A semana já tinha começado estranha, em plena segunda-feira de manhã os alarmes de incêndio soaram em todo o prédio. Um princípio de fogo se fez em um dos servidores lá do setor de T.I., provavelmente um inseto havia entrado nos fans que mantinham a temperatura controlada e causaram um superaquecimento que, em uma máquina de alto desempenho, foi a fagulha que causou o fogo. Quem diria que a origem do termo bug voltaria tão a tona assim. Credo.
Na terça um pedaço do forro do andar logo abaixo de onde o projeto de incêndio ficou caiu, por sorte não caiu na cabeça de ninguém. Na quarta o Borges apareceu de pé quebrado, havia caído na entrada da empresa horas antes, isso explica o atraso. Eu havia tomado algumas fechadas no trânsito, mas nada que eu pudesse reclamar, Bethina estava com intoxicação alimentar de atestado. A quinta tudo nublou, choveu horrores, alagou as ruas próximas da empresa, mas não chegou a alagar dentro da empresa, nesse dia eu já tinha noção e deixei minha fiel companheira de trajeto no estacionamento mais alto. De quem foi a ideia de asfaltar tudo impedindo o escoamento de água?
Logo ao chegar na sexta já vi a linda BMW de Rafaela sem uma das lanternas traseiras, o para-choque completamente amassado, a caixa de roda torta... alguém tinha enfrentado um carro maior e levado uma bela surra. Perdi um bom par de minutos avaliando os estragos quando Freya passou por mim.
- Você é o cara do seguro? - Ela parecia nervosa - Porque se não for sai daí, preciso levar o carro na oficina.
Nem cogitei responder. Eu sabia quem estaria dirigindo no momento. Na operação disseram que uma caminhonete grande furou um sinal fechado e bateu na traseira empreendendo fuga logo em seguida. A recepcionista - que chegou na operação pra pregar - dizia que foi deus que impediu que algo pior acontecesse. Duvido muito, carro desse porte tem tanto airbag que mesmo a maior das pancadas teria sua intensidade reduzida pela tecnologia embarcada. Se alguém foi responsável por nada mais grave ali foram os engenheiros alemães da Bayerische Motoren Werke.
Como as sextas já eram com tudo reduzido o assunto do acidente gerou inúmeras teorias, gente dizendo que tinha que benzer a empresa, gente acendendo incenso... até a galera do T.I. sempre metida em tecnologia tinha suas teorias de origem sobrenatural. Eu, como escritor que era, adorava debater as mais doidas e ajudar a tecer outras. Fiquei pensando na terapia essa semana. Seria doido. No meio de tudo isso Rafaela me mandou uma mensagem.
"Com a Freya fora hoje, quero que me ajude com algumas coisas aqui em cima."
Ah pronto, agora sim fodeu de vez. Respondi que já estava a caminho. Parada rápida para atender a um chamado da natureza e nem cinco minutos depois da mensagem eu já estava na porta da sala de Rafaela. Bati duas vezes pedindo licença e entrando.
- Demorou tanto que devia começar a te punir com chicotadas, cada minuto de atraso dez chicotadas.
- Não era má ideia - Ri achando que era ironia, mas o semblante dela estava tenso - Enfim, me chamaste e cá estou eu.
- Fernando - Ela rodou na cadeira se levantando e vindo na minha direção, aquela saia preta que parecia cetim junto com uma camisa branca de material mais fosco junto com a sandália de tiras finas e salto não muito alto diziam que alguém não teve muito tempo para se arrumar, mesmo assim estava linda - Tua sorte é que não posso arrancar teu couro aqui na empresa, se não eu ia te usar pra desestressar... - Ela se apoiou na mesa - Mas eu te chamei aqui pra saber a quantas anda os descritivos dos novos produtos pro site? Pretende terminar nesse século ou como tá muito em cima vai deixar pro próximo?
- Bem... - Juro que pensei em responder que deixaria pro próximo, afinal, faltavam só oitenta anos e que eu não gostava de prazos tão apertados. Devia ser aquela coisa de submisso que não se submete sem bons argumentos para tal, acho que o termo era brat ou algo assim - O Borges ficou de passar o briefing, porém até agora nada... no entanto eu peguei os materiais e comecei a ver por conta, pra ver se consigo adiantar alguma coisa e...
- Puta merda - a voz dela se alterou, oscilou da Rafaela-Empresária pra Rafaela-Domme, agora a coisa ia ficar feia - Eu tô cercada de incompetentes... a vontade é mandar todo mundo embora e contratar gente que saiba trabalhar direitinho, sem reclamar tanto, sem ficar pelos cantos - A crítica era exagerada, haviam poucas maçãs podres no cesto e tanto Borges quanto outros funcionários davam como certas as demissões deles nos próximos dias - Chamar uns chineses que trabalham quietos... também... - Ela pareceu perder o fôlego, se apoiou na mesa - Quer saber... sai daqui você.
- Como quiser - Se havia algo que eu aprendi nesses anos todos nessa indústria vital é que nunca se deve contrariar uma mulher, sobretudo uma mulher que deve estar na TPM, teve seu carro batido e era uma Domme poderosa - Senhora.
Antes que Rafaela pudesse falar qualquer coisa eu saí da sala. Foi uma provocação de leve, nada sério, era só uma que ela me chamaria de moleque e desceria vinte chibatadas. Credo. Quase senti falta da mão leve dela. Freya sim tinha uma mão bem pesada, se bem que no reveillon ela devia estar enfraquecida pelo álcool e a projeto de senhora estava ansiosa em tirar uma boa nota.
Segui pelo pequeno corredor olhando a mesa de Freya de soslaio enquanto pensava em um milhão de coisas e tentava lembrar alguma música para tentar fazer alguma descrição de produto meio genérica, quem sabe Borges, assim que voltasse, pudesse aproveitar algo. Chamei o elevador estalando o pescoço, direita, esquerda. As portas do meio de transporte se abriram revelando Vali. Meu coração parou um instante. Quase senti uma vertigem. Ele não havia mudado quase nada, o cabelo parecia cortado, mas agora estava com uma camisa de botões, calça social, sapatênis... era o cosplay perfeito do pessoal daqui.
- V-vali... - senti meu rosto corar - ... tudo bem?
- Olá, Fernando - Ele saiu do elevador que foi embora para outro andar - Estou bem, e você, como está?
- Tô bem até - Não que não nos falassemos desde o ano novo, mas era apenas por mensagem, nada de voz ou de encontro físico, embora eu quisesse eu nunca propús, ele podia estar chateado e eu queria dar tempo ao tempo. - Eu...
Ele não esperou nada, me abraçou. Correspondi o abraço por reflexo, eu não esperava tal ação dele. Era aquela famosa quest proposta pelo mestre do RPG completamente impossível e, ao rolar o D20, ele tirou 21. Fiquei sem reação. Fechei os olhos.
- Está tudo bem.
- Não, não está... vem cá - Não tinha devolvido a chave do terraço, na verdade tinha tirado uma cópia, adorava fazer a digestão ali em cima. - Precisamos conversar.
- Mas a senhora está...
- Ela tá puta da cara, se você falar um "A" ela vai te espancar ali mesmo, mais a mais ninguém vai conseguir trabalhar direito essa semana, puta semana zicada.
Assim subimos para o terraço. Algumas nuvens escuras se desenhavam no horizonte, talvez chovesse depois, mas agora o sol tinha secado completamente aqui em cima, era tudo que eu precisava, alguns minutos com Vali para explicar tudo. Tudo que me afligia, tudo que precisava por para fora de alguma forma.
- Nunca tinha vindo aqui em cima...
- Eu descobri esses dias, vim meditar.
- Meditar? - ele me olhou cético - Você? Essa terapia tem feito efeito hem.
- Você nem imagina o quanto... - Fiz ele sentar, sentei ao lado dele enquanto o celular vibrava por mensagem e Vali me mostrava, era Rafaela perguntando onde ele estava, tomei o celular dele e respondi "Muito trânsito, senhora." - ... pronto, isso vai nos dar um tempo.
- Decididamente você é uma grande interrogação - ele não gostou muito da minha atitude, mas entendeu que era necessária - O que queria me falar?
E assim, uma sexta-feira que provavelmente choveria tanto quanto na quinta alagando e trazendo o caos para a grande Metrópole ganhou ares doces. Expliquei todas as neuras, todas as etapas, tudo, absolutamente tudo sobre meu começo, sobre como me descobri, cada perrengue que passei até chegar naquele momento. Claro que houveram algumas pausas, alguns questionamentos, mas falei com Vali tudo que queria ter dito aquela noite de ano novo e não consegui por qualquer amarra mental que tivesse me travado. Ao terminar ele sorriu e me deu um beijo na testa. Foi inevitável conter o choro.
A forma como ele foi compreensível me fez querer sair dali com ele pra qualquer lugar que fosse. A cobertura, meu apartamento, aqui no terraço, no sofá lá da recepção. Se fosse um filme essa era a hora que a mocinha beija o mocinho em slow motion, aparece escrito "fim" em francês, a imagem dá um fade-out e escurece a tela enquanto sobem os créditos em ordem de aparição. Obviamente nem tudo era como eu queria ou desenhava em minha cabeça de escritor. Possivelmente muitas horas se passaram, porque tanto as nuvens quanto o sol mudaram de lugar.
- Então aí estão as duas comadres - A voz era de Rafaela, agora a justa-causa vem - Pode-se saber o que as duas tricoteiras fazem aqui em cima?
- Senhora eu...
- Eu precisava falar com ele - Me antecipei a Vali, estava decidido - Resolver tudo que ficou pendente.
- Deixa eu ver se entendi... - ela foi se aproximando, Vali estava pálido, eu conhecia o joguinho, segurei a mão dele - Meus dois funcionários ficaram duas horas de papo em horário de serviço?
- Exatamente - De repente não tinha mais nenhum receio do que pudesse vir - Precisava disso.
- Tudo bem, mas vou descontar do seu salário - Concordei dando de ombros, algo como "faz o que quiser, Rafaela" - Agora Vali vem comigo e você tem coisa pra fazer, chicoteei o Borges e ele vai mandar uma prévia de briefing.
Assenti com a cabeça e logo as nuvens que estavam vindo tomaram outro rumo e o dia ficou com um céu azul durante todo resto do dia só dando lugar ao véu trazido por Nyx. A chuva que veio foi ao começo da madrugada, muitas horas depois de todos estarem em casa e, ainda assim, foi só o suficiente para assentar a poeira e limpar o ar e tornar a minha respiração ainda mais aliviada. Havia tirado uma geladeira das costas e me sentia ainda mais pronto para o que fosse vir. Era meu turno, minha vez de rolar o D20... que surpresas ele me traria?
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