Faziam uns bons dois meses desde aquela semana fatídica, amanha era véspera de feriado que Rafaela, num ápice de bondade, havia decidido fazer prolongado - na realidade era para fazer algumas pequenas reformas internas necessárias depois do princípio de incêndio, colar o teto de gesso de volta e essas coisas que, com a empresa em pleno funcionamento, acontecem muito devagar, quase parando. Por isso teria quatro dias de completa folga, quer dizer, tinha de ir à terapia sexta começo da noite, talvez passasse a tarde no shopping, ver algum filme ou apenas acompanhar o movimento de seres humanos e, sem sombra de dúvidas, namorar vitrines.
Claro que o plano era ótimo demais para acontecer perfeito e, no dia que antecedia o feriado, na esquina de casa um celta prata me fechou e fui ao chão. Minha fiel companheira perdeu um de seus pedais e eu tive uma torção no pé direito, no calor do momento minha única reação foi xingar o motorista, recolher a bicicleta e caminhar até em casa, porém, depois do banho, com o corpo frio, meu tornozelo ficou do tamanho de um abacate maduro. Mas é como diz o samba: deus dá o frio conforme o cobertor. Por isso fiz uma bela compressa de gelo, pomadas e, com sorte, até amanhã estaria tudo bem.
Obviamente eu ter optado pela área de criação e não planejamento tinha um sentido: eu era ruim planejando quase qualquer coisa. Se ontem meu tornozelo era um abacate maduro hoje podia dizer que era uma melancia subdesenvolvida. Pisar era impossível e a ida matinal ao banheiro foi possível com muito esforço. É a vida né? Tomei um bom analgésico e, como era véspera de feriado, eu sabia que não teriam grandes tarefas na empresa, nada que eu não pudesse fazer de casa, aliás, esse era o sonho de Rafaela naquele delírio de uma sissy at home. A ideia excitava, mas não empolgava e... deixa pra lá. Puxei o celular mandando mensagem para o Borges.
Ele entendeu, passou pouca coisa para eu fazer. Apesar do tom turrão na maior parte do tempo meu diretor direto era uma boa pessoa, bastante compreensível. Me reboquei até o computador e fiz tudo que ele mandou, no caminho aproveitei para colocar algumas roupas para bater, umas calças, camisetas, duas saias, um vestido e a camisola que havia ganho. Com os primeiros ares de frio eu dormiria de pijama mesmo por isso a camisola seria lavada e colocada em um pacote fechado a vácuo para manter livre de qualquer chance de bolor. Adorava o frio por não ser calor, mas aí a passar frio? Sem chance. Voltei ao computador e lá estavam algumas correções pontuais - literalmente, algumas pontuações eram necessárias - e quase senti saudade de trabalhar em casa, fazendo meus freelancers. Não, melhor não. Folga era bom, mas full time em casa? No way.
Quando terminei as correções dei pitaco em algumas artes que a Bethina havia me mandado, ela se propôs a vir me ajudar em casa, afinal, ela morava sozinha também. Decididamente estava com a singela impressão de que a talentosa designer estava dando em cima de mim. Ou era coisa da minha cabeça? Sempre fui péssimo em notar isso. Melhor estender a roupa para ocupar a cabeça com outra coisa. Pedi comida pelo delivery, sem saco nenhum pra cuidar de panelas.
E assim o dia que tinha tudo para ser proveitoso na empresa se tornou um tedioso dia em casa comendo lanche do podrão da esquina que dava desconto e assistindo programas de fofoca. Quase como uma auto punição por não estar trabalhando. No aplicativo de mensagens Bethina perguntava meu endereço. Decididamente ela já vinha arrastando asa por mim haviam algumas semanas, porém é como diz aquele meme "sem tempo, irmão". Não estava com o menor ânimo para engrenar em algum relacionamento, muito menos com colega de empresa. Aliás, provavelmente no regimento interno da empresa desestimulava esse tipo de conduta.
Se eu pudesse encontrar a pessoa que inventou os analgésicos eu daria um beijo na boca dele. Que invenção maravilhosa. O tornozelo seguia fodido, mas a dor era perfeitamente suportável a ponto de me fazer estender a roupa na área de serviço que via o sol da manhã e ficava fora do alcance da visão da sala. Quando rumava de volta para o sofá a campainha soou. Bom, não é porque eu estava desinteressado em um romance agora que eu precisava parecer um jeca tatu. Desamarrotei a camisa com a mão, arrumei a bermuda, passei a mão pelos cabelos, chequei o hálito... tudo dentro do prazo entre um "já vou" e um "bem vinda à minha caverna".
- Com licença - Ela pediu para entrar, seria ela uma vampira? - Nossa, seu tornozelo ta horrível!
- Tá? - Olhei pra ele, agora a melancia subdesenvolvida parecia estar pronta para madurar - Graças aos analgésicos nem sinto dor.
- Na boa, Fernando - Bethina trazia consigo uma sacola de compras que deixou sobre a mesa que ficava na divisa entre a sala e a cozinha - Você devia ir num hospital ver se não quebrou nenhum osso.
- Não precisa - Com dor mexi os dedos do pé - se tivesse quebrado eu não fazia isso...
- Mesmo assim, vai que é uma luxação? Um tio meu caiu do moto e ficou com o pé assim todo cagado, quando foi no dia seguinte parecia aquelas imagens que foram ampliar sem segurar o shift sabe?
Rir, era tudo que eu precisava nesse momento. De verdade. Talvez fosse uma boa ter ela por perto nesses dias. Dias? Eu pensei em dias? Não. Nessa noite, só até o jantar depois ela pode ir pra casa. Obviamente eu não falaria isso na cara dela, mas... ou será que isso era minha forma de fuga? A terapeuta dizia que era possível ser feliz sozinho, no entanto não era tão divertido. Por que caralhas eu estava pensando nisso justamente agora? Hora de dar uma de louco e mudar o rumo da conversa.
- Mas e o que trouxe na sacola?
- Janta... comprei uns capeletes, um molho pronto, queijo ralado...
- Que sofisticada ela... - a gente tinha por hábito se zoar, na brincadeira mesmo - Só falta um bom vinho hem
- Tcharaan - Ela tirou uma garrafa de vinho argentino, reconhecia o rótulo de longe - Não falta mais!
- Pensou em tudo hem... daqui a pouco tá roubando o lugar da Karen e do Lucas no planejamento.
- Ah não, adoro a criação, fazendo as artes me sinto tão...
- ... Viva?
- Exato, bem isso! - Ela pegou os ingredientes - Agora me indica onde fica cada coisa na sua cozinha que eu vou fazer o jantar!
Não me opus, os analgésicos estavam perdendo o efeito e não queria forçar, por isso fui indicando tudo e Bethina foi se virando bem, achou tudo, serviu o vinho e só depois do brinde e do primeiro gole ela se ligou que eu estava tomando remédio e que poderia dar algum efeito. Ri da preocupação dela enquanto dizia que não ia dar nada e ajudaria até a dormir melhor.
- Você cozinha mó bem hem... devia entrar no masterchef.
- Masterchef tirar do pacote e aquecer? - Rimos - Mas vem cá... você não me disse que namorava nem nada.
- E não namoro uai - Fiz careta, completamente curioso - Faz anos que não namoro inclusive.
- É? - O semblante dela era confuso - É que vi umas roupas no varal e...
Alerta vermelho, fodeu, fodeu, fodeu, fodeu, fodeu lindamente, todas as sirenes internas tocando no mais alto volume. Setor de criatividade, uma resposta agora. setor de controle de micro-expressões: faça seu trabalho. Setor de planos B: prepare algo. Setor de planos C, D, E vocês também façam planos. Todas as ordens dadas e por fora não demonstrava a menor expressão de terror.
- A máquina de lavar da vizinha quebrou e ela perguntou se podia lavar aqui - Setor de mitomania, parabéns, vai ganhar uma promoção - Só que isso foi antes de eu torcer o pé né - Setor de "mudando de assunto", parabéns pra você também. - Mas amanhã, mais tardar sábado ela vem buscar.
- Se quiser - A expressão dela dizia que a história colou - Eu posso levar até ela.
- Nem - Bebi um gole de vinho - Ela é toda enrolada com os pais que moram aqui perto que estranharia ela vir só semana que vem...
- Olha... ela tem um ótimo gosto pra roupas - Bethina jogou verde? Esse grão de café seria comido por uma civeta e defecado antes de madurar - Aquela camisola ali é linda e bem cara...
Momento de um paradoxo estranho na minha cabeça: Ao mesmo tempo que queria manter a história da vizinha atrapalhada que veio lavar roupa aqui, eu queria ver Bethina naquela camisola. Não fossem as várias sessões eu dificilmente conteria uma ereção aqui mesmo, na mesa pós jantar. Ah, que se foda, só se vive uma vez.
- Vê tá seca e experimenta - Bebi um gole de vinho, o escorpião do meu signo balançou o rabo - Ela não precisa saber.
- Será? - O vinho falava alto, ela sorriu lascivamente e levantou voltando com a peça nas mãos - Eu acho que ela é bem maior que eu... quer dizer, sua vizinha deve ser bem mais alta e ter um corpo mais largo - Ela me olhou - Meio tipo você.
- Então tu diz que não serve?
- Serve, vai ficar beeeem folgada, mas serve.
- Então experimenta ué.
- Será? - Ela hesitou um pouco mas mordiscou o lábio e foi até o banheiro, voltou depois de dois pares de minutos em que fiquei pensando se podia falar pra ela sobre o crossdressismo, sobre minha relação anterior com minha antiga mestra e tudo mais, essa semana a terapia prometia, a porta do banheiro abriu - O que achou?
Ela estava deslumbrante. A lingerie dela era de dois tons de lilás mais escuros que a camisola o que fazia transparecer a pele dela levemente arrepiada, o caimento não era perfeito, a parte da cintura realmente ficou muito folgada, o que foi atenuado pelo quadril largo de Bethina. Os seios, apesar de nunca transparecerem por baixo das roupas habituais dela, eram na medida. O cabelo afro com um volume mais baixo, uma maquiagem suave completaram o visual. Decididamente o vinho e seus mistérios. Fiquei sem palavras, logo eu, um redator, completamente sem palavras.
- Fala logo, Fernando - Ela corou rindo de nervosa - Tá me deixando sem graça assim.
- Você ficou linda! - Baixei o tom de voz deixando as palavras caírem dentro do restante de vinho da taça - Eu ia...
- Você achou? - O tom de voz dela ficou sensual de repente - Tem mais uma coisa na sacola do mercado...
Decididamente ela era felina. Caçadora nata. Não fosse minha torção ela teria feito outra estratégia. Os planos dela agora pareciam tão óbvios que eu passei a me sentir a pessoa mais burra do universo. Com um pouco de dificuldade peguei a sacola que ela havia deixado no canto da mesa. Um pacote de preservativos. Não pude deixar de sorrir de canto e aceitar a situação. Não que eu não achasse ela bonita, mas... sem "mas", quando eu saí daquele paraíso BDSM patrocinado pela Rafaela e sua trupe eu decidi que estaria mais aberto a todas as experiências que pudesse vir a ter. Minha terapeuta inclusive me estimulou a isso, a sempre ficar de radar ligado e não recusar as oportunidades da vida.
Foi assim, com o tornozelo agora com tamanho semelhante à uma laranja que a camisola foi ao chão junto com a lingerie de Bethina e minha roupa de ficar em casa. Tudo no caminho para a cama. Com dois corpos cheios de carboidratos, álcool e desejo o ato se consumou. Sem peso, sem neuras, sem dogmas, sem pressão alguma. O corpo. O cheiro. O beijo quente. O suor. O movimento. O êxtase. O ápice compartilhado. Posso dizer sem medo de estar exagerando que foi a transa mais perfeita que tive em anos. Quase me veio, antes de dormirmos com o fino edredom sobre os corpos suados duma noite quente de final de verão, a palavra sublime.
Dormimos ao som da cidade que se movia dezenas de metros abaixo. Dormimos de forma sublime.
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