto de joelhos no milho.

- Agora vou ter que chamar de Dona Bethina, é sério isso? - Ela segurou um riso - Nem vem!

- Cala a boca, escrava - Coloquei o indicador sobre os lábios dela, obviamente ela me mordeu o dedo - Filha da...

- Não, mas falando sério - Fernanda me deu um beijo no dedo - Eu adorei, quando quiser repetir...

- Eu tava aqui pensando... você se lembra de quando começou a ter esses desejos? - Me expressei mal - Digo, tipo se vestir de menina e tals.

- Foi aos doze mais ou menos... - Ela olhou pro lado, buscando as memórias - eu entrei no quarto dos meus pais quando eles não estavam, fuçando o guarda-roupa eu achei um tailleur lindo, saia marrom, camisa branca... coloquei a saia e me senti muito bem, mas me senti errado também, fugi dali por uns dias... mas um dia - Ela pausou - Eu montei o look completo e puta merda, eu fiquei linda... mas depois a coisa perdeu um pouco o sentido até eu chegar na internet e descobrir os termos certos, sissy e crossdresser.

- Sissy é o que mesmo?

- Crossdresser só no momento de uma sessão BDSM ou algo assim - Ela falava com uma propriedade que não sei se me assustava ou admirava - Quando eu tive uma Domme eu era mais sissy do que cross...

- Como você conheceu uma Domme?

- História estranha pra um sábado de manhã - Ela riu - Mas então, eu era um garoto juvenil que buscava informações e logo conheceu uma Domme e acabou se mudando pra cidade que ela morava pra fazer faculdade...

- Tu fez faculdade servindo uma domme? 

- Basicamente...

- Que daora, mas continue.

- Então, logo que eu terminei a faculdade ela me levou pra morar com ela, ser submisso em tempo integral... logo ela adotou uma mulher - Confesso que senti uma ponta de ciume - e ficamos por uns meses numa relação regada com sessões esporádicas e tals, foi divertido enquanto durou.

- E por que acabou?

- Ela se mudou pra Londres.

- Carai

- Exato, depois disso eu fiquei recluso em uma quitinete fazendo freelas, me alimentando mal e comprando roupas via internet... devo ter ficado pouco mais de um ano nessas até que surgiu uma oportunidade aqui e eu vim de mala e cuia.

- E quem te mandou fazer terapia? Porque essa doutora é caro para um caralho.

- Segredo - Ela se fechou - Não posso citar nomes, mas digamos que tive uma relação super breve com uma dominadora aqui da cidade... coisa de uma semana, tive um surto psicótico beeeem legal, ia me jogar da janela do vigésimo andar mas né... - Fê respirou fundo - Estou aqui.

- E sem querer me salvou - Sorri a olhando nos olhos - Porque né, eu não sei se ainda estaria nessa empresa se não fosse você.

- Como assim?

- Convenhamos, o trabalho é legal, mas tem umas pessoas ali babacas pra caralho.

- Tipo quem?

- Uns conselheiros, eu estava mostrando pros traines a parte de impressão de prévias e um deles veio botando banca, dizendo que a gente gastava muito em papel, tinta, manutenção e que os traines nem se acostumassem muito porque se tudo desse certo haveriam cortes de funcionários... mó cuzão.

- Lembra o nome?

- E esse povo lá usa crachá? - Tentava lembrar o rosto - Mas era um tipo alto, meio musculoso... acho que já vi ele com Rafaela alguma vez.

Fernanda se fechou mais ainda um instante. Ela ficava linda até pensando seriamente... puta merda, Bethina, você esta completamente apaixonada por essa mulher. Um som de buzina atravessou a janela dando o início de vida para a Metrópole dezenas de metros abaixo. Fê me olhou fixamente por alguns segundos, roubou um selinho.

- Vamos levantar ou ficar aqui mais um tempo?

- Depois de você me falar quem foi a sua Domme relâmpago eu deixo você levantar.

- Eu vou acabar fazendo xixi na cama.

- Problema teu, a cama é tua.

- Olha que filha da puta é essa minha namorada - Ela sabia apertar os botões certos pra me desmontar - Eu não posso expor essas pessoas assim sabe? Se for uma pessoa pública, como fica?

- Hum... Pode levantar, eu autorizo - Fernanda levantou correndo pro banheiro enquanto eu fiquei deitada pensando quem seria essa pessoa pública - Eu acho que já sei.

- Sabe do que, amor? - Caralho, linda até escovando os dentes - Levanta logo, vamos fazer uma feira, comer pastel.

- Boa - Levantei indo até o banheiro - Eu conheço ela?

- Cara, eu não vou te falar, não insiste.

- Pela sua defensiva isso é um sim... vamos fazer assim, eu digo uns nomes e você só diz quente ou frio, que tal?

- Morno.

- Chata pra caralho - Dei um beliscão naquela pele branca do braço - Coloca uma roupa legal pra gente ir fazer a feira... adoro aquele teu vestido amarelho com bolsos na lateral.

- Ainda não né - Podia sentir na voz o desejo - Depois de julho a gente vê tudo isso... feito?

- Feito, até lá você me diz quem é essa senhora que você teve.

- Não vai rolar.

Se havia algo que minha mãe sempre disse ao meu respeito era o quanto eu conseguia ser chata quando tinha interesse em algo. Podia usar da minha chatice habitual até que ela se enchesse e acabasse falando. Tinha de pensar em uma estratégia pra arrancar essa informação, muito embora eu tivesse uma suspeita... até por aquela camisola e a forma um pouco mais carinhosa que a pessoa que eu penso tratava ela. Aquela cena desses dias atrás... tudo fazia sentido, só precisava da confirmação. O dia passou tranquilo, naquela noite decidimos ficar quietinhos na cama quando resolvi soltar a bomba:

- Eu já sei quem é - Dei um gole curto no vinho - Não precisa esconder mais.

- Puta merda - Fernanda estava com um pijama macio de lhamas ao passo que eu estava com um modelo semelhante, mas de flamingos - Você é insistente, diz quem você acha que é.

- A Sandra.

- A auxiliar de recepcionista? - Ele riu - O que te levou a pensar isso?

- Quando você dá bom dia ela responde seca, claramente ela ainda queria dar mais tapas nessa sua bunda rosada. - Segurei o riso - Fora que ela mal olha.

- Nossa - Senti a respiração dela sair inteira - Você descobriu! Você é foda, amor.

- Eu sei - Decididamente assistir o céu noturno era mais divertido que netflix - Mas falando sério... eu sei mesmo.

- Cara, não insiste nisso.

- Relaxa, por mim tanto faz teus relacionamentos antigos, foram eles que te moldaram pra ser essa pessoa maravilhosa que é hoje.

- Tá... - ela deu um gole no vinho - Então quem você acha que é?

- Na sinceridade? - Ela assentiu com a cabeça - É a Rafaela, né?

- Nossa - Fernanda ficou mais branca que a parede, decididamente era essa a resposta, ela tomou mais um gole do vinho deixando a taça no chão enquanto caía na cama, os olhos cerrados, o sorriso fino só confirmava o que eu descobri e, a frase que veio a seguir, inflou meu ego pra caralho, calma Bethina, pé no chão. - Você é foda, amor.

- Eu sei - Caí pro lado a abraçando - Bora dormir né?

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