segunda-feira, 30 de março de 2020

CdF s2e9: Mudanças

Viajar pela empresa não era bem uma novidade, antes de conhecer a Bethina tinha feito um bate e volta na cidade vizinha para visitar uma gráfica que imprimiria um material para a Lótus. Porém agora era diferente. Achei que não me apaixonaria assim de novo, mas a vida é uma caixinha de surpresas e cá estava eu com saudade da minha namorada.

E o ruim agora era ter que viajar com o Borges, longe dele ser má pessoa, mas tinha aquele pensamento antigo, meio machistinha, mesmo casado espichava o olhar pra mulheres na rua. Não que eu não olhasse, mas olhava por outros motivos. Cidade litorânea é o máximo, muitos vestidos lindos, puta merda.

Na última noite a bomba: Bethina foi demitida. Nunca eu desejei que a ponte-aérea fosse tão rápida. E aquela história de Rafaela fora do conselho? Enviava mensagens mas não tinha resposta. Mesma coisa de Freya e Vali, os dois mudos me preocupavam para caralho. Borges também ficou pensativo com a notícia, provavelmente ele temeu por seu emprego. Acho que todo mundo lá estava nessa.

Tão logo pousamos me despedi dele e fomos cada qual para um lado. O motorista do carro de aplicativo não falou uma palavra durante todo o trajeto. A Metrópole envolta em trevas em pleno três horas da tarde. Vinha um temporal aí. Nem mesmo o porteiro falou algo, apenas um cumprimento rápido de cabeça e seguiu separando a correspondência.

Ao chegar em casa Bethina estava no computador, vazava música alta dos fones, ela recortava uma foto de uma clínica médica, típica imagem de banco gratuito com arte simples, nada muito planejado. O cabelo preso atrás. Resolvi me aproximar em silêncio. Home office e suas liberdades: ela trajava um short-doll azul escuro com bordas brancas. Ela apertou para salvar o que estava fazendo, esticou o dedo no teclado e desligou a música.

- Você é uma péssima ninja - Bethina tirou o fone se levantando e vindo me abraçar - Estava com saudade meu amor!

- O que denunciou minha chegada? - A abracei já a beijando - Estava morrendo de saudade!

- Ouvi você destrancando a porta - Nos afastamos um pouco - Você me dá nojo, até de menininho fica linda, se fuder.

- É? Então vou ficar assim.

- Mas neeeeem fudendo, já deixei uma roupa em cima da cama! Aliás... vai tomar um banho antes que você está cheirando a avião.

- Avião tem cheiro?

- Claro que tem.

- Eu vou, depois você me fala tudo que aconteceu.

- Aconteceu que fui demitida né - Bethina já me empurrava para o banheiro - Vai que vou fazer algo pra comer e aí conversamos.

No banheiro tudo estava preparado para um banho, toalha, cheirinho de limpeza... pelo visto alguém aproveitou os momentos em casa para dar aquela geral. Por pura preguiça tomei apenas uma ducha rápida. Aliás, preguiça não, queria saber a história inteira.

Claro que, ao sair do banho já tinha comida pronta, um short-doll roxo com as bordas brancas e ela me contou toda a história e arbitrariedade do ocorrido. Falei de ligar para Rafaela ao que Bethina me dissuadiu da ideia, disse que sabia se virar e não era a primeira vez que era demitida, fora que os trabalhos de freelance pipocaram rápido, teríamos de cortar algumas coisas, mas no geral daria para viver bem.

Claro que eu não dormi bem e, na manhã seguinte, estava a ponto de sair na mão com o tal novo CEO do grupo. Quem ele pensava que era em demitir Bethina? Ainda mais pelo motivo fútil desses. Precisava descobrir se alguém tinha filmado, porque se tivesse eu meteria um processo no meio do rabo desse filho da puta.

Sentei na minha baia e tudo que eu fazia era sentir falta dela do meu lado, a coisa parecia não fluir. Foca Fernanda, foca. Com o passar das primeiras horas da manhã tudo se encaixava e começava a ter os insights e as coisas iam saindo.

Na hora do almoço fui ao terraço, dessa vez falar com Bethina e dar uma olhada nas hortaliças. Antes de ir embora hoje levaria um pouco de manjericão, parece que ela ia fazer pizza. Namorada prendada é outros quinhentos. Tive a sensação de alguém me chamar quando entrei no elevador. Deve ter sido impressão.

Alonguei o pescoço e me sentei para finalizar um conteúdo para a páscoa e já pensar no institucional para a mandar à imprensa sobre as novidades da Lótus, foi quando meu sentido-aranha sentiu a presença. Tirei o fone de uma das orelhas ouvindo um pigarro. Terno preto, cabelo preto, barba rala. Um cosplay pobre do agente Smith do Matrix.

- Interessante o texto rapaz - A voz era desafinada - Você pelo menos faz coisas melhores que aquela mal educada que sentava do seu lado.

Trinquei os dentes. Senti o sangue subindo, fechei o punho. Eu ia ser demitido, talvez até processado, mas eu ia moer esse filho da puta na porrada. Se tem uma coisa que ser submisso te ensina é como bater. E eu bateria tanto nele que a tendência era sair direto para o hospital. Como se fossemos parte de uma confraria Borges chamou aquela criatura para falar alguma coisa. Baixei a cabeça respirando fundo. Calma, não é o momento.

- Pessoal - Borges chamou a atenção de todo mundo - Esse é Henrique Arantes, ele é o novo presidente do conselho...

- ... Pessoal - Ele interrompeu - Atenção aqui, sei que muita gente ainda está se acostumando, mas vamos nos enturmando, beleza? Conto com vocês para fazer a Lótus mais lucrativa, ta ok?! Agora podem voltar a trabalhar.

Nossa, que sujeito babaca. Lembrou o tipo que ocupou a presidência uns anos atrás. Lamentável que esse tipo de gente ainda exista. E lá vinha ele voltando na minha direção. Será que caneta esferográfica pode matar? Me sentei já lendo um pedaço de texto e buscando o ponto que parei.

- E esse cabelão aí, rapaz - Arantes puxou a cadeira que era de Bethina e sentou do meu lado - De costas até parece uma menina.

- Minha namorada diz o mesmo - Ri tão falso que Borges já se preparava para apartar um eventual conflito - Ela tem raiva do meu cabelo.

- Devia raspar, parecer mais macho saca? - Ele esticou o pescoço e baixou o tom de voz - Então, vi que você é um dos mais antigos por aqui, vou falar com o Borges e você me ajuda a fazer uma lista para demitir alguns aqui... tem muito gasto nesse setor aqui e quero enxugar, a Lótus tem chance de lucrar muito mais com menos gente sabe?

- Sei... - Respira fundo, conta mentalmente até dez - Mas acho que se a Lótus é o que é hoje é por causa desse pessoal aqui.

- Entendo - Ele se levantou - Mas puder me agilizar aquela lista eu agradeço.

Eu não faria esse tipo de lista, nem a pau. O resto do dia foi uma busca eterna por uma inspiração que nunca mais voltou. Borges me mandou uma mensagem pedindo ajuda para dar um jeito nesse cara, topei na hora, ele ia conversar com mais gente e tentar trazer Rafaela e Bethina de volta e pediu que eu ficasse tranquilo que tudo ia ficar bem. Será que ele conhecia meu histórico? Não duvido. Os próximos dias seriam terríveis. E minha terapeuta estaria em um congresso. Puta merda. Vou dormir de janelas fechadas.

sábado, 7 de março de 2020

CdF s2e8: Readequar

"Amor, vou passar dois dias fora com o Borges visitando um fornecedor, vou morrer de saudade."

Eu devia saber que mais cedo ou mais tarde Fernanda ia sair em alguma viagem a negócios. Na real por que eu me preocupava? Sempre fui bastante auto-suficiente. Super auto-suficiente. O fato de eu ter jantado miojo não quer dizer absolutamente nada. Só que odeio cozinhar para mim mesma, só isso. A quem você quer enganar, Bethina? Você ama e sente falta daquela criatura e seu jeitinho estabanado. Tem horas que minha consciência é tão filha da puta que olha... acho que ela me odeia.

Dormir, acordar, ir pra empresa. Trabalhar sem alguém do meu lado pareceu tão merda que minha menstruação veio com todos os combos possíveis: cólica, dor de cabeça, corrimento exagerado, falta de apetite e mudanças bruscas no humor. Claro que as meninas do setor super entenderam e até me trouxeram chocolate e alguns meninos ao me verem de fone, em frente do computador, trabalhando extremamente focada em não explodir com nada fizeram o óbvio e se afastaram.

Falar na empresa houveram diversos rumores sobre a saída da Rafaela do conselho, estava todo mundo meio à flor da pele já e eu acabei absorvendo parte dessa animosidade acho. Depois do trabalho precisava de uma bolsa de água quente, quarenta litros de dipirona e silêncio extremo. Primeira vez que dou graças de Fernanda não estar. Aliás, aquela vagabunda nem pra ter tudo o que nós temos tipo essa desgraça mensal. Será que com a transição ela passaria a ter? Boa pergunta.

Trabalhar em arte sobre dia da mulher era ótimo, ajudava a aliviar todo o desconforto demoníaco que sinto. Decididamente a ideia da Fê de, em vez de dar flores, exaltar a força era genial. Aquela vagaba tinha umas ideias fodas às vezes. Por isso em vez de postagem genérica agora fazia uma montagem exaltando as funcionárias da firma. Foi quando um reflexo apareceu no canto do meu monitor.

- O que a senhorita está fazendo?

- Arte para o dia da mulher.

- Quem autorizou isso? - A voz vinha de um engravatado - Aliás, quem autorizou a senhorita a trabalhar com fone de ouvido? Acha que está em casa?

- Quem autorizou foi meu superior direto - Tirei o fone me virando para ver quem era, um tipo pouco atlético, cabelo preto, pele branca, terno feio, barba mal feita, típica cara de quem não entende de nada além de dinheiro - Qualquer problema pode falar primeiro com ele.

- E ainda tem a petulância de me responder? - O sangue subiu, respira Bethina - E essa arte feia? Quer ligar nosso nome a isso daí? Quem é essa mulher velha? Nossa empresa é jovem, pega uma modelo, não esse maracujá-de-gaveta!

- Primeiro - Me levantei, eu devia ter uns vinte centímetros menos que ele, mas foda-se - Essa pessoa é a recepcionista da empresa, dona Vera, que já está na empresa fazem muitos anos e por isso decidimos enaltece-la, não adianta porra nenhuma dar florzinha em um dia e no outro tratar como capacho - Certamente o setor inteiro parou para ver a cena, agora não dava para parar - Segundo: você é meu chefe direto pra dizer o que eu posso ou não fazer? Acho que não né, então, com licença que eu preciso terminar isso aqui ainda hoje para mandar para o meu chefe direto pra aprovar.

- Qual seu nome?

- Quem quer saber?

- Sou o novo presidente do conselho - Fodeu, os boatos da saída da Rafaela eram reais - Também foda-se quem você é, pode pegar suas coisas e ir para o RH, você está demitida.

As palavras vieram em câmera lenta. Em tempo suficiente para que ele saísse sem esperar a minha resposta. Se uma agulha caísse no chão faria mais barulho que o setor. Uma das estagiárias veio falar comigo sobre o cara ter sido escroto ou algo assim, mas não me ative às palavras. A real é que eu queria só sair dali. Fiquei completamente aérea. Passei no RH, assinei o que precisava e outra moça do setor de comunicação veio falar comigo. Se propôs a ir comigo na delegacia prestar queixa pelo abuso sofrido. Recusei. Só queria sair dali. Chamaram um carro do aplicativo e me colocaram dentro. Quando dei por mim estava no apartamento de Fernanda, sentada no box, de roupa e com o chuveiro ligado.

Não soube precisar quanto tempo passou. Mas sei que a noite veio acompanhada de algumas boas horas chorando. Fernanda me ligou, contei do ocorrido, ela falou de se demitir também. Sororidade. Uma mulher trans oferecendo apoio. Recusei, falei que alguém precisava pagar as contas e que eu daria meu jeito. Depois da ligação me senti melhor. Ouvir a voz dela me fazia bem. Odiava admitir isso, mas ela inteira me deixava em uma paz que eu adorava morar.

Bem dizem que mulheres tem um poder especial de chorar uma noite inteira, assistir um filme idiota e, na manhã seguinte, acordar plena. Me permiti dormir até às dez horas, dei uma bela geral no apartamento, almocei bem e procurei nos contatos uma amiga. Carla, ela tinha uma agência que me ajudou em uma época foda, foi graças aos freelances dela que eu pude sobreviver. Dez minutos de conversa e, a partir de amanhã, ela passaria a me mandar alguns conteúdos, alguns briefings, não era muita coisa, mas era melhor que ficar sem nenhum dinheiro.

Felizmente Fernanda tinha um gosto refinado pra jogos e o computador que estava na sala era bom. Talvez melhor do que eu usava na Lótus. Aproveitei o resto do dia para chorar o resto daquela menstruação filha da puta e preparar uma boa janta pra minha namorada. Afinal, ela ia voltar de viagem e ia querer saber todos os detalhes do que aconteceu, como reagi, o que disse, como o pessoal da empresa reagiu... e eu só queria encher a boca dela de comida, beijos e depois uma bela transa. Não sei porque, mas gostei de comer ela. Credo, Bethina, você é mais bipolar que Fernanda. Ri sozinha. Os próximos dias seriam de readequação, mas né... olha onde já cheguei, readequar é mole.