Viajar pela empresa não era bem uma novidade, antes de conhecer a Bethina tinha feito um bate e volta na cidade vizinha para visitar uma gráfica que imprimiria um material para a Lótus. Porém agora era diferente. Achei que não me apaixonaria assim de novo, mas a vida é uma caixinha de surpresas e cá estava eu com saudade da minha namorada.
E o ruim agora era ter que viajar com o Borges, longe dele ser má pessoa, mas tinha aquele pensamento antigo, meio machistinha, mesmo casado espichava o olhar pra mulheres na rua. Não que eu não olhasse, mas olhava por outros motivos. Cidade litorânea é o máximo, muitos vestidos lindos, puta merda.
Na última noite a bomba: Bethina foi demitida. Nunca eu desejei que a ponte-aérea fosse tão rápida. E aquela história de Rafaela fora do conselho? Enviava mensagens mas não tinha resposta. Mesma coisa de Freya e Vali, os dois mudos me preocupavam para caralho. Borges também ficou pensativo com a notícia, provavelmente ele temeu por seu emprego. Acho que todo mundo lá estava nessa.
Tão logo pousamos me despedi dele e fomos cada qual para um lado. O motorista do carro de aplicativo não falou uma palavra durante todo o trajeto. A Metrópole envolta em trevas em pleno três horas da tarde. Vinha um temporal aí. Nem mesmo o porteiro falou algo, apenas um cumprimento rápido de cabeça e seguiu separando a correspondência.
Ao chegar em casa Bethina estava no computador, vazava música alta dos fones, ela recortava uma foto de uma clínica médica, típica imagem de banco gratuito com arte simples, nada muito planejado. O cabelo preso atrás. Resolvi me aproximar em silêncio. Home office e suas liberdades: ela trajava um short-doll azul escuro com bordas brancas. Ela apertou para salvar o que estava fazendo, esticou o dedo no teclado e desligou a música.
- Você é uma péssima ninja - Bethina tirou o fone se levantando e vindo me abraçar - Estava com saudade meu amor!
- O que denunciou minha chegada? - A abracei já a beijando - Estava morrendo de saudade!
- Ouvi você destrancando a porta - Nos afastamos um pouco - Você me dá nojo, até de menininho fica linda, se fuder.
- É? Então vou ficar assim.
- Mas neeeeem fudendo, já deixei uma roupa em cima da cama! Aliás... vai tomar um banho antes que você está cheirando a avião.
- Avião tem cheiro?
- Claro que tem.
- Eu vou, depois você me fala tudo que aconteceu.
- Aconteceu que fui demitida né - Bethina já me empurrava para o banheiro - Vai que vou fazer algo pra comer e aí conversamos.
No banheiro tudo estava preparado para um banho, toalha, cheirinho de limpeza... pelo visto alguém aproveitou os momentos em casa para dar aquela geral. Por pura preguiça tomei apenas uma ducha rápida. Aliás, preguiça não, queria saber a história inteira.
Claro que, ao sair do banho já tinha comida pronta, um short-doll roxo com as bordas brancas e ela me contou toda a história e arbitrariedade do ocorrido. Falei de ligar para Rafaela ao que Bethina me dissuadiu da ideia, disse que sabia se virar e não era a primeira vez que era demitida, fora que os trabalhos de freelance pipocaram rápido, teríamos de cortar algumas coisas, mas no geral daria para viver bem.
Claro que eu não dormi bem e, na manhã seguinte, estava a ponto de sair na mão com o tal novo CEO do grupo. Quem ele pensava que era em demitir Bethina? Ainda mais pelo motivo fútil desses. Precisava descobrir se alguém tinha filmado, porque se tivesse eu meteria um processo no meio do rabo desse filho da puta.
Sentei na minha baia e tudo que eu fazia era sentir falta dela do meu lado, a coisa parecia não fluir. Foca Fernanda, foca. Com o passar das primeiras horas da manhã tudo se encaixava e começava a ter os insights e as coisas iam saindo.
Na hora do almoço fui ao terraço, dessa vez falar com Bethina e dar uma olhada nas hortaliças. Antes de ir embora hoje levaria um pouco de manjericão, parece que ela ia fazer pizza. Namorada prendada é outros quinhentos. Tive a sensação de alguém me chamar quando entrei no elevador. Deve ter sido impressão.
Alonguei o pescoço e me sentei para finalizar um conteúdo para a páscoa e já pensar no institucional para a mandar à imprensa sobre as novidades da Lótus, foi quando meu sentido-aranha sentiu a presença. Tirei o fone de uma das orelhas ouvindo um pigarro. Terno preto, cabelo preto, barba rala. Um cosplay pobre do agente Smith do Matrix.
- Interessante o texto rapaz - A voz era desafinada - Você pelo menos faz coisas melhores que aquela mal educada que sentava do seu lado.
Trinquei os dentes. Senti o sangue subindo, fechei o punho. Eu ia ser demitido, talvez até processado, mas eu ia moer esse filho da puta na porrada. Se tem uma coisa que ser submisso te ensina é como bater. E eu bateria tanto nele que a tendência era sair direto para o hospital. Como se fossemos parte de uma confraria Borges chamou aquela criatura para falar alguma coisa. Baixei a cabeça respirando fundo. Calma, não é o momento.
- Pessoal - Borges chamou a atenção de todo mundo - Esse é Henrique Arantes, ele é o novo presidente do conselho...
- ... Pessoal - Ele interrompeu - Atenção aqui, sei que muita gente ainda está se acostumando, mas vamos nos enturmando, beleza? Conto com vocês para fazer a Lótus mais lucrativa, ta ok?! Agora podem voltar a trabalhar.
Nossa, que sujeito babaca. Lembrou o tipo que ocupou a presidência uns anos atrás. Lamentável que esse tipo de gente ainda exista. E lá vinha ele voltando na minha direção. Será que caneta esferográfica pode matar? Me sentei já lendo um pedaço de texto e buscando o ponto que parei.
- E esse cabelão aí, rapaz - Arantes puxou a cadeira que era de Bethina e sentou do meu lado - De costas até parece uma menina.
- Minha namorada diz o mesmo - Ri tão falso que Borges já se preparava para apartar um eventual conflito - Ela tem raiva do meu cabelo.
- Devia raspar, parecer mais macho saca? - Ele esticou o pescoço e baixou o tom de voz - Então, vi que você é um dos mais antigos por aqui, vou falar com o Borges e você me ajuda a fazer uma lista para demitir alguns aqui... tem muito gasto nesse setor aqui e quero enxugar, a Lótus tem chance de lucrar muito mais com menos gente sabe?
- Sei... - Respira fundo, conta mentalmente até dez - Mas acho que se a Lótus é o que é hoje é por causa desse pessoal aqui.
- Entendo - Ele se levantou - Mas puder me agilizar aquela lista eu agradeço.
Eu não faria esse tipo de lista, nem a pau. O resto do dia foi uma busca eterna por uma inspiração que nunca mais voltou. Borges me mandou uma mensagem pedindo ajuda para dar um jeito nesse cara, topei na hora, ele ia conversar com mais gente e tentar trazer Rafaela e Bethina de volta e pediu que eu ficasse tranquilo que tudo ia ficar bem. Será que ele conhecia meu histórico? Não duvido. Os próximos dias seriam terríveis. E minha terapeuta estaria em um congresso. Puta merda. Vou dormir de janelas fechadas.
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