sábado, 31 de agosto de 2019

CdF: Sublime

Faziam uns bons dois meses desde aquela semana fatídica, amanha era véspera de feriado que Rafaela, num ápice de bondade, havia decidido fazer prolongado - na realidade era para fazer algumas pequenas reformas internas necessárias depois do princípio de incêndio, colar o teto de gesso de volta e essas coisas que, com a empresa em pleno funcionamento, acontecem muito devagar, quase parando. Por isso teria quatro dias de completa folga, quer dizer, tinha de ir à terapia sexta começo da noite, talvez passasse a tarde no shopping, ver algum filme ou apenas acompanhar o movimento de seres humanos e, sem sombra de dúvidas, namorar vitrines.

Claro que o plano era ótimo demais para acontecer perfeito e, no dia que antecedia o feriado, na esquina de casa um celta prata me fechou e fui ao chão. Minha fiel companheira perdeu um de seus pedais e eu tive uma torção no pé direito, no calor do momento minha única reação foi xingar o motorista, recolher a bicicleta e caminhar até em casa, porém, depois do banho, com o corpo frio, meu tornozelo ficou do tamanho de um abacate maduro. Mas é como diz o samba: deus dá o frio conforme o cobertor. Por isso fiz uma bela compressa de gelo, pomadas e, com sorte, até amanhã estaria tudo bem.

Obviamente eu ter optado pela área de criação e não planejamento tinha um sentido: eu era ruim planejando quase qualquer coisa. Se ontem meu tornozelo era um abacate maduro hoje podia dizer que era uma melancia subdesenvolvida. Pisar era impossível e a ida matinal ao banheiro foi possível com muito esforço. É a vida né? Tomei um bom analgésico e, como era véspera de feriado, eu sabia que não teriam grandes tarefas na empresa, nada que eu não pudesse fazer de casa, aliás, esse era o sonho de Rafaela naquele delírio de uma sissy at home. A ideia excitava, mas não empolgava e... deixa pra lá. Puxei o celular mandando mensagem para o Borges. 

Ele entendeu, passou pouca coisa para eu fazer. Apesar do tom turrão na maior parte do tempo meu diretor direto era uma boa pessoa, bastante compreensível. Me reboquei até o computador e fiz tudo que ele mandou, no caminho aproveitei para colocar algumas roupas para bater, umas calças, camisetas, duas saias, um vestido e a camisola que havia ganho. Com os primeiros ares de frio eu dormiria de pijama mesmo por isso a camisola seria lavada e colocada em um pacote fechado a vácuo para manter livre de qualquer chance de bolor. Adorava o frio por não ser calor, mas aí a passar frio? Sem chance. Voltei ao computador e lá estavam algumas correções pontuais - literalmente, algumas pontuações eram necessárias - e quase senti saudade de trabalhar em casa, fazendo meus freelancers. Não, melhor não. Folga era bom, mas full time em casa? No way.

Quando terminei as correções dei pitaco em algumas artes que a Bethina havia me mandado, ela se propôs a vir me ajudar em casa, afinal, ela morava sozinha também. Decididamente estava com a singela impressão de que a talentosa designer estava dando em cima de mim. Ou era coisa da minha cabeça? Sempre fui péssimo em notar isso. Melhor estender a roupa para ocupar a cabeça com outra coisa. Pedi comida pelo delivery, sem saco nenhum pra cuidar de panelas.

E assim o dia que tinha tudo para ser proveitoso na empresa se tornou um tedioso dia em casa comendo lanche do podrão da esquina que dava desconto e assistindo programas de fofoca. Quase como uma auto punição por não estar trabalhando. No aplicativo de mensagens Bethina perguntava meu endereço. Decididamente ela já vinha arrastando asa por mim haviam algumas semanas, porém é como diz aquele meme "sem tempo, irmão". Não estava com o menor ânimo para engrenar em algum relacionamento, muito menos com colega de empresa. Aliás, provavelmente no regimento interno da empresa desestimulava esse tipo de conduta.

Se eu pudesse encontrar a pessoa que inventou os analgésicos eu daria um beijo na boca dele. Que invenção maravilhosa. O tornozelo seguia fodido, mas a dor era perfeitamente suportável a ponto de me fazer estender a roupa na área de serviço que via o sol da manhã e ficava fora do alcance da visão da sala. Quando rumava de volta para o sofá a campainha soou. Bom, não é porque eu estava desinteressado em um romance agora que eu precisava parecer um jeca tatu. Desamarrotei a camisa com a mão, arrumei a bermuda, passei a mão pelos cabelos, chequei o hálito... tudo dentro do prazo entre um "já vou" e um "bem vinda à minha caverna".

- Com licença - Ela pediu para entrar, seria ela uma vampira? - Nossa, seu tornozelo ta horrível!

- Tá? - Olhei pra ele, agora a melancia subdesenvolvida parecia estar pronta para madurar - Graças aos analgésicos nem sinto dor.

- Na boa, Fernando - Bethina trazia consigo uma sacola de compras que deixou sobre a mesa que ficava na divisa entre a sala e a cozinha - Você devia ir num hospital ver se não quebrou nenhum osso.

- Não precisa - Com dor mexi os dedos do pé - se tivesse quebrado eu não fazia isso...

- Mesmo assim, vai que é uma luxação? Um tio meu caiu do moto e ficou com o pé assim todo cagado, quando foi no dia seguinte parecia aquelas imagens que foram ampliar sem segurar o shift sabe?

Rir, era tudo que eu precisava nesse momento. De verdade. Talvez fosse uma boa ter ela por perto nesses dias. Dias? Eu pensei em dias? Não. Nessa noite, só até o jantar depois ela pode ir pra casa. Obviamente eu não falaria isso na cara dela, mas... ou será que isso era minha forma de fuga? A terapeuta dizia que era possível ser feliz sozinho, no entanto não era tão divertido. Por que caralhas eu estava pensando nisso justamente agora? Hora de dar uma de louco e mudar o rumo da conversa.

- Mas e o que trouxe na sacola?

- Janta... comprei uns capeletes, um molho pronto, queijo ralado...

- Que sofisticada ela... - a gente tinha por hábito se zoar, na brincadeira mesmo - Só falta um bom vinho hem

- Tcharaan - Ela tirou uma garrafa de vinho argentino, reconhecia o rótulo de longe - Não falta mais!

- Pensou em tudo hem... daqui a pouco tá roubando o lugar da Karen e do Lucas no planejamento.

- Ah não, adoro a criação, fazendo as artes me sinto tão...

- ... Viva? 

- Exato, bem isso! - Ela pegou os ingredientes - Agora me indica onde fica cada coisa na sua cozinha que eu vou fazer o jantar!

Não me opus, os analgésicos estavam perdendo o efeito e não queria forçar, por isso fui indicando tudo e Bethina foi se virando bem, achou tudo, serviu o vinho e só depois do brinde e do primeiro gole ela se ligou que eu estava tomando remédio e que poderia dar algum efeito. Ri da preocupação dela enquanto dizia que não ia dar nada e ajudaria até a dormir melhor.

- Você cozinha mó bem hem... devia entrar no masterchef.

- Masterchef tirar do pacote e aquecer? - Rimos - Mas vem cá... você não me disse que namorava nem nada.

- E não namoro uai - Fiz careta, completamente curioso - Faz anos que não namoro inclusive.

- É? - O semblante dela era confuso - É que vi umas roupas no varal e... 

Alerta vermelho, fodeu, fodeu, fodeu, fodeu, fodeu lindamente, todas as sirenes internas tocando no mais alto volume. Setor de criatividade, uma resposta agora. setor de controle de micro-expressões: faça seu trabalho. Setor de planos B: prepare algo. Setor de planos C, D, E vocês também façam planos. Todas as ordens dadas e por fora não demonstrava a menor expressão de terror.

- A máquina de lavar da vizinha quebrou e ela perguntou se podia lavar aqui - Setor de mitomania, parabéns, vai ganhar uma promoção - Só que isso foi antes de eu torcer o pé né - Setor de "mudando de assunto", parabéns pra você também. - Mas amanhã, mais tardar sábado ela vem buscar.

- Se quiser - A expressão dela dizia que a história colou - Eu posso levar até ela.

- Nem - Bebi um gole de vinho - Ela é toda enrolada com os pais que moram aqui perto que estranharia ela vir só semana que vem...

- Olha... ela tem um ótimo gosto pra roupas - Bethina jogou verde? Esse grão de café seria comido por uma civeta e defecado antes de madurar - Aquela camisola ali é linda e bem cara...

Momento de um paradoxo estranho na minha cabeça: Ao mesmo tempo que queria manter a história da vizinha atrapalhada que veio lavar roupa aqui, eu queria ver Bethina naquela camisola. Não fossem as várias sessões eu dificilmente conteria uma ereção aqui mesmo, na mesa pós jantar. Ah, que se foda, só se vive uma vez.

- Vê tá seca e experimenta - Bebi um gole de vinho, o escorpião do meu signo balançou o rabo - Ela não precisa saber.

- Será? - O vinho falava alto, ela sorriu lascivamente e levantou voltando com a peça nas mãos - Eu acho que ela é bem maior que eu... quer dizer, sua vizinha deve ser bem mais alta e ter um corpo mais largo - Ela me olhou - Meio tipo você.

- Então tu diz que não serve?

- Serve, vai ficar beeeem folgada, mas serve.

- Então experimenta ué.

- Será? - Ela hesitou um pouco mas mordiscou o lábio e foi até o banheiro, voltou depois de dois pares de minutos em que fiquei pensando se podia falar pra ela sobre o crossdressismo, sobre minha relação anterior com minha antiga mestra e tudo mais, essa semana a terapia prometia, a porta do banheiro abriu - O que achou?

Ela estava deslumbrante. A lingerie dela era de dois tons de lilás mais escuros que a camisola o que fazia transparecer a pele dela levemente arrepiada, o caimento não era perfeito, a parte da cintura realmente ficou muito folgada, o que foi atenuado pelo quadril largo de Bethina. Os seios, apesar de nunca transparecerem por baixo das roupas habituais dela, eram na medida. O cabelo afro com um volume mais baixo, uma maquiagem suave completaram o visual. Decididamente o vinho e seus mistérios. Fiquei sem palavras, logo eu, um redator, completamente sem palavras.

- Fala logo, Fernando - Ela corou rindo de nervosa - Tá me deixando sem graça assim.

- Você ficou linda! - Baixei o tom de voz deixando as palavras caírem dentro do restante de vinho da taça - Eu ia...

- Você achou? - O tom de voz dela ficou sensual de repente - Tem mais uma coisa na sacola do mercado...

Decididamente ela era felina. Caçadora nata. Não fosse minha torção ela teria feito outra estratégia. Os planos dela agora pareciam tão óbvios que eu passei a me sentir a pessoa mais burra do universo. Com um pouco de dificuldade peguei a sacola que ela havia deixado no canto da mesa. Um pacote de preservativos. Não pude deixar de sorrir de canto e aceitar a situação. Não que eu não achasse ela bonita, mas... sem "mas", quando eu saí daquele paraíso BDSM patrocinado pela Rafaela e sua trupe eu decidi que estaria mais aberto a todas as experiências que pudesse vir a ter. Minha terapeuta inclusive me estimulou a isso, a sempre ficar de radar ligado e não recusar as oportunidades da vida.

Foi assim, com o tornozelo agora com tamanho semelhante à uma laranja que a camisola foi ao chão junto com a lingerie de Bethina e minha roupa de ficar em casa. Tudo no caminho para a cama. Com dois corpos cheios de carboidratos, álcool e desejo o ato se consumou. Sem peso, sem neuras, sem dogmas, sem pressão alguma.  O corpo. O cheiro. O beijo quente. O suor. O movimento. O êxtase. O ápice compartilhado. Posso dizer sem medo de estar exagerando que foi a transa mais perfeita que tive em anos. Quase me veio, antes de dormirmos com o fino edredom sobre os corpos suados duma noite quente de final de verão, a palavra sublime.

Dormimos ao som da cidade que se movia dezenas de metros abaixo. Dormimos de forma sublime.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

CdF - Reatar

A semana já tinha começado estranha, em plena segunda-feira de manhã os alarmes de incêndio soaram em todo o prédio. Um princípio de fogo se fez em um dos servidores lá do setor de T.I., provavelmente um inseto havia entrado nos fans que mantinham a temperatura controlada e causaram um superaquecimento que, em uma máquina de alto desempenho, foi a fagulha que causou o fogo. Quem diria que a origem do termo bug voltaria tão a tona assim. Credo.

Na terça um pedaço do forro do andar logo abaixo de onde o projeto de incêndio ficou caiu, por sorte não caiu na cabeça de ninguém. Na quarta o Borges apareceu de pé quebrado, havia caído na entrada da empresa horas antes, isso explica o atraso. Eu havia tomado algumas fechadas no trânsito, mas nada que eu pudesse reclamar, Bethina estava com intoxicação alimentar de atestado. A quinta tudo nublou, choveu horrores, alagou as ruas próximas da empresa, mas não chegou a alagar dentro da empresa, nesse dia eu já tinha noção e deixei minha fiel companheira de trajeto no estacionamento mais alto. De quem foi a ideia de asfaltar tudo impedindo o escoamento de água?

Logo ao chegar na sexta já vi a linda BMW de Rafaela sem uma das lanternas traseiras, o para-choque completamente amassado, a caixa de roda torta... alguém tinha enfrentado um carro maior e levado uma bela surra. Perdi um bom par de minutos avaliando os estragos quando Freya passou por mim.

- Você é o cara do seguro? - Ela parecia nervosa - Porque se não for sai daí, preciso levar o carro na oficina.

Nem cogitei responder. Eu sabia quem estaria dirigindo no momento. Na operação disseram que uma caminhonete grande furou um sinal fechado e bateu na traseira empreendendo fuga logo em seguida. A recepcionista - que chegou na operação pra pregar - dizia que foi deus que impediu que algo pior acontecesse. Duvido muito, carro desse porte tem tanto airbag que mesmo a maior das pancadas teria sua intensidade reduzida pela tecnologia embarcada. Se alguém foi responsável por nada mais grave ali foram os engenheiros alemães da Bayerische Motoren Werke.

Como as sextas já eram com tudo reduzido o assunto do acidente gerou inúmeras teorias, gente dizendo que tinha que benzer a empresa, gente acendendo incenso... até a galera do T.I. sempre metida em tecnologia tinha suas teorias de origem sobrenatural. Eu, como escritor que era, adorava debater as mais doidas e ajudar a tecer outras. Fiquei pensando na terapia essa semana. Seria doido. No meio de tudo isso Rafaela me mandou uma mensagem.

"Com a Freya fora hoje, quero que me ajude com algumas coisas aqui em cima."

Ah pronto, agora sim fodeu de vez. Respondi que já estava a caminho. Parada rápida para atender a um chamado da natureza e nem cinco minutos depois da mensagem eu já estava na porta da sala de Rafaela. Bati duas vezes pedindo licença e entrando.

- Demorou tanto que devia começar a te punir com chicotadas, cada minuto de atraso dez chicotadas.

- Não era má ideia - Ri achando que era ironia, mas o semblante dela estava tenso - Enfim, me chamaste e cá estou eu.

- Fernando - Ela rodou na cadeira se levantando e vindo na minha direção, aquela saia preta que parecia cetim junto com uma camisa branca de material mais fosco junto com a sandália de tiras finas e salto não muito alto diziam que alguém não teve muito tempo para se arrumar, mesmo assim estava linda - Tua sorte é que não posso arrancar teu couro aqui na empresa, se não eu ia te usar pra desestressar... - Ela se apoiou na mesa - Mas eu te chamei aqui pra saber a quantas anda os descritivos dos novos produtos pro site? Pretende terminar nesse século ou como tá muito em cima vai deixar pro próximo?

- Bem... - Juro que pensei em responder que deixaria pro próximo, afinal, faltavam só oitenta anos e que eu não gostava de prazos tão apertados. Devia ser aquela coisa de submisso que não se submete sem bons argumentos para tal, acho que o termo era brat ou algo assim - O Borges ficou de passar o briefing, porém até agora nada... no entanto eu peguei os materiais e comecei a ver por conta, pra ver se consigo adiantar alguma coisa e...

- Puta merda - a voz dela se alterou, oscilou da Rafaela-Empresária pra Rafaela-Domme, agora a coisa ia ficar feia - Eu tô cercada de incompetentes... a vontade é mandar todo mundo embora e contratar gente que saiba trabalhar direitinho, sem reclamar tanto, sem ficar pelos cantos - A crítica era exagerada, haviam poucas maçãs podres no cesto e tanto Borges quanto outros funcionários davam como certas as demissões deles nos próximos dias - Chamar uns chineses que trabalham quietos... também... - Ela pareceu perder o fôlego, se apoiou na mesa - Quer saber... sai daqui você.

- Como quiser - Se havia algo que eu aprendi nesses anos todos nessa indústria vital é que nunca se deve contrariar uma mulher, sobretudo uma mulher que deve estar na TPM, teve seu carro batido e era uma Domme poderosa - Senhora.

Antes que Rafaela pudesse falar qualquer coisa eu saí da sala. Foi uma provocação de leve, nada sério, era só uma que ela me chamaria de moleque e desceria vinte chibatadas. Credo. Quase senti falta da mão leve dela. Freya sim tinha uma mão bem pesada, se bem que no reveillon ela devia estar enfraquecida pelo álcool e a projeto de senhora estava ansiosa em tirar uma boa nota.

Segui pelo pequeno corredor olhando a mesa de Freya de soslaio enquanto pensava em um milhão de coisas e tentava lembrar alguma música para tentar fazer alguma descrição de produto meio genérica, quem sabe Borges, assim que voltasse, pudesse aproveitar algo. Chamei o elevador estalando o pescoço, direita, esquerda. As portas do meio de transporte se abriram revelando Vali. Meu coração parou um instante. Quase senti uma vertigem. Ele não havia mudado quase nada, o cabelo parecia cortado, mas agora estava com uma camisa de botões, calça social, sapatênis... era o cosplay perfeito do pessoal daqui.

- V-vali... - senti meu rosto corar - ... tudo bem?

- Olá, Fernando - Ele saiu do elevador que foi embora para outro andar - Estou bem, e você, como está?

- Tô bem até - Não que não nos falassemos desde o ano novo, mas era apenas por mensagem, nada de voz ou de encontro físico, embora eu quisesse eu nunca propús, ele podia estar chateado e eu queria dar tempo ao tempo. - Eu...

Ele não esperou nada, me abraçou. Correspondi o abraço por reflexo, eu não esperava tal ação dele. Era aquela famosa quest proposta pelo mestre do RPG completamente impossível e, ao rolar o D20, ele tirou 21. Fiquei sem reação. Fechei os olhos.

- Está tudo bem.

- Não, não está... vem cá - Não tinha devolvido a chave do terraço, na verdade tinha tirado uma cópia, adorava fazer a digestão ali em cima. - Precisamos conversar.

- Mas a senhora está...

- Ela tá puta da cara, se você falar um "A" ela vai te espancar ali mesmo, mais a mais ninguém vai conseguir trabalhar direito essa semana, puta semana zicada.

Assim subimos para o terraço. Algumas nuvens escuras se desenhavam no horizonte, talvez chovesse depois, mas agora o sol tinha secado completamente aqui em cima, era tudo que eu precisava, alguns minutos com Vali para explicar tudo. Tudo que me afligia, tudo que precisava por para fora de alguma forma.

- Nunca tinha vindo aqui em cima...

- Eu descobri esses dias, vim meditar.

- Meditar? - ele me olhou cético - Você? Essa terapia tem feito efeito hem.

- Você nem imagina o quanto... - Fiz ele sentar, sentei ao lado dele enquanto o celular vibrava por mensagem e Vali me mostrava, era Rafaela perguntando onde ele estava, tomei o celular dele e respondi "Muito trânsito, senhora." - ... pronto, isso vai nos dar um tempo.

- Decididamente você é uma grande interrogação - ele não gostou muito da minha atitude, mas entendeu que era necessária - O que queria me falar?

E assim, uma sexta-feira que provavelmente choveria tanto quanto na quinta alagando e trazendo o caos para a grande Metrópole ganhou ares doces. Expliquei todas as neuras, todas as etapas, tudo, absolutamente tudo sobre meu começo, sobre como me descobri, cada perrengue que passei até chegar naquele momento. Claro que houveram algumas pausas, alguns questionamentos, mas falei com Vali tudo que queria ter dito aquela noite de ano novo e não consegui por qualquer amarra mental que tivesse me travado. Ao terminar ele sorriu e me deu um beijo na testa. Foi inevitável conter o choro.

A forma como ele foi compreensível me fez querer sair dali com ele pra qualquer lugar que fosse. A cobertura, meu apartamento, aqui no terraço, no sofá lá da recepção. Se fosse um filme essa era a hora que a mocinha beija o mocinho em slow motion, aparece escrito "fim" em francês, a imagem dá um fade-out e escurece a tela enquanto sobem os créditos em ordem de aparição. Obviamente nem tudo era como eu queria ou desenhava em minha cabeça de escritor. Possivelmente muitas horas se passaram, porque tanto as nuvens quanto o sol mudaram de lugar.

- Então aí estão as duas comadres - A voz era de Rafaela, agora a justa-causa vem - Pode-se saber o que as duas tricoteiras fazem aqui em cima?

- Senhora eu...

- Eu precisava falar com ele - Me antecipei a Vali, estava decidido - Resolver tudo que ficou pendente.

- Deixa eu ver se entendi... - ela foi se aproximando, Vali estava pálido, eu conhecia o joguinho, segurei a mão dele - Meus dois funcionários ficaram duas horas de papo em horário de serviço?

- Exatamente - De repente não tinha mais nenhum receio do que pudesse vir - Precisava disso.

- Tudo bem, mas vou descontar do seu salário - Concordei dando de ombros, algo como "faz o que quiser, Rafaela" - Agora Vali vem comigo e você tem coisa pra fazer, chicoteei o Borges e ele vai mandar uma prévia de briefing.

Assenti com a cabeça e logo as nuvens que estavam vindo tomaram outro rumo e o dia ficou com um céu azul durante todo resto do dia só dando lugar ao véu trazido por Nyx. A chuva que veio foi ao começo da madrugada, muitas horas depois de todos estarem em casa e, ainda assim, foi só o suficiente para assentar a poeira e limpar o ar e tornar a minha respiração ainda mais aliviada. Havia tirado uma geladeira das costas e me sentia ainda mais pronto para o que fosse vir. Era meu turno, minha vez de rolar o D20... que surpresas ele me traria?

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

CdF - Céu

Três semanas haviam se passado desde a volta às atividades regulares da empresa e minha ideia de largar a terapia quase havia sido posta em prática. Mas, depois do ocorrido no ano novo e do clima que senti vindo de Rafaela eu precisava de alguém pra conversar sobre isso e, convenhamos, o CVV não é a melhor opção, pelo menos não pra mim.

Claro, não vivia na duplicidade empresa-casa, casa-empresa. Eu tinha uma vida social relativamente ativa, às vezes visitava alguns amigos, às vezes curtia sair sem rumo buscando novos lugares, novos sabores, quem sabe um sebo, um brechó... tudo é possível nessa grande Metrópole e isso me fascinava a cada dia. Claro que não deixava transparecer, afinal, não queria parecer o típico caipira deslumbrado com a cidade grande. Em meio a tudo isso eu ia adaptando meu estilo de vida com o ambiente.

- Fernando - Era Beth, minha "dupla de criação" na empresa - Você dá umas desligadas às vezes... eu hein.

- Eu sei - Sorri de canto, minhas viagens astrais eram pra buscar uma inspiração noutra dimensão, quem sabe perguntar ao lado feminino como devia expressar aquele conceito da campanha, claro que não podia falar isso com ninguém, afinal, era o meu íntimo particular - Qual o B.O.? Entregamos o conceito pro Borges que, pela cara, só vai ver lá pelo meio da tarde e vai pedir a troca do sujeito com o verbo e do tom de azul pra algo mais - Gesticulei tentando emular a forma como ele falaria - calmo sem ser monótono sabe?

- Você não existe - Beth riu, ri também, ela era uma boa pessoa, depois de uma semana trabalhando com ela que descobri o nome daquela mulher negra, pouco mais de um metro e sessenta, cabelo crespo com baixo volume e óculos de armação cara: Bethina, assim, com TH, mania do povo de "tunar" nomes - Vai almoçar que horas?

- Yo no voy, hoy estoy malo.

- Que pasa? - Gostávamos de falar em espanhol às vezes, ela tinha o sonho de conhecer Buenos Aires, pertinho, umas quarenta horas de carro, se muito - Que te aflige?

- Ontem comi uma coxinha que desceu de lado...

- ... Na padoca ali da esquina?

- É! O cheiro tava ótimo, pedi pra viagem... cheguei em casa e nhact.

- Vish - Ela me olhou séria - Você quer remédio?

- Já tomei...

- Fez efeito?

- Fez, mas vou relaxar a flora hoje sem almoçar... vou só tomar um isotônico.

- Quer que eu compre pra você?

- Na-na-ni-na-não - Puxei da minha mochila - Eu trouxe o meu... vou lá no terraço curtir a vista.

- É aberto?

- Se não for a gente abre.

- Hacker de portão?

- De tudo, a gente tem que se virar nessa vida.

Rimos de novo enquanto ela pegava a bolsa já hibernando o computador. Ela se despediu e saiu. Eu havia ensinado Beth a sair dez minutos antes da operação para pegar mais batata frita, ela aprendeu bem. Com certa dificuldade levantei, passei pelo banheiro e perguntei pra moça da recepção se era possível subir no terraço, ela, muito solícita, me passou a chave fazendo a piadinha número um dos cidadãos de bem "só não vai se jogar hem, senão vai direto pro inferno", ela riu, eu fingi rir.

A mente de um suicida pensa em um milhão de coisas antes de realizar o ato, pensa nos pais, irmãos, amores, história, senha das redes sociais, senha do celular, do computador, do banco, no cachorro, gato, periquito, vizinho, porteiro, padeiro da esquina, cores do botão do elevador, textura do chão, cheiro de grama molhada. Mas não se vai pro inferno cristão. Na real qualquer lugar que não aqui, na cabeça de um suicida, é melhor que esse inferno na terra. O elevador parou no oitavo andar. A sala da chefia ficava aqui. A primeira porta à esquerda era uma escadaria mal iluminada com muita poeira que culminava na porta do terraço.

Ao abrir fui saudado por uma brisa fria incomum pra essa época do ano. Será o vento sul que ouvi mais cedo no jornal? Deve ser. O chão de pedriscos tinha alguns vasos de plantas maltratados que eu adoraria cuidar, meia dúzia de painéis solares e uma vista para o bairro de classe média-alta da Metrópole. Caminhei até a beirada do parapeito, não queria me jogar, não hoje. Estiquei o pescoço. Alto.
Havia um pedaço de lage sem nada, varrido constantemente pela chuva e vento o lugar estava limpo. Tirei o celular do bolso programando pra despertar em quarenta e cinco minutos. Sentei em posição de lótus.

A doutora havia me dito que a gente podia fazer umas pausas nas sessões desde que eu me comprometesse a meditar. Sentar uma meia hora por dia pra não pensar em absolutamente nada. Nadica de nada. Porra nenhuma. Parece fácil. Mas desligar o cérebro é algo difícil. Por sorte meu foco estava em não me borrar, então o controle do esfíncter me fazia diminuir os pensamentos sombrios que rondavam. Passado um tempo eu não sentia o meu corpo, era como se eu estivesse flutuando, os cheiros se tornaram mais intensos, a vibração do prédio agora era sentida e o som de dois pés pelas pedrinhas, passo rápido, como se buscasse algo, me fez perder a concentração.

- Nossa - Sorri de canto quando ouvi uma voz conhecida - ... Tudo bem aí?

- Tudo sim, Rafaela - Aspirei pelo nariz e soltei pela boca - Tirando um probleminha intestinal, estamos ae.

- Por um instante - Ela se aproximou, parou em pé ao meu lado, o cheiro de perfume era doce sem ser enjoativo - Eu achei que íamos ter que te juntar lá de baixo.

- Eu ainda não sou confiável? - Abri os olhos recolhendo o celular e colocando no bolso da calça - Se cair daqui de cima tem que ser de cabeça, qualquer outra modalidade de queda ia deixar com sequela.

- Credo - Ela caminhou até a beirada, a principio a segui apenas com o olhar, depois achei justo seguir com o corpo também - Mas e como está a terapia?

- Pedi uma semana de folga - Parei ao lado dela - A doutora aceitou, me recomendou meditação... como hoje não estou muito bem pra almoçar, resolvi fazer aqui em cima - O olhar de Rafaela ficou distante um segundo - Mas... como soube que eu estava aqui em cima?

- Freya disse que te viu sair do elevador... ligou lá pra baixo, a recepcionista disse que você tinha pedido a chave pra orar aqui em cima - ela riu um instante - quando te vi sentado, em posição de lótus, fiquei admirando a cena.

- Eu acho que te devo desculpas - Arrumei uma mecha do cabelo crescido atrás da orelha - Não é mesmo?

- Pelo que?

- Pelo ano novo.

- Desencana, Fernando - Ela me olhou com o canto do olhar, não retribuí - Nem todo mundo nasceu pra viver no nosso mundo.

- Eu sei... mas eu... - Respirei fundo, puxei de dentro de mim uma força que não sabia que tinha - ...decepcionei o Vali.

- Bom, isso é - O olhar dela voltou ao horizonte - Ele fica tanto tempo em casa e sente falta de alguém pra conversar sabe? Eu e a Freya falamos muito da empresa, dos negócios, dos rumos do país... e o Vali fica outsider em quase todas as conversas, ele diz não ligar e diz que se sente feliz em me servir e deixar a casa em ordem... - Ela suspirou - mas sei que ele precisa conversar com alguém que ele goste, alguém que ele possa falar de tudo, não só que é o meu secretário que trabalha em casa.

- E o que sugere? - Minha vez de olhar de soslaio para ela - Que eu visite vocês volte e meia?

- Não sei, Fernando - Ela se virou, nos encaramos pela primeira vez em muitos minutos de conversa - Você quer isso? Quero dizer, sabe quais são as regras da casa né?

- Sei, você não quer o "Fernando" e sim a "Fernanda".

- Exatamente.

- E se eu te falar que somos a mesma pessoa? Em tudo... se eu te falar que eu, Fernando, gosto de usar vestidos, gosto de botar uma saia florida e assistir corrida de caminhões na TV, gosto do toque daquela camisola pra dormir nesses dias quentes, nem me excita mais, virou algo aceitável na minha mente eu gostar de me sentir feminina às vezes... o que acharia?

- Vou achar que a terapia tem feito milagres - Ela desencostou do parapeito com um sorriso fino nos lábios - Pelo visto a borboleta saiu do casulo e resolveu aprender a voar, bom saber.

Dito isso Rafaela caminhou com um pouco de dificuldades pelas pedrinhas descendo as escadas e voltando para dentro do prédio. Ela não era normal. Confesso que estava gostando da ideia de poder tocar o coração dela, tocar além daquela casca de executiva e de dominadora, a simples ideia de poder vê-la sorrir ao ver outra pessoa - no caso eu - saindo do seu casulo de depressão me fazia a inspiração subir pela coluna causando imensos arrepios e torrentes cerebrais que, quando eu chegasse em casa, virariam mais um capítulo daqueles escritos a tanto engavetados que, com sorte, um dia veriam a luz da ribalta. Ou, mantendo a metáfora do dia, voariam pelos céus.