sexta-feira, 2 de agosto de 2019

CdF - Céu

Três semanas haviam se passado desde a volta às atividades regulares da empresa e minha ideia de largar a terapia quase havia sido posta em prática. Mas, depois do ocorrido no ano novo e do clima que senti vindo de Rafaela eu precisava de alguém pra conversar sobre isso e, convenhamos, o CVV não é a melhor opção, pelo menos não pra mim.

Claro, não vivia na duplicidade empresa-casa, casa-empresa. Eu tinha uma vida social relativamente ativa, às vezes visitava alguns amigos, às vezes curtia sair sem rumo buscando novos lugares, novos sabores, quem sabe um sebo, um brechó... tudo é possível nessa grande Metrópole e isso me fascinava a cada dia. Claro que não deixava transparecer, afinal, não queria parecer o típico caipira deslumbrado com a cidade grande. Em meio a tudo isso eu ia adaptando meu estilo de vida com o ambiente.

- Fernando - Era Beth, minha "dupla de criação" na empresa - Você dá umas desligadas às vezes... eu hein.

- Eu sei - Sorri de canto, minhas viagens astrais eram pra buscar uma inspiração noutra dimensão, quem sabe perguntar ao lado feminino como devia expressar aquele conceito da campanha, claro que não podia falar isso com ninguém, afinal, era o meu íntimo particular - Qual o B.O.? Entregamos o conceito pro Borges que, pela cara, só vai ver lá pelo meio da tarde e vai pedir a troca do sujeito com o verbo e do tom de azul pra algo mais - Gesticulei tentando emular a forma como ele falaria - calmo sem ser monótono sabe?

- Você não existe - Beth riu, ri também, ela era uma boa pessoa, depois de uma semana trabalhando com ela que descobri o nome daquela mulher negra, pouco mais de um metro e sessenta, cabelo crespo com baixo volume e óculos de armação cara: Bethina, assim, com TH, mania do povo de "tunar" nomes - Vai almoçar que horas?

- Yo no voy, hoy estoy malo.

- Que pasa? - Gostávamos de falar em espanhol às vezes, ela tinha o sonho de conhecer Buenos Aires, pertinho, umas quarenta horas de carro, se muito - Que te aflige?

- Ontem comi uma coxinha que desceu de lado...

- ... Na padoca ali da esquina?

- É! O cheiro tava ótimo, pedi pra viagem... cheguei em casa e nhact.

- Vish - Ela me olhou séria - Você quer remédio?

- Já tomei...

- Fez efeito?

- Fez, mas vou relaxar a flora hoje sem almoçar... vou só tomar um isotônico.

- Quer que eu compre pra você?

- Na-na-ni-na-não - Puxei da minha mochila - Eu trouxe o meu... vou lá no terraço curtir a vista.

- É aberto?

- Se não for a gente abre.

- Hacker de portão?

- De tudo, a gente tem que se virar nessa vida.

Rimos de novo enquanto ela pegava a bolsa já hibernando o computador. Ela se despediu e saiu. Eu havia ensinado Beth a sair dez minutos antes da operação para pegar mais batata frita, ela aprendeu bem. Com certa dificuldade levantei, passei pelo banheiro e perguntei pra moça da recepção se era possível subir no terraço, ela, muito solícita, me passou a chave fazendo a piadinha número um dos cidadãos de bem "só não vai se jogar hem, senão vai direto pro inferno", ela riu, eu fingi rir.

A mente de um suicida pensa em um milhão de coisas antes de realizar o ato, pensa nos pais, irmãos, amores, história, senha das redes sociais, senha do celular, do computador, do banco, no cachorro, gato, periquito, vizinho, porteiro, padeiro da esquina, cores do botão do elevador, textura do chão, cheiro de grama molhada. Mas não se vai pro inferno cristão. Na real qualquer lugar que não aqui, na cabeça de um suicida, é melhor que esse inferno na terra. O elevador parou no oitavo andar. A sala da chefia ficava aqui. A primeira porta à esquerda era uma escadaria mal iluminada com muita poeira que culminava na porta do terraço.

Ao abrir fui saudado por uma brisa fria incomum pra essa época do ano. Será o vento sul que ouvi mais cedo no jornal? Deve ser. O chão de pedriscos tinha alguns vasos de plantas maltratados que eu adoraria cuidar, meia dúzia de painéis solares e uma vista para o bairro de classe média-alta da Metrópole. Caminhei até a beirada do parapeito, não queria me jogar, não hoje. Estiquei o pescoço. Alto.
Havia um pedaço de lage sem nada, varrido constantemente pela chuva e vento o lugar estava limpo. Tirei o celular do bolso programando pra despertar em quarenta e cinco minutos. Sentei em posição de lótus.

A doutora havia me dito que a gente podia fazer umas pausas nas sessões desde que eu me comprometesse a meditar. Sentar uma meia hora por dia pra não pensar em absolutamente nada. Nadica de nada. Porra nenhuma. Parece fácil. Mas desligar o cérebro é algo difícil. Por sorte meu foco estava em não me borrar, então o controle do esfíncter me fazia diminuir os pensamentos sombrios que rondavam. Passado um tempo eu não sentia o meu corpo, era como se eu estivesse flutuando, os cheiros se tornaram mais intensos, a vibração do prédio agora era sentida e o som de dois pés pelas pedrinhas, passo rápido, como se buscasse algo, me fez perder a concentração.

- Nossa - Sorri de canto quando ouvi uma voz conhecida - ... Tudo bem aí?

- Tudo sim, Rafaela - Aspirei pelo nariz e soltei pela boca - Tirando um probleminha intestinal, estamos ae.

- Por um instante - Ela se aproximou, parou em pé ao meu lado, o cheiro de perfume era doce sem ser enjoativo - Eu achei que íamos ter que te juntar lá de baixo.

- Eu ainda não sou confiável? - Abri os olhos recolhendo o celular e colocando no bolso da calça - Se cair daqui de cima tem que ser de cabeça, qualquer outra modalidade de queda ia deixar com sequela.

- Credo - Ela caminhou até a beirada, a principio a segui apenas com o olhar, depois achei justo seguir com o corpo também - Mas e como está a terapia?

- Pedi uma semana de folga - Parei ao lado dela - A doutora aceitou, me recomendou meditação... como hoje não estou muito bem pra almoçar, resolvi fazer aqui em cima - O olhar de Rafaela ficou distante um segundo - Mas... como soube que eu estava aqui em cima?

- Freya disse que te viu sair do elevador... ligou lá pra baixo, a recepcionista disse que você tinha pedido a chave pra orar aqui em cima - ela riu um instante - quando te vi sentado, em posição de lótus, fiquei admirando a cena.

- Eu acho que te devo desculpas - Arrumei uma mecha do cabelo crescido atrás da orelha - Não é mesmo?

- Pelo que?

- Pelo ano novo.

- Desencana, Fernando - Ela me olhou com o canto do olhar, não retribuí - Nem todo mundo nasceu pra viver no nosso mundo.

- Eu sei... mas eu... - Respirei fundo, puxei de dentro de mim uma força que não sabia que tinha - ...decepcionei o Vali.

- Bom, isso é - O olhar dela voltou ao horizonte - Ele fica tanto tempo em casa e sente falta de alguém pra conversar sabe? Eu e a Freya falamos muito da empresa, dos negócios, dos rumos do país... e o Vali fica outsider em quase todas as conversas, ele diz não ligar e diz que se sente feliz em me servir e deixar a casa em ordem... - Ela suspirou - mas sei que ele precisa conversar com alguém que ele goste, alguém que ele possa falar de tudo, não só que é o meu secretário que trabalha em casa.

- E o que sugere? - Minha vez de olhar de soslaio para ela - Que eu visite vocês volte e meia?

- Não sei, Fernando - Ela se virou, nos encaramos pela primeira vez em muitos minutos de conversa - Você quer isso? Quero dizer, sabe quais são as regras da casa né?

- Sei, você não quer o "Fernando" e sim a "Fernanda".

- Exatamente.

- E se eu te falar que somos a mesma pessoa? Em tudo... se eu te falar que eu, Fernando, gosto de usar vestidos, gosto de botar uma saia florida e assistir corrida de caminhões na TV, gosto do toque daquela camisola pra dormir nesses dias quentes, nem me excita mais, virou algo aceitável na minha mente eu gostar de me sentir feminina às vezes... o que acharia?

- Vou achar que a terapia tem feito milagres - Ela desencostou do parapeito com um sorriso fino nos lábios - Pelo visto a borboleta saiu do casulo e resolveu aprender a voar, bom saber.

Dito isso Rafaela caminhou com um pouco de dificuldades pelas pedrinhas descendo as escadas e voltando para dentro do prédio. Ela não era normal. Confesso que estava gostando da ideia de poder tocar o coração dela, tocar além daquela casca de executiva e de dominadora, a simples ideia de poder vê-la sorrir ao ver outra pessoa - no caso eu - saindo do seu casulo de depressão me fazia a inspiração subir pela coluna causando imensos arrepios e torrentes cerebrais que, quando eu chegasse em casa, virariam mais um capítulo daqueles escritos a tanto engavetados que, com sorte, um dia veriam a luz da ribalta. Ou, mantendo a metáfora do dia, voariam pelos céus.

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