"Amor, vou passar dois dias fora com o Borges visitando um fornecedor, vou morrer de saudade."
Eu devia saber que mais cedo ou mais tarde Fernanda ia sair em alguma viagem a negócios. Na real por que eu me preocupava? Sempre fui bastante auto-suficiente. Super auto-suficiente. O fato de eu ter jantado miojo não quer dizer absolutamente nada. Só que odeio cozinhar para mim mesma, só isso. A quem você quer enganar, Bethina? Você ama e sente falta daquela criatura e seu jeitinho estabanado. Tem horas que minha consciência é tão filha da puta que olha... acho que ela me odeia.
Dormir, acordar, ir pra empresa. Trabalhar sem alguém do meu lado pareceu tão merda que minha menstruação veio com todos os combos possíveis: cólica, dor de cabeça, corrimento exagerado, falta de apetite e mudanças bruscas no humor. Claro que as meninas do setor super entenderam e até me trouxeram chocolate e alguns meninos ao me verem de fone, em frente do computador, trabalhando extremamente focada em não explodir com nada fizeram o óbvio e se afastaram.
Falar na empresa houveram diversos rumores sobre a saída da Rafaela do conselho, estava todo mundo meio à flor da pele já e eu acabei absorvendo parte dessa animosidade acho. Depois do trabalho precisava de uma bolsa de água quente, quarenta litros de dipirona e silêncio extremo. Primeira vez que dou graças de Fernanda não estar. Aliás, aquela vagabunda nem pra ter tudo o que nós temos tipo essa desgraça mensal. Será que com a transição ela passaria a ter? Boa pergunta.
Trabalhar em arte sobre dia da mulher era ótimo, ajudava a aliviar todo o desconforto demoníaco que sinto. Decididamente a ideia da Fê de, em vez de dar flores, exaltar a força era genial. Aquela vagaba tinha umas ideias fodas às vezes. Por isso em vez de postagem genérica agora fazia uma montagem exaltando as funcionárias da firma. Foi quando um reflexo apareceu no canto do meu monitor.
- O que a senhorita está fazendo?
- Arte para o dia da mulher.
- Quem autorizou isso? - A voz vinha de um engravatado - Aliás, quem autorizou a senhorita a trabalhar com fone de ouvido? Acha que está em casa?
- Quem autorizou foi meu superior direto - Tirei o fone me virando para ver quem era, um tipo pouco atlético, cabelo preto, pele branca, terno feio, barba mal feita, típica cara de quem não entende de nada além de dinheiro - Qualquer problema pode falar primeiro com ele.
- E ainda tem a petulância de me responder? - O sangue subiu, respira Bethina - E essa arte feia? Quer ligar nosso nome a isso daí? Quem é essa mulher velha? Nossa empresa é jovem, pega uma modelo, não esse maracujá-de-gaveta!
- Primeiro - Me levantei, eu devia ter uns vinte centímetros menos que ele, mas foda-se - Essa pessoa é a recepcionista da empresa, dona Vera, que já está na empresa fazem muitos anos e por isso decidimos enaltece-la, não adianta porra nenhuma dar florzinha em um dia e no outro tratar como capacho - Certamente o setor inteiro parou para ver a cena, agora não dava para parar - Segundo: você é meu chefe direto pra dizer o que eu posso ou não fazer? Acho que não né, então, com licença que eu preciso terminar isso aqui ainda hoje para mandar para o meu chefe direto pra aprovar.
- Qual seu nome?
- Quem quer saber?
- Sou o novo presidente do conselho - Fodeu, os boatos da saída da Rafaela eram reais - Também foda-se quem você é, pode pegar suas coisas e ir para o RH, você está demitida.
As palavras vieram em câmera lenta. Em tempo suficiente para que ele saísse sem esperar a minha resposta. Se uma agulha caísse no chão faria mais barulho que o setor. Uma das estagiárias veio falar comigo sobre o cara ter sido escroto ou algo assim, mas não me ative às palavras. A real é que eu queria só sair dali. Fiquei completamente aérea. Passei no RH, assinei o que precisava e outra moça do setor de comunicação veio falar comigo. Se propôs a ir comigo na delegacia prestar queixa pelo abuso sofrido. Recusei. Só queria sair dali. Chamaram um carro do aplicativo e me colocaram dentro. Quando dei por mim estava no apartamento de Fernanda, sentada no box, de roupa e com o chuveiro ligado.
Não soube precisar quanto tempo passou. Mas sei que a noite veio acompanhada de algumas boas horas chorando. Fernanda me ligou, contei do ocorrido, ela falou de se demitir também. Sororidade. Uma mulher trans oferecendo apoio. Recusei, falei que alguém precisava pagar as contas e que eu daria meu jeito. Depois da ligação me senti melhor. Ouvir a voz dela me fazia bem. Odiava admitir isso, mas ela inteira me deixava em uma paz que eu adorava morar.
Bem dizem que mulheres tem um poder especial de chorar uma noite inteira, assistir um filme idiota e, na manhã seguinte, acordar plena. Me permiti dormir até às dez horas, dei uma bela geral no apartamento, almocei bem e procurei nos contatos uma amiga. Carla, ela tinha uma agência que me ajudou em uma época foda, foi graças aos freelances dela que eu pude sobreviver. Dez minutos de conversa e, a partir de amanhã, ela passaria a me mandar alguns conteúdos, alguns briefings, não era muita coisa, mas era melhor que ficar sem nenhum dinheiro.
Felizmente Fernanda tinha um gosto refinado pra jogos e o computador que estava na sala era bom. Talvez melhor do que eu usava na Lótus. Aproveitei o resto do dia para chorar o resto daquela menstruação filha da puta e preparar uma boa janta pra minha namorada. Afinal, ela ia voltar de viagem e ia querer saber todos os detalhes do que aconteceu, como reagi, o que disse, como o pessoal da empresa reagiu... e eu só queria encher a boca dela de comida, beijos e depois uma bela transa. Não sei porque, mas gostei de comer ela. Credo, Bethina, você é mais bipolar que Fernanda. Ri sozinha. Os próximos dias seriam de readequação, mas né... olha onde já cheguei, readequar é mole.
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