Assim que abriu os olhos Bethina se perguntou mentalmente que cortinas eram aquelas. Sem resposta tentou olhar em volta e constatou que o edredom não era o seu também, muito menos a cama. Tentava lembrar onde estava "pensa garota, pensa, anda Bethina Soares, pensa onde você foi ontem" e assim alguns flashes com lembranças da noite anterior lhe vinham à mente como se visse tudo em terceira pessoa, foi quando a realidade lhe chicoteou em pensamento "puta merda, Bethina". Tinha vindo ver como estava Fernando e eles acabaram na cama.
Com cautela duma gata que caminha por ambiente hostil ela foi saindo da cama buscando mover-se exatamente o necessário para que não acordasse sua dupla de criação. Estava nua. Longe disso ser uma novidade pois sempre gostou de dormir assim, porém agora estava numa em uma casa que não era a sua. Com a habilidade de caminhar na ponta dos pé de quem fez anos de balé quando era menina seguiu para o banheiro recolhendo as suas peças de roupa e a camisola.
Ao entrar no pequeno cômodo notou a limpeza e, seu gene investigador foi ativo. Resolveu fuçar por todas as gavetas. Shampoo de marca boa. Hidratante, algumas lâminas de barbear nas gavetas e creme de depilação. Achou estranho. Já vestida saiu do banheiro rumando para a cozinha. Não tinha engolido tão bem a história da vizinha. Pensava que, provavelmente Fernando tinha um relacionamento que não queria falar sobre, talvez tivessem terminado mas vivessem em um remember e por isso ela trouxe algumas peças pra lavar aqui.
Se sentiu burra de ter achado que aquele gatinho da empresa estava solteiro. Era óbvio que ele tinha alguém e esse alguém poderia aparecer a qualquer momento e flagrar ela aqui e perguntar quem era, o que estava fazendo com a camisola dela nas mãos. "Merda. Merda. Merda." pensava enquanto caminhava de volta pro quarto.
Havia uma última forma de saber se ele tinha alguém, era arriscada, mas era necessária: ver o armário. Se tivesse roupas de outra pessoa era a prova cabal de que tinha mais alguém morando aqui. O que explicaria a cama de casal, a casa arrumada, a decoração bem feita. Até mesmo a prateleira cheia de carrinhos ao lado da televisão tinha uma lógica de arrumação que iam de modelos novos para velhos. Ainda imbuída do espirito felino abriu as portas do guarda-roupa. Calças. Camisas. Camisetas. Bermudas. Tênis. Sapato, tudo bem organizado e limpo. Suspirou aliviada. Talvez ele fosse só bem organizado e a história da vizinha, mesmo não sendo tão crível podia ser real afinal de contas.
Claro que tinha aberto e fechado duas de quatro portas do guarda-roupas. Fernando ainda dormia, provavelmente embalado pelos remédios e pelo vinho da noite anterior. Com ainda mais cuidado abriu as portas restantes e suas suspeitas se confirmaram: vestidos de várias cores. Diversas saias. Dois pares de sandálias, dois sapatos fechados de salto, na gaveta inferior algumas lingeries... fechou tudo tentando manter uma lágrima dentro do olho. Agora se sentiu a maior burra de todo esse lado da cidade. Fechou as portas e rumou para a cozinha, tinha que pensar na próxima jogada.
Não era uma eximia enxadrista, sempre preferiu dançar a aprender movimentos em um tabuleiro fechado. Café. Resolveu fazer um café. Isso, assim podia pensar melhor. Abriu os armários e não achou nada.
- O que procuras? - Bethina foi assustada pela voz grave de Fernando se aproximando - Se for café ló siento, yo nó lo tengo.
- Quem não tem café em casa? - Manter a personagem, tinha de resolver isso tudo e ir embora o mais rápido possível, sorriu se virando - Bom dia.
- Bom dia - Fernando se aproximou e lhe roubou um selinho enquanto caminhava com alguma dificuldade do tornozelo já bem menos inchado e pegava uma lata de achocolatado e duas xícaras além duma caixa de leite semi-desnatado - Caiu da cama?
- Nunca durmo muito, tento levar nos finais de semana a mesma rotina de acordar da semana, aí não sofro tanto na segunda-feira - Solicita ela tomou as xícaras da mão de Fernando e levou até a mesa - Agora como você vive sem café?
- Ah não, lá vem você de novo com isso.
Riram. Era uma ótima fuga, enquanto por fora conversavam amenidades sobre temperos e o tornozelo de Fernando, Bethina pensava em formas de sair dali o quanto antes, sem aquele confronto que queria fazer. Sabia que mais cedo ou mais tarde isso aconteceria, se conhecia a ponto de saber que logo ia falar. Por isso seu novo plano teria que dar certo agora.
- Bom, Fernando, eu vou indo então... - ela se esticou olhando o tornozelo dele, agora parecia algo pouco menos que uma bola de tênis - ... já sei que você vai ficar em boas mãos.
- Vou? - Ele a olhou com estranhamento - Como assim?
- Você não disse, eu também não perguntei... mas é meio óbvio que você tem alguém né.
- Claro que não - Fernando seguia com a cara desconfiada, ainda sem ter acordado completamente e em uma inocência - Não tô entendendo nada.
- Olha, Fernando, tudo bem, relaxa. - Ela se levantou - Sei que tem alguém que pode voltar a qualquer momento e...
- ... E não tem não - Com o passo cambaleante ele se aproximou - De onde tirou essa ideia?
- As roupas no varal, a casa limpa... - internamente ela sentia o coração despedaçar, mas era preciso tirar logo antes que a coisa ganhasse um contorno maior e se tornasse mais difícil de sair - ... fora as ropas no guarda-roupa, cara, é óbvio que você tem alguém!
- Quando foi que... - Ao mesmo tempo que Fernando queria que Bethina ficasse com ele porque ele também nutria algum sentimento por ela, tinha a ciência de que não poderia, sabia que ela não entenderia o crossdressismo e acharia que ele era qualquer coisa, menos um fetichista, alguém que apenas curtia as roupas e uma ou outra ação, mas na maior parte do tempo tinha mais desejos por mulheres do que por qualquer outra coisa - ... Você fuçou meu apartamento inteiro?
- Fucei sim - O tom de voz agora ganhava um tom tremido, nitidamente uma mágoa - agora vou nessa, se cuida.
E Bethina saiu pegando a bolsa e saindo porta afora. No elevador segurou as lágrimas que queriam cair a todo custo, enquanto o diminuto transporte seguia para o saguão chamou um carro pelo aplicativo que, esse sim, viu as lágrimas da jovem no trajeto até o apartamento dela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comenta aí ;)