Devo confessar que essa sexta-feira passou mais rápido do que esperava. Aos poucos as coisas iam se encaixando e a chefia incomodava menos aqui em baixo. Enquanto estivesse todo mundo em silêncio e produzindo eles não tinham motivo para vir visitar a plebe. Pisquei e o dia já findava com toda a campanha de reajustes colocada no ar... a hora que Rafaela voltar ela vai ter muito trabalho para recolocar a Lótus em pé. Mas é aquela coisa: o passarinho do fio de baixo tem que aceitar o que vier do fio de cima.
Uma vez na rua e o fluxo de trânsito me levou completamente no automático até a terapia. Sem um motivo aparente eu tive algumas lembranças no decorrer do dia e partilharia elas com minha analista. A velocidade de minha chegada me trouxe quase quinze minutos antes. Perguntei qual era a janta, Bethina não respondeu. Insisti. Ela disse que íamos jantar fora. Era uma boa, já fazia um bom tempo que ou fazíamos algo em casa ou pedíamos comida por delivery... a verdade é que eu estava em um fluxo de trabalho para casa, casa para o trabalho. Vez por outra terapia, mercado, feira... nada além disso.
Ao entrar na sala da terapeuta me deparei com um divã novo, totalmente preto, uma luz mais intimista, um pouco mais escuro, um abajur estranho e duas poltronas além de um tapete extremamente macio.
- Ficou chique.
- E não é menina? Resolvi dar uma repaginada, ganhei um divã novo, chegou agorinha, você vai ser a primeira a experimentar.
- Que honra! - Me sentei, era óbvio que era novo, era duro e levemente desconfortável - Só esse abajur...
- Ah, isso aí vou botar fora, a menina que faz estágio aqui a tarde trouxe... achei horrível. - Me ajeitei soltando o cabelo e respirando fundo - Mas e como foi a sua semana?
- Foi corrida, trabalhei, assisti alguns filmes... nada muito relevante... Eu só tive uma lembrança vindo pra cá.
- Que tipo de lembrança?
- De quando fiz terapia a primeira vez... uns anos atrás, antes mesmo da Flávia, era uma época estranha, eu tinha me formado e estava em um emprego bonzinho, ainda morava no interior, uma cidade grande, mas no interior - forcei o R para dar ênfase - eu já cheguei disposta a falar tudo, abrir o jogo total sabe? Não tinha falado pra ninguém do meu lado... lado entre muitas aspas... tinha algumas amigas próximas que sabiam, mas nunca tinham visto ao vivo sabe? Aí resolvi que ia usar a terapia pra isso, afinal, eu tava lá pra isso né? Demorei uns dois meses de sessões semanais até conseguir coragem pra pedir pra usar... e quando usei, tudo pareceu fazer tanto sentido sabe? Era como se a minha vida tivesse se dividido em antes e depois daquele momento, eu ainda estava em conflito, mas naqueles quarenta minutos de sessão eu fiquei... nas nuvens. Ao voltar pra casa aquele dia eu não acreditava que tinha feito isso mesmo... pena que depois de um tempo eu tive que parar por falta de grana.
- Puts - Ela parecia saber como era isso - E ainda tem o contato dela?
- Tenho! Ela mora na mesma cidade que a minha mãe... veja que mundo pequeno.
- Ah que legal - A ouvi rabiscar algo - E ela já sabe dos seus passos futuros?
- Ainda não... quero mostrar ao vivo.
- Manter a tradição, saquei - Rimos - Eu posso notar aqui, Fê, que você ficou muito tempo esperando sabe? Não vou julgar seus motivos nem nada, mas esse tempo... - Ela tocou meu braço de leve - ... deve ter sido difícil né.
- F-foi... - Mordi o lábio, não estava afim de chorar - Mas foi importante.
- Importante?
- É, me trouxe até aqui.
- Own modeuzo... não adianta, garota, eu sou firme e você não vai me fazer chorar.
Rimos. Depois daquela lembrança a sessão aconteceu sem maiores histórias, só o cotidiano da empresa, de casa e o quanto me cortava o coração ao ter que deixar Bethina em casa sozinha. Findada aquele momento eu fui para casa pensar na minha existência e tirar essa casca de Fernando que tanto me sufocava mas ainda era necessária. Necessária por que? Eu precisava dum rompante para assumir de vez minha real identidade.
Ao chegar em casa Bethina estava jogando. Pista de Interlagos, conhecia cada curva daquele local. Esperei ela ganhar a subida do café para dar boa noite e ver que não bateu meu recorde por meio segundo.
- Provavelmente está errando o laranjinha...
- Não, é o bico de pato.
- Ali joga a primeira e faz por dentro a primeira perna porque vai tracionar melhor a segunda...
- Vai tomar banho vai, recebi um freela inesperado e ganhei uma graninha legal, dá pra gente jantar fora, quem sabe pegar uma baladinha suave, sair um pouco desse apartamento... que acha?
- Eu gosto... vamos onde?
- Surpresa, agora vai, garota, vou dar mais uma volta aqui e vou me arrumar.
Com a certeza que meu tempo não seria batido hoje entrei no banho e deixei as energias ruins fluírem pelo meu corpo e escorrerem pelo ralo. Era aquela ducha vaporosa do The Sims que fazia os Sims saírem radiantes. Passei creme no rosto, no cabelo... chegava a dar dó eu ter que ser menininho pra sair. Na verdade era irritante mesmo.
Saí do banheiro enrolada na toalha e Bethina estava na cozinha, saia e comprimento médio, uma blusa com mangas curtas, cabelo levemente armado, uma maquiagem linda e uma sandália baixa nos pés. Que mulher maravilhosa. Fui para o quarto onde uma blusinha de mangas três quartos e uma saia longa me aguardavam em cima da cama. "Boa tentativa" pensei já abrindo o guarda-roupas. Não haviam outras roupas.
- Amor... cadê minhas roupas?
- Veste o que deixei em cima da cama.
- Mas a gente não ia sair?
- A gente vai, quando terminar de se vestir vem aqui que vou te maquiar.
- Mas...
- Mas o quê, garota? - Eu ainda estava enrolada na toalha quando ela entrou no quarto - Olha, amor, eu super entendo na empresa você ainda ter que manter o Fernando, mas comigo, você não precisa disso, eu quero sair com você, mas a você real saca? Me apaixonei pelo Fernando e agora eu amo a Fernanda, você é maravilhosa, linda, não precisa se esconder em casa... você merece o mundo.
Ela me abraçou forte, choramos juntas por alguns minutos, em seguida, recobrando o papel de quem quer me forçar a sair da zona de conforto, ela mandou eu me apressar. O arrepio que senti ao vestir aquela blusa e depois a saia fpo diferente, foi algo completamente novo, talvez só comparável à primeira vez que me mostrei, lá pra terapeuta, anos atrás. Arrumei a saia na altura certa, o sutiã com bojo me fazia parecer mais feminina, um peito pequeno, mas convincente. Nos pés uma rasteirinha.
- Vai se foder - Assim que coloquei o pé fora do quarto Bethina me recebeu com aquele jeito dela - Como que eu fui arrumar uma namorada tão linda? Senta aqui, vou te maquiar pra gente sair - Abri a boca para repensarmos e ela cortou em cima - E nem pensar em arregar agora, temos uma reserva e duas entradas pra um pagode - Fiz careta - Brincadeira, é uma baladinha tecno suave... bem gostosinho, dá aqui a orelha - O brinco de argola quase tocava meu ombro - a outra... e voilá, a namorada mais linda do mundo está perfeita. Agora vamos.
Ao mesmo tempo que queria sair por quela porta quis voltar para dentro do quarto e me esconder debaixo das cobertas. Bethina não era terapeuta mas notou minha hesitação e me puxou pelo braço, não com força, mas com a gentileza de quem sabe que aquele passo era de extrema importância para meu crescimento e minha aceitação.
Ao passar a soleira da porta eu quase congelei. No elevador eu, mentalmente, rezei para que não entrasse nenhum vizinho. No décimo andar o diminuto veículo parou. Entrou o síndico com a esposa. Bethina tomou sua mão na minha e, de repente, eu senti que poderia enfrentar o mundo inteiro, foi como um estalo. Ao descer no andar da garagem o representante de Tim Maia desejou boa noite e, em tom brincalhão, juízo às jovens. Passamos pelo hall de entrada dando um honesto boa noite ao porteiro, o mesmo que eu discutia futebol às vezes.
Logo o carro do aplicativo chegou e eu sentei no meio. Senti os olhares do motorista, ao mesmo tempo que gostei de ser desejada como a mulher que sempre quis ser eu me senti um pouco invadida por aquele par de orbes que deviam estar na estrada. Quando estávamos perto do restaurante puxei Bethina para perto e dei um beijo nela, nada muito épico, apenas para deixar claro que eu não tinha o menor interesse em Rubens, o motorista.
O jantar delicioso, em um ambiente com luz baixa onde mal dava para ver as outras pessoas. Pude gastar todo o meu talento nas horas vendo técnicas de afinação vocal que vi na internet nos últimos anos. Até minha namorada percebeu que me joguei naquela situação e estava tentando aproveitar ao máximo. A casa noturna ficava dois quarteirões dali, em uma parte da cidade cheia de espaços de festa, bares, pessoas diferentes... imediatamente na nossa frente na fila tinha uma drag, maquiagem carregada, vestido curto. Quase quis dar umas dicas de como se arrumar, mas cada um cada um. Algumas horas depois estava exausta e pronta para um belo sono de beleza.
Bethina assentiu com a cabeça. O carro veio e notei que estávamos indo para outro lado.
- Para onde estamos indo?
- Ahhhh... ficou curiosa?
- Fiquei - A voz chegou a sair um pouco do tom - Sério, pra onde está me levando agora, dona Bethina?
- Segredo - Ela puxou da bolsa uma fita de pano - Coloca isso.
- Uma venda? Sério?
- Sério, anda logo, garota.
Com a destreza de alguém levemente alcoolizada eu cobri os olhos com a venda e, fazer isso, me aguçou os outros sentidos e a lembrança. Bethina não tinha chamado carro nenhum. Esse aqui tinha os bancos de couro. Quem dirigia era um par de olhos felinos que sorriu ao me ver. Agora fiquei bolada. Antes de eu poder fazer algo senti um ferro frio ao redor dos meus pulsos.
- Bethina - Meu tom de voz saiu como um trovão - o que está acontecendo aqui?
- Eu disse que ela não ia notar - a voz veio do banco da frente - A propósito, você é linda, Fernanda... agora, se puder ficar caladinha, eu agradeço, odiaria ter que pedir pra Bê colocar uma mordaça em você e estragar essa make divina, já estamos chegando.
Por essa eu não esperava. E o foda é que aquela voz não me era estranha. Já tinha ouvido ela em outros lugares mas não conseguia ligar o som à pessoa. Bem dizem que nervosismo afeta o raciocínio. Pensa Fernanda, pensa. Quem teria cacife de fazer isso? Conseguir reserva para aquele restaurante? Amaciar o corpo na balada? O único nome que me passava na cabeça era de Rafaela. Flávia talvez, mas essa hora ela devia estar curtindo a vida em algum lugar da Inglaterra. A voz da motorista deu boa noite à outra voz externa, passamos um quebra molas... não conseguia imaginar a surpresa que viria nos próximos minutos. Você me paga, Bethina.