Fernanda se calou tentando captar cada mínimo sinal do que estava ao seu redor. Apesar do álcool em seu sangue tentava lembrar qual tinha sido o caminho e, baseado nisso, poderia pensar o que havia no lado da cidade que estivesse. Da boate para a esquerda, reto alguns quarteirões e a venda. Depois disso uma para a direita e incontáveis quilômetros para frente com curvas esporádicas. Se o GPS interno dela estivesse funcionando bem estariam em um lado mais antigo da cidade.
Depois do quebra-molas e da conversa rápida da motorista com alguém externo o carro rodou não mais que um minuto. Tão logo o veículo parou Bethina foi logo abrindo a porta, o que trouxe uma lufada de ar gelado do lado exterior. Com as orelhas em pé tal qual uma criatura felina que ouve um ruído e busca mais sobre, Fernanda tentava ouvir alguma coisa. Só murmúrios, foi quando o outro lado do carro foi aberto e a aspirante à sequestradora tocou sutilmente o ombro da sequestranda.
- Vem cá, deixa eu tirar isso aqui... não sei porque a Bê quis por isso - Tão logo o pulso ficou livre Fernanda desceu ficando em pé - Segura em mim, espero que goste do que ela planejou.
- Ela planejou?
- Sim, ela não entrou em detalhes, mas disse que viu alguma coisa e resolveu te dar esse presente... como minha agenda tava vazia esse final de semana, topei na hora, tudo pra ver minha prima feliz.
- Prima?
- Ops - As duas caminhavam lentamente para dentro de uma estrutura - Eu não falei nada.
- O que as duas estão conversando hem? - Bethina tinha um tom duro, mas ao mesmo tempo doce. - Aposto que a linguaruda aí abriu o bico né.
- Eu não... sei que sua mão é pesada - As duas riram enquanto Fernanda tentava entender onde estava, o chão era duro e os sons da cidade eram mais baixos - leva ela? Vou pegar o equipamento.
- Claro! Já vou ligando as luzes também... - E assim Bethina segurou o braço da namorada e entraram na estrutura - O que está achando da noite, amor?
- Estou adorando esse mistério - Ela franziu o cenho - Quando chegarmos em casa vou gastar tudo que aprendi com minhas antigas Dommes.
- Vai nada, você é doce demais pra isso - O ambiente parecia vazio pelo eco das vozes - Sabe, amor... esses dias estava trabalhando e achei um meio que diário seu, curiosa que sou acabei lendo.
- É? - Fernanda tentava se lembrar do que tinha escrito, a verdade é que, quando foi parar a terapia anos atrás por falta de dinheiro, foi recomendado fazer um diário, nem que fosse uma vez por semana, pro caso de conseguir voltar às sessões poder falar tudo que aconteceu - E o que achou lá?
- Um dos seus desejos mais lindos... eu até imprimi - Da bolsa Bethina tirou uma folha de papel dobrado - "Semana dezenove: hoje depois de entregar alguns freelas que mal vão cobrir as contas do mês me peguei pensativo, onde eu quero chegar com tudo isso? Vesti a saia pra pensar melhor, talvez essa maluquice do BDSM seja só uma fuga pra algo maior, em uma situação onde sou obrigado a estar em uma posição que é a que eu quero estar na vida, não só durante uma sessão. Posso estar me precipitando, mas se hoje fosse a data final pra escolha eu escolheria ser menina, nem que fosse só pra modelar, me sinto melhor assim."
Foi impossível para Fernanda não lacrimejar debaixo da venda. Passou todo um filme na sua cabeça de tudo que passou até chegar aqui. Toda a curiosidade adolescente até descobrir um termo que lhe fez encontrar seu caminho depois de inúmeros desvios. Com ou sem permissão tirou a venda. "Foda-se a surpresa". As lágrimas a impediam de ver onde estava. Sem aviso abraçou Bethina.
- Se você não existisse eu tinha que te inventar, garota - Era nítida a emoção das duas naquele instante - Eu te amo, amo, amo e amo muito!
- E eu nem li a segunda parte - Bethina ainda tinha o papel à mão, levou alguns segundos para se recompor - "Semana vinte e um: Passei um dia inteiro de saia, cada vez que passava em frente do espelho ele me sorria, as fotos também... acho que nunca tirei tanta selfie linda. O foda é que eu não me sinto atraído por outros homens, mas que mulher vai querer uma criatura como eu? Tudo isso me deixa confuso. Cogitei comentar isso com minha antiga terapeuta, mas deixa pra quando voltar à normalidade das sessões..."
- E olha só - Fernanda limpava o rosto tentando não estragar a maquiagem - Encontrei uma mulher que quis a criatura que eu sou.
- Uma criatura linda! - Beijaram-se - Uma criatura maravilhosa que eu amo!
- Que coisa mais linda - A voz vinha da motorista carregando equipamento de fotografia e com a câmera na mão - Vocês são um casal lindo.
- Então, amor - Bethina se recompôs e saiu do abraço - Essa é minha prima, Bruna, ela é fotógrafa, adora fazer ensaios de minorias mas faz casamentos e velórios pra pagar as contas.
- Prazer - Fernanda ameaçou esticar a mão, mas Bruna já foi logo dando dois beijos, um em cada face do rosto - Eu já ouvi sua voz em algum lugar...
- Provavelmente, eu volte e meia estava na Lótus tirando umas fotos.
- Olha só! Sabia! Suas fotos são ótimas!
- Obrigada! Agora vamos posar, meninas?
E assim, uma noite que começou com inúmeras dúvidas e um glaciar completo na barriga de Fernanda, ganhava cores e calores de luzes profissionais instaladas no antigo prédio que era, também, o estúdio de Bruna. Ali achou todas as roupas que tinham sumido de seu guarda-roupas e muito mais. Seu coração quase saiu pela boca quando viu um vestido de noiva como sempre imaginou, inteiro feito de renda e com saia de tule por baixo... infelizmente ela era muito grande para a peça, porém Bethina foi para dentro da indumentária nupcial. Nesse meio tempo Fernanda estava dentro de um vestido preto com bolinhas pretas, saia de tule preto por baixo, uma perfeita pinup dos anos cinquenta, foi quando teve um estalo.
- Bê - Fernanda tomou a mão de Bethina na sua, apoiou o joelho direito no chão - Quer se casar comigo?
- Caralho - O coração de Bethina bateu uma vez em falso, quase sentiu o corpo desfalecer, o choro veio acompanhado do sorriso bobo de quem sempre sonhou com essa cena, talvez não dela dentro dum vestido de noiva e a namorada de pinup, mas, ainda assim era melhor do que ela jamais sonhou - Claro que eu aceito!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comenta aí ;)