sábado, 21 de setembro de 2019

CdF: Temporal

A semana tinha começado estranha, já conseguia pisar, mas não queria arriscar a sair com a bicicleta, o céu - e a previsão do tempo - davam como certa uma daquelas tempestades torrenciais no final da tarde e, convenhamos, pedalar na chuva, com um pé que havia retomado o tamanho mais próximo do normal não era uma boa ideia. Por isso pedi um carro pelo aplicativo e quase cochilei com a velocidade e a morosidade do trânsito da Metrópole naquela manhã de segunda-feira.

Por alguma razão estranha sentia que devia me abrir com Bethina, falar tudo que queria, talvez confessar a atração. Foi impossível não sorrir de canto lembrando do jogo The Sims onde era possível confessar atração. Foda que já tinha tido o oba-oba. Ao mesmo tempo que pensava em falar tudo sentia que não devia. Soltei um suspiro alto.

- Tudo bem? - O motorista me interpelou - Desculpa me intrometer, mas o senhor tá com uma cara preocupada...

- É? - Fiz careta, atitude típica de fuga - Talvez esteja um pouco.

- É com mulher? - Ele sorriu de canto, mantive a careta - Ou homem, sei lá, os dias hoje andam tão diferentes.

- Verdade - Resolvi jogar verde - Cada dia mais fluido.

- Como diria o poeta "O terceiro sexo, o terceiro mundo são tão difíceis de entender".

- Gostei da referência!

- Eu sou do sul, aí acabei, por assim dizer, doutrinado por essas bandas na juventude, depois vim morar pra cá.

E assim, um trajeto que eu faria em pouco menos de uma hora e que hoje estava levando mais de uma hora e meia, passou voando em uma gostosa conversa com um motorista de aplicativo até chegar à empresa. Agora era hora de encarar Bethina e decidir o que fazer.

- Ah, seu Fernando - Ele abriu o vidro antes de ir embora - Se eu fosse o senhor eu falava pra ela!

Se os antigos escritores diziam que um banco de taxi era ideal para se debater problemas os motoristas de aplicativo tomavam o lugar deles. Pensando bem, terapia nada mais era que um banco de taxi: uma pessoa que te conhece minimamente, num ambiente controlado e que, no fim, você vai ter que pagar. Muito embora a terapia era como se fossem várias viagens com o mesmo taxista por meses. Já no elevador Borges me tirou dos meus pensamentos.

- Fernando, preciso de um favor seu.

- Chora!

- Então, cara, preciso que você faça uma coletinha de briefing lá na operação - Ele me entrou uma pastinha com meia dúzia de folhas - A Rafaela me pediu pra fazer um material interno e eu precisava fazer isso, só que eu preciso dar uma saída agora de manhã - Ele se aproximou, atitude típica de quem quer segredar algo - É aniversário da patroa e eu quero dar um presente fodão mesmo saca? Só que eu só lembrei agora e preciso ir resolver isso... pra todos os efeitos eu fui buscar um material em um fornecedor que fica no meio do caminho e tals, quebra essa pra mim?

- Claro pô - Homens sendo homens - Vai de boa!

- Pô, brigadão cara, você me salvou! - Assim que o elevador abriu notei que Bethina ainda não havia chego, deixei minha mochila na cadeira, peguei caneta, umas folhas em branco e o celular para gravar o briefing interno - Depois a gente acerta!

- Tranquilo! - Eu até já imaginava formas de cobrá-lo depois - Até mais!

Dito isso subi um andar pelo elevador. O sedentarismo matava, mas não queria procrastinar isso, precisava fazer logo e voltar para minha mesa, sentar com Bethina e resolver essa parada de uma vez por todas. Claro que meu querer quase nunca está relacionado ao acontecer e a reunião durou mais de duas horas além de uma passada por setores menores dentro da operação para ver se tinha alguma ideia. Quando vi já faltavam poucos minutos para o almoço.

Ao passar por minha mesa notei que ela não estava ali, apenas a blusa pendurada na cadeira deixava claro que alguém esteve ali. Provavelmente ela saiu para o almoço mais cedo, conforme eu a instruí na primeira semana na empresa. Garota esperta. Garota não. Mulher. E que mulher. Relembrar ela, na minha camisola, era algo que eu dificilmente esqueceria, ainda mais pelo oba-oba no fim.

No restaurante nem sinal dela. Nada na praça em frente. Diversas pessoas da empresa almoçando ou saindo do almoço, até mesmo Borges - agora com uma sacola de loja cara nas mãos - parou para comer antes de guardar o presente no carro. Sentei no banco deixando o processo digestivo começar. Uma parte de mim dava graças de não ter visto ela hoje, porém outra parte, maior, estava ansiando pelo encontro e uma conversa esclarecedora. Merda. No mesmo instante que minhas dualidades debatiam-se o celular vibrou. Mensagem. Merda dupla. Puxei do bolso. Freya? Estranho.

"Fernando, acho que você pode confiar nela, é boa pessoa. Abre teu coração e confia."

Do que diabos a aprendiz de dominadora estava falando? Oras, respondi à altura de meus pensamentos.

"Que? Do que está falando?"

No exato instante que a bateria mostrava sessenta e um porcento a resposta rápida, como era de se esperar dela.

"De Bethina, vocês precisam conversar. Relaxa que não vou falar pra ninguém. Se cuida."

Desde quando Freya virou conselheira amorosa? Via ela tão ou até mais fria que Rafaela, sempre pareceu assim, mesmo com aquele "presente" no banho ela nunca demonstrou sentimentos, não duvidava em nada ela tomar o posto de "executiva-domme-má" da casa de Rafaela logo-logo. No entanto ela tinha razão e, assim, a batalha entre os lados estava vencida pelo lado da verdade, de abrir o jogo e ver no que dava. Pouco XP, uma quest grande, tendo que tirar mais do que doze no D20. Não era impossível, mas também não era fácil.

Ocorre que aquela tarde e segunda foi a mais perfeita demonstração de dedo no cu e gritaria. Por mais que se guardem arquivos na nuvem, servidores podem sair do ar, internet pode cair e sites de empresas saírem do ar, sobretudo com um ataque DDoS que derrubou e zerou o servidor principal da empresa. Por ser um velho na internet mantinha uma parte do conteúdo no meu HD externo, mas o resto precisou ser refeito e foi impossível qualquer conversa, mesmo com Bethina a menos de dois metros de mim. Quando faltavam poucos minutos para o fim do expediente o site estava no ar novamente junto com quase todas as suas páginas - as que faltavam eram as que precisavam passar por reformas naturalmente e seriam refeitas amanhã -, artes e textos.

Me demorei alguns minutos após o expediente para monitorar o upload seguro dos arquivos no servidor e no meu HD externo - backups nunca são demais - ao que Bethina fez o mesmo só por segurança. Foi aí que um trovão rasgou o céu e fez os prédios vizinhos apagarem e o gerador manter o mínimo possível de tomadas ligadas. Merda. Meu celular tinha quatro porcento de bateria. Acompanhado do som que ecoou por toda aquele prédio semi-vazio veio a chuva que pareceu jogada por baldes tamanha a intensidade. 

- Precisamos... - falamos juntos, fiz sinal para que ela falasse primeiro - Então, Fernando, precisamos conversar.

- Eu sei... - Ela me olhou, que rosto lindo, puta merda, eu acho que estou apaixonado, fodeu - ... lá em casa? Na sua casa? Num bar?

- Eu moro mais longe.

- Quão longe?

- Três quarteirões pra frente, na mesma rua.

- Sério?

- Yep, vamos pra sua casa.

- P-pode ser - hesitei um instante - Quer dizer, isso se não se importar de encontrar com um alguém fictício.

- Nossa - Ela virou os olhos - Tinha que ser escorpiano mesmo, puta merda, olha esse nível de vingança.

- Esse negócio de signo - a mulher que ficava na recepção passou pela gente rumando para o carro que estava parado quatro metros longe da porta da empresa - Não é de deus!

E ela sumiu na chuva entrando no carro que saiu. Foi impossível não gargalhar. Fiz Bethina chamar o carro no aplicativo, pois meu celular estava sem bateria. Fomos quase em silêncio o trajeto todo, comentamos coisas da empresa, a correria daquele dia, o tamanho da chuva e corroboramos a reclamação do motorista sobre o tamanho do trânsito e a assertividade da previsão. Corremos até o hall de entrada do prédio.

- Seu Fernando - o porteiro me interpelou - Chegou esse pacote aqui pro senhor, tem umas letra estranha no verso.

Sorri agradecendo e já entrando no elevador seguido de Bethina. Agora era a hora de falar tudo, mostrar tudo, mostrar pra ela o tamanho real de tudo que eu sou e o que aquilo tudo é pra mim. Abrir o coração. Seria meu salto de fé. Alea jacta est.

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