quarta-feira, 25 de setembro de 2019

CdF: Revelação

Não seria a primeira vez que esse apartamento, localizado em um bairro de classe média, em um prédio com seus vinte anos desafiando a gravidade, na altura do décimo quarto andar veria uma discussão entre um homem e uma mulher. O casal que morou aqui antes de Fernando discutia por tudo até o momento da conclusão óbvia: a Metrópole estava fazendo mal para eles.

- Entra - Disse Fernando caminhando enquanto deixava a mochila no sofá e arremessava o embrulho na cama que não fora arrumada aquela manhã - Fica a vontade... quer água? Suco?

- Licença - A jovem entrou ainda com um certo receio do que estava por vir dentro daquelas paredes - Eu ia pedir café, mas né... não tem.

- Não, lamento, cafeína aqui só do chimarrão ou coca-cola.

- Então eu vou aceitar a água... - Bethina suspirou pesadamente enquanto aceitava o convite para se sentar - ... até porque acho que temos que conversar a sério né?

O coração de Fernando parecia que sairia pela boca a qualquer momento. Sentia que era mais fácil aguentar duzentas chibatadas de Rafaela, trezentas de Freya do que fazer o que estava por fazer. Mas, ao mesmo tempo, sentia que podia confiar nela. Odiava não ter certeza. Quase quis colocá-la porta afora e perguntar à terapeuta como agir. Só que isso demonstrava o quão ela era muleta e ele, caso tudo aquilo que tinha dito e estava construindo dentro de si era real, tinha de agir como uma pessoa honesta com os outros, sobretudo consigo mesmo e, falar disso com Bethina, era um daqueles passos grandes, talvez até um level up.

- Temos sim. - Fernando deu um gole curto no copo com água deixando escapar um suspiro longo, os olhos baixos, mergulhados naquele receptáculo diminuto de líquido vagamente insípido, incolor e inodor - Então... eu não sei bem como falar isso, na real eu nunca soube como falar disso com ninguém... acho que... - Sentiu a mão de Bethina tocar a sua suavemente - Fala você primeiro.

- Certeza que seu ascendente é peixes - Ela sempre recorria a explicações de signos pro que não conseguia dizer, para ela um ascendente influenciava mais nas pessoas do que uma doença psico-somática - Vou fazer como aprendi com a minha mãe, se tem algo pra dizer, chega e diz, sem rodeios, sem enrolação, tipo esparadrapo... - Ela puxou o olhar, se esticou e fez Fernando erguer o rosto - ... achei que nunca mais sentiria esse tipo de coisa por homem nenhum na vida, sobretudo depois de umas experiências com umas amigas e... ah, que se foda, eu gosto de você!

- Eu... - Fernando foi pego no contra-pé, aquele pênalti tão bem batido que ele nem mesmo apareceu na foto, bola pra um lado, goleiro pro outro - ... eu também gosto de você!

- E agora seria aquele momento que a gente se beijaria e tudo faria sentido - A jovem designer olhou no fundo dos olhos do redator - ... mas eu não posso te dividir com outra pessoa, sabe? Eu super entendo esses relacionamentos abertos, mas não é a minha praia.

- Não tem ninguém.

- Fernando - Ela demonstrava estar ficando brava - A arrumação do apartamento tudo bem, até a parada da vizinha faz sentido, mas o guarda-roupa, velho... não mente pra mim.

Esse era o momento que ele tanto sonhou quanto temeu. Esperava passar por todo o processo de aceitação sozinho, não havia ninguém em seu plano, talvez alguém da cobertura, mas só como ponto de fuga, não alguém de pegar na mão e caminhar junto. Internamente sorriu de canto. Pensou em um milhão de desculpas, de histórias, mas não. Resolveu dar o salto de fé.

- Eu não sei como você vai me ver depois disso, Bethina, mas eu sinto que posso confiar em você, que posso... - Mesmo sendo redator não era raro as palavras fugirem dele - ... me abrir com você, falar tudo, independentemente de você me entender ou não, a real é que vou despejar meu coração, mostrar minhas cartas sem esperar nada além de compreensão e se, depois de saber isso, você optar por se afastar eu vou respeitar sua escolha.

- Nossa, você é ótimo em enrolar - Ela sorria lhe acariciando o rosto - Agora desembucha.

- Sou um ótimo redator, lembra?

- Ótimo mas enrolão - Riram um instante - Agora fala, vai, tipo esparadrapo, um, dois e...

- Eu sou crossdresser. - Sentiu um Titanic sair do alto de seus ombros tornando-se pó e sendo levado pelo vento em seguida - Pronto, falei.

- Desculpa a ignorância - Ela sorriu amarela - Mas o quê é isso?

- Acho que melhor que falar é mostrar.

- Eita! Assim?

- É - Fernando, tomado por um ânimo incomum levantou-se rumando para o quarto - Espera aí, vou ser rápido!

Como era de se esperar Bethina tentou buscar na internet o significado do termo, mas a bateria de seu telefone havia se esgotado. Como se sentia em casa estando ali puxou da bolsa o carregador já usando uma das tomadas que ficavam logo acima da pequena mesa da cozinha. A chuva havia deixado a conexão extremamente ruim e, por isso, Fernando anunciou sua saída do quarto antes que ela pudesse ter alguma noção do que se tratava ou até mesmo do que pudesse ver alguma prévia do que era.

Fernando estava deslumbrante em um vestido branco de cintura marcada por um cinto rosa-bebê e saia plissada, nos pés uma sandália baixa, maquiagem leve, o cabelo que já tinha um ano sem corte jogado para trás atado com uma presilha com um laço roxo escuro. Praticamente o mesmo visual que havia usado no ano novo naquele BDSM Camp. Claro que o espelho lhe deu coragem. Quase puxou de dentro de si a Fernanda, mas sentia ela cada vez mais distante, por isso, tudo bem. Saiu do quarto indo na direção da cozinha.

Bethina não soube o que responder. Seu primeiro olhar não reconheceu quem era. Lembrava vagamente Fernando, mas tinha a silhueta feminina, pernas depiladas, rosto liso como porcelana, o cabelo brilhava como uma plantação de trigo. Fora a escolha da peça, estava perfeita demais para um homem escolher e, ainda mais, vestir. Foi aí que teve um estalo e se lembrou da camisola larga. Tudo fez sentido na sua cabeça, a equação se completou e viu a tela toda. Mas, mesmo com tudo encaixado, estava em choque e isso era nítido no seu olhar e reação do corpo.

- Eu... - Ela tentou puxar umas palavras de dentro - ... não sei o que dizer - Tantas palavras enchiam a boca dela mas nenhuma ousava sair - Essa... isso... é... você mesmo, Fernando?

- Sim - Se olhou um instante - Então, crossdresser é isso.

- Você é gay? - A pergunta era válida, mas saiu em um tom agressivo - Quer dizer, sem querer ofender... mas você é gay, bi ou qualquer coisa assim?

- Não sei ao certo - Fernando caminhou na direção da jovem que estava paralizada, apenas os olhos e a boca mexia, todo o resto estava preso por correntes invisíveis - Enfim é isso, crossdresser é a pessoa que gosta de se vestir, de se sentir, de ser, ainda que por pouco tempo, do outro sexo.

- Tipo travesti? 

- A tradução seria tipo isso... mas o termo acabou pejorativo - O batom nude tornava o sorriso dele mais vistoso - E sabe como é, as palavras tem poder.

- T-tem sim... cara... eu nem sei o que dizer, tô, literalmente, em choque.

- Eu imagino - Ele se aproximou pegando a mão dela que, como se o toque fosse ácido, puxou o membro inteiro - Que foi?

- Não sei - Ela se levantou - Eu realmente não sei o que pensar disso tudo.

- Sei como é.

- Eu... melhor eu ir nessa, a chuva já passou.

- Bethina, espera - Antes que ela pudesse chegar à porta ele a interrompeu - isso não muda nada do que eu sinto por você, pelo contrário, eu abri o jogo porque eu realmente gosto de você.

- Tá bem, Fernando... - Ela se desvencilhou, destrancou a porta - ... Fernanda ou sei lá qual o nome que você usa.

- Pode me chamar de Fernando mesmo - a porta estava aberta, pela primeira vez não sentiu nenhum medo em estar do completamente montado do lado de fora da sua caverna - Eu sei que precisa de um tempo pra digerir tudo isso, mas olha - Ele a virou para si já na porta do elevador que subia - Se tiver qualquer dúvida me manda mensagem, me liga, me chama de alguma forma...

A verdade é que ele queria dizer que não conseguia mais imaginar uma vida sem ela, fosse por dupla de criação, fosse pra almoçar, jantar, transar, fazer amor, sair comprar roupas, dividir o guarda-roupas, juntar as escovas de dente. Queria dizer que amava ela. E ela, seguramente, queria dizer o mesmo, mas não disseram. Claro que Bethina estava em choque, a situação era nova e completamente inimaginável, ainda mais pra sua criação cristã, obviamente que já tinha tido algumas experiências nada ortodoxas, mas... isso? Nada fazia sentido, pelo menos ainda não.

- Tudo bem - Pela primeira vez nos últimos minutos, ela sorriu enquanto a porta do elevador abria - Se cuida.

E foi assim que esse apartamento viu, mais uma vez, ela indo embora e ele ficando parado ante o diminuto meio de transporte que seguia para dezenas de metros abaixo. Quando o número no visor virou letra Fernando deu-se conta de que estava completamente montado, do lado de fora do apartamento e que, por algum milagre nenhum vizinho havia visto. Embora, agora, sentia-se tão forte que nem mesmo dedos apontados, risos, chacotas lhe fariam mudar. Precisava de tempo agora.

sábado, 21 de setembro de 2019

CdF: Temporal

A semana tinha começado estranha, já conseguia pisar, mas não queria arriscar a sair com a bicicleta, o céu - e a previsão do tempo - davam como certa uma daquelas tempestades torrenciais no final da tarde e, convenhamos, pedalar na chuva, com um pé que havia retomado o tamanho mais próximo do normal não era uma boa ideia. Por isso pedi um carro pelo aplicativo e quase cochilei com a velocidade e a morosidade do trânsito da Metrópole naquela manhã de segunda-feira.

Por alguma razão estranha sentia que devia me abrir com Bethina, falar tudo que queria, talvez confessar a atração. Foi impossível não sorrir de canto lembrando do jogo The Sims onde era possível confessar atração. Foda que já tinha tido o oba-oba. Ao mesmo tempo que pensava em falar tudo sentia que não devia. Soltei um suspiro alto.

- Tudo bem? - O motorista me interpelou - Desculpa me intrometer, mas o senhor tá com uma cara preocupada...

- É? - Fiz careta, atitude típica de fuga - Talvez esteja um pouco.

- É com mulher? - Ele sorriu de canto, mantive a careta - Ou homem, sei lá, os dias hoje andam tão diferentes.

- Verdade - Resolvi jogar verde - Cada dia mais fluido.

- Como diria o poeta "O terceiro sexo, o terceiro mundo são tão difíceis de entender".

- Gostei da referência!

- Eu sou do sul, aí acabei, por assim dizer, doutrinado por essas bandas na juventude, depois vim morar pra cá.

E assim, um trajeto que eu faria em pouco menos de uma hora e que hoje estava levando mais de uma hora e meia, passou voando em uma gostosa conversa com um motorista de aplicativo até chegar à empresa. Agora era hora de encarar Bethina e decidir o que fazer.

- Ah, seu Fernando - Ele abriu o vidro antes de ir embora - Se eu fosse o senhor eu falava pra ela!

Se os antigos escritores diziam que um banco de taxi era ideal para se debater problemas os motoristas de aplicativo tomavam o lugar deles. Pensando bem, terapia nada mais era que um banco de taxi: uma pessoa que te conhece minimamente, num ambiente controlado e que, no fim, você vai ter que pagar. Muito embora a terapia era como se fossem várias viagens com o mesmo taxista por meses. Já no elevador Borges me tirou dos meus pensamentos.

- Fernando, preciso de um favor seu.

- Chora!

- Então, cara, preciso que você faça uma coletinha de briefing lá na operação - Ele me entrou uma pastinha com meia dúzia de folhas - A Rafaela me pediu pra fazer um material interno e eu precisava fazer isso, só que eu preciso dar uma saída agora de manhã - Ele se aproximou, atitude típica de quem quer segredar algo - É aniversário da patroa e eu quero dar um presente fodão mesmo saca? Só que eu só lembrei agora e preciso ir resolver isso... pra todos os efeitos eu fui buscar um material em um fornecedor que fica no meio do caminho e tals, quebra essa pra mim?

- Claro pô - Homens sendo homens - Vai de boa!

- Pô, brigadão cara, você me salvou! - Assim que o elevador abriu notei que Bethina ainda não havia chego, deixei minha mochila na cadeira, peguei caneta, umas folhas em branco e o celular para gravar o briefing interno - Depois a gente acerta!

- Tranquilo! - Eu até já imaginava formas de cobrá-lo depois - Até mais!

Dito isso subi um andar pelo elevador. O sedentarismo matava, mas não queria procrastinar isso, precisava fazer logo e voltar para minha mesa, sentar com Bethina e resolver essa parada de uma vez por todas. Claro que meu querer quase nunca está relacionado ao acontecer e a reunião durou mais de duas horas além de uma passada por setores menores dentro da operação para ver se tinha alguma ideia. Quando vi já faltavam poucos minutos para o almoço.

Ao passar por minha mesa notei que ela não estava ali, apenas a blusa pendurada na cadeira deixava claro que alguém esteve ali. Provavelmente ela saiu para o almoço mais cedo, conforme eu a instruí na primeira semana na empresa. Garota esperta. Garota não. Mulher. E que mulher. Relembrar ela, na minha camisola, era algo que eu dificilmente esqueceria, ainda mais pelo oba-oba no fim.

No restaurante nem sinal dela. Nada na praça em frente. Diversas pessoas da empresa almoçando ou saindo do almoço, até mesmo Borges - agora com uma sacola de loja cara nas mãos - parou para comer antes de guardar o presente no carro. Sentei no banco deixando o processo digestivo começar. Uma parte de mim dava graças de não ter visto ela hoje, porém outra parte, maior, estava ansiando pelo encontro e uma conversa esclarecedora. Merda. No mesmo instante que minhas dualidades debatiam-se o celular vibrou. Mensagem. Merda dupla. Puxei do bolso. Freya? Estranho.

"Fernando, acho que você pode confiar nela, é boa pessoa. Abre teu coração e confia."

Do que diabos a aprendiz de dominadora estava falando? Oras, respondi à altura de meus pensamentos.

"Que? Do que está falando?"

No exato instante que a bateria mostrava sessenta e um porcento a resposta rápida, como era de se esperar dela.

"De Bethina, vocês precisam conversar. Relaxa que não vou falar pra ninguém. Se cuida."

Desde quando Freya virou conselheira amorosa? Via ela tão ou até mais fria que Rafaela, sempre pareceu assim, mesmo com aquele "presente" no banho ela nunca demonstrou sentimentos, não duvidava em nada ela tomar o posto de "executiva-domme-má" da casa de Rafaela logo-logo. No entanto ela tinha razão e, assim, a batalha entre os lados estava vencida pelo lado da verdade, de abrir o jogo e ver no que dava. Pouco XP, uma quest grande, tendo que tirar mais do que doze no D20. Não era impossível, mas também não era fácil.

Ocorre que aquela tarde e segunda foi a mais perfeita demonstração de dedo no cu e gritaria. Por mais que se guardem arquivos na nuvem, servidores podem sair do ar, internet pode cair e sites de empresas saírem do ar, sobretudo com um ataque DDoS que derrubou e zerou o servidor principal da empresa. Por ser um velho na internet mantinha uma parte do conteúdo no meu HD externo, mas o resto precisou ser refeito e foi impossível qualquer conversa, mesmo com Bethina a menos de dois metros de mim. Quando faltavam poucos minutos para o fim do expediente o site estava no ar novamente junto com quase todas as suas páginas - as que faltavam eram as que precisavam passar por reformas naturalmente e seriam refeitas amanhã -, artes e textos.

Me demorei alguns minutos após o expediente para monitorar o upload seguro dos arquivos no servidor e no meu HD externo - backups nunca são demais - ao que Bethina fez o mesmo só por segurança. Foi aí que um trovão rasgou o céu e fez os prédios vizinhos apagarem e o gerador manter o mínimo possível de tomadas ligadas. Merda. Meu celular tinha quatro porcento de bateria. Acompanhado do som que ecoou por toda aquele prédio semi-vazio veio a chuva que pareceu jogada por baldes tamanha a intensidade. 

- Precisamos... - falamos juntos, fiz sinal para que ela falasse primeiro - Então, Fernando, precisamos conversar.

- Eu sei... - Ela me olhou, que rosto lindo, puta merda, eu acho que estou apaixonado, fodeu - ... lá em casa? Na sua casa? Num bar?

- Eu moro mais longe.

- Quão longe?

- Três quarteirões pra frente, na mesma rua.

- Sério?

- Yep, vamos pra sua casa.

- P-pode ser - hesitei um instante - Quer dizer, isso se não se importar de encontrar com um alguém fictício.

- Nossa - Ela virou os olhos - Tinha que ser escorpiano mesmo, puta merda, olha esse nível de vingança.

- Esse negócio de signo - a mulher que ficava na recepção passou pela gente rumando para o carro que estava parado quatro metros longe da porta da empresa - Não é de deus!

E ela sumiu na chuva entrando no carro que saiu. Foi impossível não gargalhar. Fiz Bethina chamar o carro no aplicativo, pois meu celular estava sem bateria. Fomos quase em silêncio o trajeto todo, comentamos coisas da empresa, a correria daquele dia, o tamanho da chuva e corroboramos a reclamação do motorista sobre o tamanho do trânsito e a assertividade da previsão. Corremos até o hall de entrada do prédio.

- Seu Fernando - o porteiro me interpelou - Chegou esse pacote aqui pro senhor, tem umas letra estranha no verso.

Sorri agradecendo e já entrando no elevador seguido de Bethina. Agora era a hora de falar tudo, mostrar tudo, mostrar pra ela o tamanho real de tudo que eu sou e o que aquilo tudo é pra mim. Abrir o coração. Seria meu salto de fé. Alea jacta est.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

CdF: Arrumação

Aquele feriado foi  tudo que tanto a empresa quanto Freya precisavam para voltar cem porcento focados. Enquanto trabalhava em sua mesa tentava equilibrar a dor que havia ficado em uma de suas nádegas na sessão de final de semana. Gostava disso mesmo que lhe proporcionasse algum desconforto no dia-a-dia.

Se espreguiçou pensando em dar uma passada na comunicação ver como estavam as coisas, ver aqueles viciados em cafeína queriam algo mais. Riu do pensamento enquanto lembrava que lá estava Fernando, uma eterna incógnita frente tudo que ela, dona Rafaela e Vali viviam. Enquanto se levantava para ir à ronda viu o horário. Pouco além do meio-dia. Rafaela estava ocupada conversando a sós com investidores via vídeo chamada e sabia, por experiência própria que não deveria interromper sua senhora nesses momentos, ainda mais com algo tão mundano como comer.

Estalava o pescoço ora para a esquerda, ora para a direita quando viu, de esguelha, um vulto passando para o terraço. A submissa sabia que Fernando gostava de ficar ali no pós-almoço, aproveitaria para pegar um ar enquanto via se ele e o setor precisava de algo. Perfeito. Ou quase, afinal, subir escadas com salto, mesmo para ela, era algo a ser feito em ritmo mais lento. Sorriu de canto enquanto lembrava de como era molecona quando conheceu Rafaela, raramente usava salto... tempos estranhos.

Conforme se aproximava do clarão que a porta aberta gerava ouvia alguns grunhidos baixos que lembravam choro. Seu instinto disse para acelerar o passo, afinal, choro e locais altos não combinam. Ainda mais dado o histórico de Fernando. Ponderou chamar ajuda, afinal, mesmo com a academia que fazia não sabia se teria força física suficiente para segurar um homem com mais de um e oitenta que, apesar do crossdressismo, tinha um porte avantajado.

Ficou cega pelo excesso de luz não mais que um par de segundos enquanto era guiada pelo som. Conforme a visão voltava ao normal o vulto em nada lembrava de quem ela achava ser. Teve de forçar um pouco a memória para lembrar de Bethina, talentosa designer contratada nos primeiros dias do ano, ela havia deixado currículo no apagar das luzes de dezembro e coube à Freya entrevistá-la. Se não lhe falhava a memória ela e Fernando faziam uma ótima dupla de criação que garantia ao setor de comunicação da empresa uma desenvoltura ágil e sempre focada nos assuntos que estavam bombando, o que justificou o bom aumento de engajamento das redes sociais da empresa.

Por um instante ficou em dúvida sobre se aproximar ou não. "Girls support girls" pensou. Bethina estava abraçada aos joelhos, calça jeans normal, tênis all star, uma jaqueta fina por cima de uma blusa discreta de personagem de quadrinhos. Freya era quase o oposto: sapato de salto, uma saia midi marrom claro, uma camisa branca de botões com paletó um tom mais escuro que a saia e a coleira discreta que sempre usava como prova de que ela tinha dona.

- Oi... - Freya não sabia como começar, tanto tempo ignorando pessoas chorando ora de dor, ora de prazer que perdeu o tato - ... Tudo bem?

- Ai - Bethina enxugou o rosto com a manga da blusa - Desculpa dona Freya eu...

- Relaxa - Por dois pares de segundos ficou admirando o termo "dona Freya", era imponente - Achei que era outra pessoa... enfim, tá tudo bem? Não pude deixar de te ver chorando.

- Não sei sabe? - Bethina respirou fundo - Você já teve a sensação de conhecer uma pessoa que é a ideal pra você e do nada descobre que ela mente?

- Sei sim - Freya mentiu, mas não era o momento de ser a aprendiz de dominadora, era hora de ser empática - Aconteceu contigo?

- Foi... - a resposta foi dada em um fade out que foi se perdendo no ar até que a designer ficasse apenas com o olhar perdido no horizonte com os lábios afastados - ... doi né?

- Doi sim - "Pobre menina, mal sabe o quê é dor" pensava Freya evitando apoiar o quadril inteiro no banco de concreto - Quer falar sobre?

- Não... não quero te incomodar dona Freya.

- Fala - Já não tinha fome mesmo, então ponderou que bater papo com uma pessoa humana, com problemas humanos lhe desse alguma nova experiência, quem sabe lhe inspirasse em voltar a escrever poesias - Não precisa disso de "dona", pode falar.

- Então... - Era a brecha que Bethina queria para poder desabafar com alguém, tinha passado o final de semana inteiro remoendo toda aquela situação que havia tido com Fernando e precisava de alguém pra desabafar, colocar tudo pra fora - ... Esses dias saí com uma pessoa que estou afim sabe? Só que ele não me disse que era comprometido nem nada, aí quando descobri me senti enganada.

- Nossa - Freya quase bocejou frente ao dilema da jovem e lembrou da abertura daqueles programas sensacionalistas que Vali às vezes assiste "pessoas reais vivendo a emoção de toda uma vida" e teve que disfarçar sutilmente o riso, para que não fosse flagrada incentivou a continuação da narrativa - E como você descobriu?

- Eu achei o apartamento muito arrumadinho sabe? Cozinha limpa, banheiro limpo, roupas no varal... aliás - Bethina ganhou ânimo em falar - falar em varal, acredita que ele teve a pachorra de me dizer que tinha lavado roupa da vizinha porque a máquina de lavar dela tinha quebrado e por isso tinha umas saias, um vestido e uma camisola carerríma no varal? - Ela tomou um fôlego - Claro, essa história até era plausível, eu mesma já lavei roupa pra vizinho e tals... mas o pior foi quando eu fucei o guarda-roupas, posso ter feito coisa errada, mas é uma auto-proteção que tenho, sempre tento descobrir o máximo possível das pessoas que me relaciono até pra me precaver de surpresas futuras.

- Tá certa - Algo na cabeça de Freya lhe dizia que ela já sabia onde essa história acabaria - Mas e o que tinha no guarda-roupas?

- De um lado roupas normais dele e do outro cheio de roupas de mulher, saias, vestidos, sapatos...

- E o que ele disse? - Ela já tinha uma ideia mais bem formada, ou era só uma grande coincidência - Tentou se explicar?

- Ah, nem sei, fiquei tão puta da cara que saí de lá, ele até mandou mensagem querendo conversar, ligou umas duas vezes... mas nem dei bola.

- Desculpa a indiscrição... - Era hora de ver se a dúvida de Freya se tornaria verdade - É alguém que eu conheço?

- É... - Bethina teve um estalo de que talvez isso fosse proibido na empresa - Talvez... eu não quero complicar a pessoa...

- É aqui da empresa? - Estava esquentando - Quero dizer, se for não estou aqui pra julgar... você não está falando com a dona Freya, está falando com uma amiga - A submissa tomou a mão de Bethina na sua - Pode confiar.

- Tá bem... - A jovem respirou fundo - É o Fernando, ali da comunicação...

- Entendi - Freya sorriu de forma sincera, ela entendeu tudo que havia acontecido, mas não podia se intrometer no fato dele não ter falado nada sobre o crossdressismo, essa decisão era dele - Tu devias falar com ele - Tinha que se controlar pra não falar tudo - Dá uma pressionada... aposto que ele fala.

- É?

- É sim, se você gosta dele como parece, pressiona.

- Você tem razão - Bethina se lembrou com quem falava - Digo, a senhora tem razão... vou fazer isso, obrigada!

- Não por isso - Freya se sentiu estranhamente bem em dar uma de cupido, mas ela sabia que Fernando tinha que ter alguém e esse alguém parecia se desenhar na jovem designer. - Fica bem, qualquer coisa sabe onde me encontrar.

A aspirante à senhora saiu caminhando com passos lentos e se sentindo mais leve. Na escadaria pensava em todas as variantes e no quanto aqueles dois pareciam um casal interessantemente interessante. Ao sentar na sua mesa ponderou um instante e, com dedos ágeis, redigiu uma mensagem enviando para Fernando em seguida:

"Fernando, acho que você pode confiar nela, é boa pessoa. Abre teu coração e confia."

Passados alguns minutos a tela do aparelho se acendeu.

"Que? Do que está falando?"

Como sempre Fernando ficava evasivo quando colocado contra a parede. Freya pensou que esse era um comportamento natural ainda mais de crossdresser que precisa ter sempre uma resposta na ponta da língua pra explicar eventuais flagrantes, por isso resolveu ser direta.

"De Bethina, vocês precisam conversar. Relaxa que não vou falar pra ninguém. Se cuida."

Mensagem enviada e Rafaela chamou aos berros a submissa à sua sala. De volta aos afazeres da empresa, o dia ainda estava na metade. Mas sentia que tinha feito uma boa ação, até mesmo a dor havia lhe deixado em paz e, sem deixar sua senhora saber o motivo, sorriu ao entrar no ambiente.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

CdF: Acusação

Assim que abriu os olhos Bethina se perguntou mentalmente que cortinas eram aquelas. Sem resposta tentou olhar em volta e constatou que o edredom não era o seu também, muito menos a cama. Tentava lembrar onde estava "pensa garota, pensa, anda Bethina Soares, pensa onde você foi ontem" e assim alguns flashes com lembranças da noite anterior lhe vinham à mente como se visse tudo em terceira pessoa, foi quando a realidade lhe chicoteou em pensamento "puta merda, Bethina". Tinha vindo ver como estava Fernando e eles acabaram na cama.

Com cautela duma gata que caminha por ambiente hostil ela foi saindo da cama buscando mover-se exatamente o necessário para que não acordasse sua dupla de criação. Estava nua. Longe disso ser uma novidade pois sempre gostou de dormir assim, porém agora estava numa em uma casa que não era a sua. Com a habilidade de caminhar na ponta dos pé de quem fez anos de balé quando era menina seguiu para o banheiro recolhendo as suas peças de roupa e a camisola.

Ao entrar no pequeno cômodo notou a limpeza e, seu gene investigador foi ativo. Resolveu fuçar por todas as gavetas. Shampoo de marca boa. Hidratante, algumas lâminas de barbear nas gavetas e creme de depilação. Achou estranho. Já vestida saiu do banheiro rumando para a cozinha. Não tinha engolido tão bem a história da vizinha. Pensava que, provavelmente Fernando tinha um relacionamento que não queria falar sobre, talvez tivessem terminado mas vivessem em um remember e por isso ela trouxe algumas peças pra lavar aqui.

Se sentiu burra de ter achado que aquele gatinho da empresa estava solteiro. Era óbvio que ele tinha alguém e esse alguém poderia aparecer a qualquer momento e flagrar ela aqui e perguntar quem era, o que estava fazendo com a camisola dela nas mãos. "Merda. Merda. Merda." pensava enquanto caminhava de volta pro quarto.

Havia uma última forma de saber se ele tinha alguém, era arriscada, mas era necessária: ver o armário. Se tivesse roupas de outra pessoa era a prova cabal de que tinha mais alguém morando aqui. O que explicaria a cama de casal, a casa arrumada, a decoração bem feita. Até mesmo a prateleira cheia de carrinhos ao lado da televisão tinha uma lógica de arrumação que iam de modelos novos para velhos. Ainda imbuída do espirito felino abriu as portas do guarda-roupa. Calças. Camisas. Camisetas. Bermudas. Tênis. Sapato, tudo bem organizado e limpo. Suspirou aliviada. Talvez ele fosse só bem organizado e a história da vizinha, mesmo não sendo tão crível podia ser real afinal de contas.

Claro que tinha aberto e fechado duas de quatro portas do guarda-roupas. Fernando ainda dormia, provavelmente embalado pelos remédios e pelo vinho da noite anterior. Com ainda mais cuidado abriu as portas restantes e suas suspeitas se confirmaram: vestidos de várias cores. Diversas saias. Dois pares de sandálias, dois sapatos fechados de salto, na gaveta inferior algumas lingeries... fechou tudo tentando manter uma lágrima dentro do olho. Agora se sentiu a maior burra de todo esse lado da cidade. Fechou as portas e rumou para a cozinha, tinha que pensar na próxima jogada.

Não era uma eximia enxadrista, sempre preferiu dançar a aprender movimentos em um tabuleiro fechado. Café. Resolveu fazer um café. Isso, assim podia pensar melhor. Abriu os armários e não achou nada.

- O que procuras? - Bethina foi assustada pela voz grave de Fernando se aproximando - Se for café ló siento, yo nó lo tengo.

- Quem não tem café em casa? - Manter a personagem, tinha de resolver isso tudo e ir embora o mais rápido possível, sorriu se virando - Bom dia.

- Bom dia - Fernando se aproximou e lhe roubou um selinho enquanto caminhava com alguma dificuldade do tornozelo já bem menos inchado e pegava uma lata de achocolatado e duas xícaras além duma caixa de leite semi-desnatado - Caiu da cama?

- Nunca durmo muito, tento levar nos finais de semana a mesma rotina de acordar da semana, aí não sofro tanto na segunda-feira - Solicita ela tomou as xícaras da mão de Fernando e levou até a mesa - Agora como você vive sem café?

- Ah não, lá vem você de novo com isso.

Riram. Era uma ótima fuga, enquanto por fora conversavam amenidades sobre temperos e o tornozelo de Fernando, Bethina pensava em formas de sair dali o quanto antes, sem aquele confronto que queria fazer. Sabia que mais cedo ou mais tarde isso aconteceria, se conhecia a ponto de saber que logo ia falar. Por isso seu novo plano teria que dar certo agora.

- Bom, Fernando, eu vou indo então... - ela se esticou olhando o tornozelo dele, agora parecia algo pouco menos que uma bola de tênis - ... já sei que você vai ficar em boas mãos.

- Vou? - Ele a olhou com estranhamento - Como assim?

- Você não disse, eu também não perguntei... mas é meio óbvio que você tem alguém né.

- Claro que não - Fernando seguia com a cara desconfiada, ainda sem ter acordado completamente e em uma inocência - Não tô entendendo nada.

- Olha, Fernando, tudo bem, relaxa. - Ela se levantou - Sei que tem alguém que pode voltar a qualquer momento e...

- ... E não tem não - Com o passo cambaleante ele se aproximou - De onde tirou essa ideia?

- As roupas no varal, a casa limpa... - internamente ela sentia o coração despedaçar, mas era preciso tirar logo antes que a coisa ganhasse um contorno maior e se tornasse mais difícil de sair - ... fora as ropas no guarda-roupa, cara, é óbvio que você tem alguém!

- Quando foi que... - Ao mesmo tempo que Fernando queria que Bethina ficasse com ele porque ele também nutria algum sentimento por ela, tinha a ciência de que não poderia, sabia que ela não entenderia o crossdressismo e acharia que ele era qualquer coisa, menos um fetichista, alguém que apenas curtia as roupas e uma ou outra ação, mas na maior parte do tempo tinha mais desejos por mulheres do que por qualquer outra coisa - ... Você fuçou meu apartamento inteiro? 

- Fucei sim - O tom de voz agora ganhava um tom tremido, nitidamente uma mágoa - agora vou nessa, se cuida. 

E Bethina saiu pegando a bolsa e saindo porta afora. No elevador segurou as lágrimas que queriam cair a todo custo, enquanto o diminuto transporte seguia para o saguão chamou um carro pelo aplicativo que, esse sim, viu as lágrimas da jovem no trajeto até o apartamento dela.