quarta-feira, 20 de maio de 2020

CdF s2 e14: Firmeza

A segunda-feira chegou e com ela toda aquela ressaca do final de semana mais incrível da minha vida. Quis o destino que ele fosse ao lado da mulher que eu amo. Aliás, quis não, foi premeditado né, senhor destino? Depois de tantos anos eu estava novamente com um anel no dedo, mas dessa vez tinha um sentido. O sol na cobertura da Lótus era a lembrança de que eu sou maior que tudo isso aqui, de que eu posso tudo mais, eu posso ser quem eu quiser e pronto.

- Você é previsível - Freya sentou do meu lado, uma lata de coca-cola se colocou entre a gente - Sabia que ia ter encontrar aqui.

- Só sou previsível em horário comercial - Ri - Depois... vish.

- Ah, disso não duvido - Ela bebeu um gole do refrigerante - A propósito, parabéns pelo noivado, quando vai ser o casório?

- Você tem um futuro melhor que a Rafaela - A olhei de canto - Tem uma visão mais aguçada, é mais detalhista, tem um tom irônico na fala...

- Você acha? - Ela ficou introspectiva um instante - Talvez num futuro bem distante.

- Ou nem tão distante assim...

- Falando nisso - Freya bebeu mais um gole me oferecendo, ao que declinei - Gostei da dona Rafaela vindo do espaço, pensa em continuar a história?

- Do que está falando, garota?

- Olha como fala comigo, mocinha, ainda sou sua chefe direta - ela gargalhou brevemente - Digamos que eu li aquele seu conto da Rafaela vindo de outro planeta e tals, tem potencial... pensa em continuar?

- Como você sabe desse escrito?

- Tenho boas fontes.

- Falando sério - Me virei para ela - Andou hackeando meu computador?

- Claro que não, tenho uma boa amiga, só isso.

- Desde quando você e a Bê são amigas?

- Desde quando vocês ficaram a primeira vez... ela foi ver seu guarda-roupas de menina e surtou né, aliás, você me deve uma por isso.

- Devo?

- Sim, ela veio aqui em cima e eu vim achando que era você - Ela me olhou - Mas quando cheguei era ela, depois ela contou a história toda e no fim eu falei que ela devia te pressionar para que falasse toda a verdade... ou seja, no final das contas eu sou a cupido particular de vocês.

- Nossa, não sabia dessa... obrigada.

- Então é oficial? - Freya deu um gole longo na bebida voltando a olhar pro horizonte de prédios - Você vai mesmo adiante?

- Como assim? Casar com a Bethina? Vou sim, eu amo ela e...

- Não, garota, não se faz de lerda - Ela franziu o cenho um pouco - Vai mesmo transicionar e virar uma menina completa?

- Eita... - Prendi a respiração um instante, olhei para o horizonte e deixei escapar um suspiro longo - Pelo visto as notícias chegam rápido do lado de lá.

- Quem acha que conseguiu o restaurante sexta-feira? - Freya sorriu - Assim como Rafaela, eu quero te ver voando fora do casulo.

- Você é foda... - Foi impossível conter uma lágrima de felicidade que rolou pelo contorno do meu nariz - E a situação da empresa, como tá?

- Como assim?

- Trabalho como locutora na rádio corredor, preciso de novidades para noticiar.

- Logo terá, agora vamos voltar ao trabalho... escrava.

- Você não manda em mim - Mostrei a língua para Freya cruzando os braços - Eu vou porque eu quero.

- Porque quer e precisa comprar um guarda-roupas inteiro, não só metade.

- Também.

- E porque vai casar - Estávamos em pé rumando para a porta que ligava a cobertura às escadas quando Freya, em um movimento rápido se virou me abraçando, correspondi - Parabéns! Já tem data o noivado?

- Não, ainda não pensamos em nada... 

- Pois trate de pensar, soube que você quer tirar duas semanas de folga mês que vem né.

- Caralho velho - Rimos - O que você não sabe?

- Os pedidos do RH passam por mim... mas vai antecipar a Lua de mel?

- Não - Caminhamos pela escadaria até chegar ao corredor onde o déspota tentava sugar ao máximo o lucro em detrimento das pessoas - É algo maior que eu preciso resolver.

- Tipo o que?

- Tipo falar com a minha mãe...

- ... Sobre tudo isso, uau - Ela arqueou as sobrancelhas - A borboleta resolveu sair do casulo e voar a toda velocidade, gostei disso.

- Uma hora ia ter que acontecer né.

- Verdade, bom conversar contigo, precisando, sabe onde estou.

E assim nos despedimos. Mesmo que não tão direto era bom ver o apoio de Freya porque sabia que ela era apenas a porta-voz da aprovação dos membros da cobertura. Pode parecer estranho, mas a chancela dela me fazia ganhar mais força e aceitar que era o caminho e pronto. Sem mais dúvidas, só tinha de seguir o fluxo e tudo ia encaminhar para o meu futuro. Aliás, meu futuro agora não era só meu, era meu e de Bethina.

domingo, 10 de maio de 2020

CdF s2 e13 - Relicário

Fernanda se calou tentando captar cada mínimo sinal do que estava ao seu redor. Apesar do álcool em seu sangue tentava lembrar qual tinha sido o caminho e, baseado nisso, poderia pensar o que havia no lado da cidade que estivesse. Da boate para a esquerda, reto alguns quarteirões e a venda. Depois disso uma para a direita e incontáveis quilômetros para frente com curvas esporádicas. Se o GPS interno dela estivesse funcionando bem estariam em um lado mais antigo da cidade.

Depois do quebra-molas e da conversa rápida da motorista com alguém externo o carro rodou não mais que um minuto. Tão logo o veículo parou Bethina foi logo abrindo a porta, o que trouxe uma lufada de ar gelado do lado exterior. Com as orelhas em pé tal qual uma criatura felina que ouve um ruído e busca mais sobre, Fernanda tentava ouvir alguma coisa. Só murmúrios, foi quando o outro lado do carro foi aberto e a aspirante à sequestradora tocou sutilmente o ombro da sequestranda.

- Vem cá, deixa eu tirar isso aqui... não sei porque a Bê quis por isso - Tão logo o pulso ficou livre Fernanda desceu ficando em pé - Segura em mim, espero que goste do que ela planejou.

- Ela planejou?

- Sim, ela não entrou em detalhes, mas disse que viu alguma coisa e resolveu te dar esse presente... como minha agenda tava vazia esse final de semana, topei na hora, tudo pra ver minha prima feliz.

- Prima?

- Ops - As duas caminhavam lentamente para dentro de uma estrutura - Eu não falei nada.

- O que as duas estão conversando hem? - Bethina tinha um tom duro, mas ao mesmo tempo doce. - Aposto que a linguaruda aí abriu o bico né.

- Eu não... sei que sua mão é pesada - As duas riram enquanto Fernanda tentava entender onde estava, o chão era duro e os sons da cidade eram mais baixos - leva ela? Vou pegar o equipamento.

- Claro! Já vou ligando as luzes também... - E assim Bethina segurou o braço da namorada e entraram na estrutura - O que está achando da noite, amor?

- Estou adorando esse mistério - Ela franziu o cenho - Quando chegarmos em casa vou gastar tudo que aprendi com minhas antigas Dommes.

- Vai nada, você é doce demais pra isso - O ambiente parecia vazio pelo eco das vozes - Sabe, amor... esses dias estava trabalhando e achei um meio que diário seu, curiosa que sou acabei lendo.

- É? - Fernanda tentava se lembrar do que tinha escrito, a verdade é que, quando foi parar a terapia anos atrás por falta de dinheiro, foi recomendado fazer um diário, nem que fosse uma vez por semana, pro caso de conseguir voltar às sessões poder falar tudo que aconteceu - E o que achou lá?

- Um dos seus desejos mais lindos... eu até imprimi - Da bolsa Bethina tirou uma folha de papel dobrado - "Semana dezenove: hoje depois de entregar alguns freelas que mal vão cobrir as contas do mês me peguei pensativo, onde eu quero chegar com tudo isso? Vesti a saia pra pensar melhor, talvez essa maluquice do BDSM seja só uma fuga pra algo maior, em uma situação onde sou obrigado a estar em uma posição que é a que eu quero estar na vida, não só durante uma sessão. Posso estar me precipitando, mas se hoje fosse a data final pra escolha eu escolheria ser menina, nem que fosse só pra modelar, me sinto melhor assim."

Foi impossível para Fernanda não lacrimejar debaixo da venda. Passou todo um filme na sua cabeça de tudo que passou até chegar aqui. Toda a curiosidade adolescente até descobrir um termo que lhe fez encontrar seu caminho depois de inúmeros desvios. Com ou sem permissão tirou a venda. "Foda-se a surpresa". As lágrimas a impediam de ver onde estava. Sem aviso abraçou Bethina.

- Se você não existisse eu tinha que te inventar, garota - Era nítida a emoção das duas naquele instante - Eu te amo, amo, amo e amo muito!

- E eu nem li a segunda parte - Bethina ainda tinha o papel à mão, levou alguns segundos para se recompor - "Semana vinte e um: Passei um dia inteiro de saia, cada vez que passava em frente do espelho ele me sorria, as fotos também... acho que nunca tirei tanta selfie linda. O foda é que eu não me sinto atraído por outros homens, mas que mulher vai querer uma criatura como eu? Tudo isso me deixa confuso. Cogitei comentar isso com minha antiga terapeuta, mas deixa pra quando voltar à normalidade das sessões..."

- E olha só - Fernanda limpava o rosto tentando não estragar a maquiagem - Encontrei uma mulher que quis a criatura que eu sou.

- Uma criatura linda! - Beijaram-se - Uma criatura maravilhosa que eu amo!

- Que coisa mais linda - A voz vinha da motorista carregando equipamento de fotografia e com a câmera na mão - Vocês são um casal lindo.

- Então, amor - Bethina se recompôs e saiu do abraço - Essa é minha prima, Bruna, ela é fotógrafa, adora fazer ensaios de minorias mas faz casamentos e velórios pra pagar as contas.

- Prazer - Fernanda ameaçou esticar a mão, mas Bruna já foi logo dando dois beijos, um em cada face do rosto - Eu já ouvi sua voz em algum lugar...

- Provavelmente, eu volte e meia estava na Lótus tirando umas fotos.

- Olha só! Sabia! Suas fotos são ótimas!

- Obrigada! Agora vamos posar, meninas?

E assim, uma noite que começou com inúmeras dúvidas e um glaciar completo na barriga de Fernanda, ganhava cores e calores de luzes profissionais instaladas no antigo prédio que era, também, o estúdio de Bruna. Ali achou todas as roupas que tinham sumido de seu guarda-roupas e muito mais. Seu coração quase saiu pela boca quando viu um vestido de noiva como sempre imaginou, inteiro feito de renda e com saia de tule por baixo... infelizmente ela era muito grande para a peça, porém Bethina foi para dentro da indumentária nupcial. Nesse meio tempo Fernanda estava dentro de um vestido preto com bolinhas pretas, saia de tule preto por baixo, uma perfeita pinup dos anos cinquenta, foi quando teve um estalo.

- Bê - Fernanda tomou a mão de Bethina na sua, apoiou o joelho direito no chão - Quer se casar comigo?

- Caralho - O coração de Bethina bateu uma vez em falso, quase sentiu o corpo desfalecer, o choro veio acompanhado do sorriso bobo de quem sempre sonhou com essa cena, talvez não dela dentro dum vestido de noiva e a namorada de pinup, mas, ainda assim era melhor do que ela jamais sonhou - Claro que eu aceito!

domingo, 3 de maio de 2020

CdF s2e12: Passeio

Devo confessar que essa sexta-feira passou mais rápido do que esperava. Aos poucos as coisas iam se encaixando e a chefia incomodava menos aqui em baixo. Enquanto estivesse todo mundo em silêncio e produzindo eles não tinham motivo para vir visitar a plebe. Pisquei e o dia já findava com toda a campanha de reajustes colocada no ar... a hora que Rafaela voltar ela vai ter muito trabalho para recolocar a Lótus em pé. Mas é aquela coisa: o passarinho do fio de baixo tem que aceitar o que vier do fio de cima.

Uma vez na rua e o fluxo de trânsito me levou completamente no automático até a terapia. Sem um motivo aparente eu tive algumas lembranças no decorrer do dia e partilharia elas com minha analista. A velocidade de minha chegada me trouxe quase quinze minutos antes. Perguntei qual era a janta, Bethina não respondeu. Insisti. Ela disse que íamos jantar fora. Era uma boa, já fazia um bom tempo que ou fazíamos algo em casa ou pedíamos comida por delivery... a verdade é que eu estava em um fluxo de trabalho para casa, casa para o trabalho. Vez por outra terapia, mercado, feira... nada além disso.

Ao entrar na sala da terapeuta me deparei com um divã novo, totalmente preto, uma luz mais intimista, um pouco mais escuro, um abajur estranho e duas poltronas além de um tapete extremamente macio.

- Ficou chique.

- E não é menina? Resolvi dar uma repaginada, ganhei um divã novo, chegou agorinha, você vai ser a primeira a experimentar.

- Que honra! - Me sentei, era óbvio que era novo, era duro e levemente desconfortável - Só esse abajur...

- Ah, isso aí vou botar fora, a menina que faz estágio aqui a tarde trouxe... achei horrível. - Me ajeitei soltando o cabelo e respirando fundo - Mas e como foi a sua semana?

- Foi corrida, trabalhei, assisti alguns filmes... nada muito relevante... Eu só tive uma lembrança vindo pra cá.

- Que tipo de lembrança?

- De quando fiz terapia a primeira vez... uns anos atrás, antes mesmo da Flávia, era uma época estranha, eu tinha me formado e estava em um emprego bonzinho, ainda morava no interior, uma cidade grande, mas no interior - forcei o R para dar ênfase - eu já cheguei disposta a falar tudo, abrir o jogo total sabe? Não tinha falado pra ninguém do meu lado... lado entre muitas aspas... tinha algumas amigas próximas que sabiam, mas nunca tinham visto ao vivo sabe? Aí resolvi que ia usar a terapia pra isso, afinal, eu tava lá pra isso né? Demorei uns dois meses de sessões semanais até conseguir coragem pra pedir pra usar... e quando usei, tudo pareceu fazer tanto sentido sabe? Era como se a minha vida tivesse se dividido em antes e depois daquele momento, eu ainda estava em conflito, mas naqueles quarenta minutos de sessão eu fiquei... nas nuvens. Ao voltar pra casa aquele dia eu não acreditava que tinha feito isso mesmo... pena que depois de um tempo eu tive que parar por falta de grana.

- Puts - Ela parecia saber como era isso - E ainda tem o contato dela?

- Tenho! Ela mora na mesma cidade que a minha mãe... veja que mundo pequeno.

- Ah que legal - A ouvi rabiscar algo - E ela já sabe dos seus passos futuros?

- Ainda não... quero mostrar ao vivo.

- Manter a tradição, saquei - Rimos - Eu posso notar aqui, Fê, que você ficou muito tempo esperando sabe? Não vou julgar seus motivos nem nada, mas esse tempo... - Ela tocou meu braço de leve - ... deve ter sido difícil né.

- F-foi... - Mordi o lábio, não estava afim de chorar - Mas foi importante.

- Importante?

- É, me trouxe até aqui.

- Own modeuzo... não adianta, garota, eu sou firme e você não vai me fazer chorar.

Rimos. Depois daquela lembrança a sessão aconteceu sem maiores histórias, só o cotidiano da empresa, de casa e o quanto me cortava o coração ao ter que deixar Bethina em casa sozinha. Findada aquele momento eu fui para casa pensar na minha existência e tirar essa casca de Fernando que tanto me sufocava mas ainda era necessária. Necessária por que? Eu precisava dum rompante para assumir de vez minha real identidade.

Ao chegar em casa Bethina estava jogando. Pista de Interlagos, conhecia cada curva daquele local. Esperei ela ganhar a subida do café para dar boa noite e ver que não bateu meu recorde por meio segundo.

- Provavelmente está errando o laranjinha...

- Não, é o bico de pato.

- Ali joga a primeira e faz por dentro a primeira perna porque vai tracionar melhor a segunda...

- Vai tomar banho vai, recebi um freela inesperado e ganhei uma graninha legal, dá pra gente jantar fora, quem sabe pegar uma baladinha suave, sair um pouco desse apartamento... que acha?

- Eu gosto... vamos onde?

- Surpresa, agora vai, garota, vou dar mais uma volta aqui e vou me arrumar.

Com a certeza que meu tempo não seria batido hoje entrei no banho e deixei as energias ruins fluírem pelo meu corpo e escorrerem pelo ralo. Era aquela ducha vaporosa do The Sims que fazia os Sims saírem radiantes. Passei creme no rosto, no cabelo... chegava a dar dó eu ter que ser menininho pra sair. Na verdade era irritante mesmo. 

Saí do banheiro enrolada na toalha e Bethina estava na cozinha, saia e comprimento médio, uma blusa com mangas curtas, cabelo levemente armado, uma maquiagem linda e uma sandália baixa nos pés. Que mulher maravilhosa. Fui para o quarto onde uma blusinha de mangas três quartos e uma saia longa me aguardavam em cima da cama. "Boa tentativa" pensei já abrindo o guarda-roupas. Não haviam outras roupas.

- Amor... cadê minhas roupas?

- Veste o que deixei em cima da cama.

- Mas a gente não ia sair?

- A gente vai, quando terminar de se vestir vem aqui que vou te maquiar.

- Mas...

- Mas o quê, garota? - Eu ainda estava enrolada na toalha quando ela entrou no quarto - Olha, amor, eu super entendo na empresa você ainda ter que manter o Fernando, mas comigo, você não precisa disso, eu quero sair com você, mas a você real saca? Me apaixonei pelo Fernando e agora eu amo a Fernanda, você é maravilhosa, linda, não precisa se esconder em casa... você merece o mundo.

Ela me abraçou forte, choramos juntas por alguns minutos, em seguida, recobrando o papel de quem quer me forçar a sair da zona de conforto, ela mandou eu me apressar. O arrepio que senti ao vestir aquela blusa e depois a saia fpo diferente, foi algo completamente novo, talvez só comparável à primeira vez que me mostrei, lá pra terapeuta, anos atrás. Arrumei a saia na altura certa, o sutiã com bojo me fazia parecer mais feminina, um peito pequeno, mas convincente. Nos pés uma rasteirinha.

- Vai se foder - Assim que coloquei o pé fora do quarto Bethina me recebeu com aquele jeito dela - Como que eu fui arrumar uma namorada tão linda? Senta aqui, vou te maquiar pra gente sair - Abri a boca para repensarmos e ela cortou em cima - E nem pensar em arregar agora, temos uma reserva e duas entradas pra um pagode - Fiz careta - Brincadeira, é uma baladinha tecno suave... bem gostosinho, dá aqui a orelha - O brinco de argola quase tocava meu ombro - a outra... e voilá, a namorada mais linda do mundo está perfeita. Agora vamos.

Ao mesmo tempo que queria sair por quela porta quis voltar para dentro do quarto e me esconder debaixo das cobertas. Bethina não era terapeuta mas notou minha hesitação e me puxou pelo braço, não com força, mas com a gentileza de quem sabe que aquele passo era de extrema importância para meu crescimento e minha aceitação. 

Ao passar a soleira da porta eu quase congelei. No elevador eu, mentalmente, rezei para que não entrasse nenhum vizinho. No décimo andar o diminuto veículo parou. Entrou o síndico com a esposa. Bethina tomou sua mão na minha e, de repente, eu senti que poderia enfrentar o mundo inteiro, foi como um estalo. Ao descer no andar da garagem o representante de Tim Maia desejou boa noite e, em tom brincalhão, juízo às jovens. Passamos pelo hall de entrada dando um honesto boa noite ao porteiro, o mesmo que eu discutia futebol às vezes. 

Logo o carro do aplicativo chegou e eu sentei no meio. Senti os olhares do motorista, ao mesmo tempo que gostei de ser desejada como a mulher que sempre quis ser eu me senti um pouco invadida por aquele par de orbes que deviam estar na estrada. Quando estávamos perto do restaurante puxei Bethina para perto e dei um beijo nela, nada muito épico, apenas para deixar claro que eu não tinha o menor interesse em Rubens, o motorista.

O jantar delicioso, em um ambiente com luz baixa onde mal dava para ver as outras pessoas. Pude gastar todo o meu talento nas horas vendo técnicas de afinação vocal que vi na internet nos últimos anos. Até minha namorada percebeu que me joguei naquela situação e estava tentando aproveitar ao máximo. A casa noturna ficava dois quarteirões dali, em uma parte da cidade cheia de espaços de festa, bares, pessoas diferentes... imediatamente na nossa frente na fila tinha uma drag, maquiagem carregada, vestido curto. Quase quis dar umas dicas de como se arrumar, mas cada um cada um. Algumas horas depois estava exausta e pronta para um belo sono de beleza.

Bethina assentiu com a cabeça. O carro veio e notei que estávamos indo para outro lado.

- Para onde estamos indo?

- Ahhhh... ficou curiosa?

- Fiquei - A voz chegou a sair um pouco do tom - Sério, pra onde está me levando agora, dona Bethina?

- Segredo - Ela puxou da bolsa uma fita de pano - Coloca isso.

- Uma venda? Sério?

- Sério, anda logo, garota.

Com a destreza de alguém levemente alcoolizada eu cobri os olhos com a venda e, fazer isso, me aguçou os outros sentidos e a lembrança. Bethina não tinha chamado carro nenhum. Esse aqui tinha os bancos de couro. Quem dirigia era um par de olhos felinos que sorriu ao me ver. Agora fiquei bolada. Antes de eu poder fazer algo senti um ferro frio ao redor dos meus pulsos.

- Bethina - Meu tom de voz saiu como um trovão - o que está acontecendo aqui?

- Eu disse que ela não ia notar - a voz veio do banco da frente - A propósito, você é linda, Fernanda... agora, se puder ficar caladinha, eu agradeço, odiaria ter que pedir pra Bê colocar uma mordaça em você e estragar essa make divina, já estamos chegando.

Por essa eu não esperava. E o foda é que aquela voz não me era estranha. Já tinha ouvido ela em outros lugares mas não conseguia ligar o som à pessoa. Bem dizem que nervosismo afeta o raciocínio. Pensa Fernanda, pensa. Quem teria cacife de fazer isso? Conseguir reserva para aquele restaurante? Amaciar o corpo na balada? O único nome que me passava na cabeça era de Rafaela. Flávia talvez, mas essa hora ela devia estar curtindo a vida em algum lugar da Inglaterra. A voz da motorista deu boa noite à outra voz externa, passamos um quebra molas... não conseguia imaginar a surpresa que viria nos próximos minutos. Você me paga, Bethina.