Não seria a primeira vez que esse apartamento, localizado em um bairro de classe média, em um prédio com seus vinte anos desafiando a gravidade, na altura do décimo quarto andar veria uma discussão entre um homem e uma mulher. O casal que morou aqui antes de Fernando discutia por tudo até o momento da conclusão óbvia: a Metrópole estava fazendo mal para eles.
- Entra - Disse Fernando caminhando enquanto deixava a mochila no sofá e arremessava o embrulho na cama que não fora arrumada aquela manhã - Fica a vontade... quer água? Suco?
- Licença - A jovem entrou ainda com um certo receio do que estava por vir dentro daquelas paredes - Eu ia pedir café, mas né... não tem.
- Não, lamento, cafeína aqui só do chimarrão ou coca-cola.
- Então eu vou aceitar a água... - Bethina suspirou pesadamente enquanto aceitava o convite para se sentar - ... até porque acho que temos que conversar a sério né?
O coração de Fernando parecia que sairia pela boca a qualquer momento. Sentia que era mais fácil aguentar duzentas chibatadas de Rafaela, trezentas de Freya do que fazer o que estava por fazer. Mas, ao mesmo tempo, sentia que podia confiar nela. Odiava não ter certeza. Quase quis colocá-la porta afora e perguntar à terapeuta como agir. Só que isso demonstrava o quão ela era muleta e ele, caso tudo aquilo que tinha dito e estava construindo dentro de si era real, tinha de agir como uma pessoa honesta com os outros, sobretudo consigo mesmo e, falar disso com Bethina, era um daqueles passos grandes, talvez até um level up.
- Temos sim. - Fernando deu um gole curto no copo com água deixando escapar um suspiro longo, os olhos baixos, mergulhados naquele receptáculo diminuto de líquido vagamente insípido, incolor e inodor - Então... eu não sei bem como falar isso, na real eu nunca soube como falar disso com ninguém... acho que... - Sentiu a mão de Bethina tocar a sua suavemente - Fala você primeiro.
- Certeza que seu ascendente é peixes - Ela sempre recorria a explicações de signos pro que não conseguia dizer, para ela um ascendente influenciava mais nas pessoas do que uma doença psico-somática - Vou fazer como aprendi com a minha mãe, se tem algo pra dizer, chega e diz, sem rodeios, sem enrolação, tipo esparadrapo... - Ela puxou o olhar, se esticou e fez Fernando erguer o rosto - ... achei que nunca mais sentiria esse tipo de coisa por homem nenhum na vida, sobretudo depois de umas experiências com umas amigas e... ah, que se foda, eu gosto de você!
- Eu... - Fernando foi pego no contra-pé, aquele pênalti tão bem batido que ele nem mesmo apareceu na foto, bola pra um lado, goleiro pro outro - ... eu também gosto de você!
- E agora seria aquele momento que a gente se beijaria e tudo faria sentido - A jovem designer olhou no fundo dos olhos do redator - ... mas eu não posso te dividir com outra pessoa, sabe? Eu super entendo esses relacionamentos abertos, mas não é a minha praia.
- Não tem ninguém.
- Fernando - Ela demonstrava estar ficando brava - A arrumação do apartamento tudo bem, até a parada da vizinha faz sentido, mas o guarda-roupa, velho... não mente pra mim.
Esse era o momento que ele tanto sonhou quanto temeu. Esperava passar por todo o processo de aceitação sozinho, não havia ninguém em seu plano, talvez alguém da cobertura, mas só como ponto de fuga, não alguém de pegar na mão e caminhar junto. Internamente sorriu de canto. Pensou em um milhão de desculpas, de histórias, mas não. Resolveu dar o salto de fé.
- Eu não sei como você vai me ver depois disso, Bethina, mas eu sinto que posso confiar em você, que posso... - Mesmo sendo redator não era raro as palavras fugirem dele - ... me abrir com você, falar tudo, independentemente de você me entender ou não, a real é que vou despejar meu coração, mostrar minhas cartas sem esperar nada além de compreensão e se, depois de saber isso, você optar por se afastar eu vou respeitar sua escolha.
- Nossa, você é ótimo em enrolar - Ela sorria lhe acariciando o rosto - Agora desembucha.
- Sou um ótimo redator, lembra?
- Ótimo mas enrolão - Riram um instante - Agora fala, vai, tipo esparadrapo, um, dois e...
- Eu sou crossdresser. - Sentiu um Titanic sair do alto de seus ombros tornando-se pó e sendo levado pelo vento em seguida - Pronto, falei.
- Desculpa a ignorância - Ela sorriu amarela - Mas o quê é isso?
- Acho que melhor que falar é mostrar.
- Eita! Assim?
- É - Fernando, tomado por um ânimo incomum levantou-se rumando para o quarto - Espera aí, vou ser rápido!
Como era de se esperar Bethina tentou buscar na internet o significado do termo, mas a bateria de seu telefone havia se esgotado. Como se sentia em casa estando ali puxou da bolsa o carregador já usando uma das tomadas que ficavam logo acima da pequena mesa da cozinha. A chuva havia deixado a conexão extremamente ruim e, por isso, Fernando anunciou sua saída do quarto antes que ela pudesse ter alguma noção do que se tratava ou até mesmo do que pudesse ver alguma prévia do que era.
Fernando estava deslumbrante em um vestido branco de cintura marcada por um cinto rosa-bebê e saia plissada, nos pés uma sandália baixa, maquiagem leve, o cabelo que já tinha um ano sem corte jogado para trás atado com uma presilha com um laço roxo escuro. Praticamente o mesmo visual que havia usado no ano novo naquele BDSM Camp. Claro que o espelho lhe deu coragem. Quase puxou de dentro de si a Fernanda, mas sentia ela cada vez mais distante, por isso, tudo bem. Saiu do quarto indo na direção da cozinha.
Bethina não soube o que responder. Seu primeiro olhar não reconheceu quem era. Lembrava vagamente Fernando, mas tinha a silhueta feminina, pernas depiladas, rosto liso como porcelana, o cabelo brilhava como uma plantação de trigo. Fora a escolha da peça, estava perfeita demais para um homem escolher e, ainda mais, vestir. Foi aí que teve um estalo e se lembrou da camisola larga. Tudo fez sentido na sua cabeça, a equação se completou e viu a tela toda. Mas, mesmo com tudo encaixado, estava em choque e isso era nítido no seu olhar e reação do corpo.
- Eu... - Ela tentou puxar umas palavras de dentro - ... não sei o que dizer - Tantas palavras enchiam a boca dela mas nenhuma ousava sair - Essa... isso... é... você mesmo, Fernando?
- Sim - Se olhou um instante - Então, crossdresser é isso.
- Você é gay? - A pergunta era válida, mas saiu em um tom agressivo - Quer dizer, sem querer ofender... mas você é gay, bi ou qualquer coisa assim?
- Não sei ao certo - Fernando caminhou na direção da jovem que estava paralizada, apenas os olhos e a boca mexia, todo o resto estava preso por correntes invisíveis - Enfim é isso, crossdresser é a pessoa que gosta de se vestir, de se sentir, de ser, ainda que por pouco tempo, do outro sexo.
- Tipo travesti?
- A tradução seria tipo isso... mas o termo acabou pejorativo - O batom nude tornava o sorriso dele mais vistoso - E sabe como é, as palavras tem poder.
- T-tem sim... cara... eu nem sei o que dizer, tô, literalmente, em choque.
- Eu imagino - Ele se aproximou pegando a mão dela que, como se o toque fosse ácido, puxou o membro inteiro - Que foi?
- Não sei - Ela se levantou - Eu realmente não sei o que pensar disso tudo.
- Sei como é.
- Eu... melhor eu ir nessa, a chuva já passou.
- Bethina, espera - Antes que ela pudesse chegar à porta ele a interrompeu - isso não muda nada do que eu sinto por você, pelo contrário, eu abri o jogo porque eu realmente gosto de você.
- Tá bem, Fernando... - Ela se desvencilhou, destrancou a porta - ... Fernanda ou sei lá qual o nome que você usa.
- Pode me chamar de Fernando mesmo - a porta estava aberta, pela primeira vez não sentiu nenhum medo em estar do completamente montado do lado de fora da sua caverna - Eu sei que precisa de um tempo pra digerir tudo isso, mas olha - Ele a virou para si já na porta do elevador que subia - Se tiver qualquer dúvida me manda mensagem, me liga, me chama de alguma forma...
A verdade é que ele queria dizer que não conseguia mais imaginar uma vida sem ela, fosse por dupla de criação, fosse pra almoçar, jantar, transar, fazer amor, sair comprar roupas, dividir o guarda-roupas, juntar as escovas de dente. Queria dizer que amava ela. E ela, seguramente, queria dizer o mesmo, mas não disseram. Claro que Bethina estava em choque, a situação era nova e completamente inimaginável, ainda mais pra sua criação cristã, obviamente que já tinha tido algumas experiências nada ortodoxas, mas... isso? Nada fazia sentido, pelo menos ainda não.
- Tudo bem - Pela primeira vez nos últimos minutos, ela sorriu enquanto a porta do elevador abria - Se cuida.
E foi assim que esse apartamento viu, mais uma vez, ela indo embora e ele ficando parado ante o diminuto meio de transporte que seguia para dezenas de metros abaixo. Quando o número no visor virou letra Fernando deu-se conta de que estava completamente montado, do lado de fora do apartamento e que, por algum milagre nenhum vizinho havia visto. Embora, agora, sentia-se tão forte que nem mesmo dedos apontados, risos, chacotas lhe fariam mudar. Precisava de tempo agora.