quinta-feira, 5 de setembro de 2019

CdF: Arrumação

Aquele feriado foi  tudo que tanto a empresa quanto Freya precisavam para voltar cem porcento focados. Enquanto trabalhava em sua mesa tentava equilibrar a dor que havia ficado em uma de suas nádegas na sessão de final de semana. Gostava disso mesmo que lhe proporcionasse algum desconforto no dia-a-dia.

Se espreguiçou pensando em dar uma passada na comunicação ver como estavam as coisas, ver aqueles viciados em cafeína queriam algo mais. Riu do pensamento enquanto lembrava que lá estava Fernando, uma eterna incógnita frente tudo que ela, dona Rafaela e Vali viviam. Enquanto se levantava para ir à ronda viu o horário. Pouco além do meio-dia. Rafaela estava ocupada conversando a sós com investidores via vídeo chamada e sabia, por experiência própria que não deveria interromper sua senhora nesses momentos, ainda mais com algo tão mundano como comer.

Estalava o pescoço ora para a esquerda, ora para a direita quando viu, de esguelha, um vulto passando para o terraço. A submissa sabia que Fernando gostava de ficar ali no pós-almoço, aproveitaria para pegar um ar enquanto via se ele e o setor precisava de algo. Perfeito. Ou quase, afinal, subir escadas com salto, mesmo para ela, era algo a ser feito em ritmo mais lento. Sorriu de canto enquanto lembrava de como era molecona quando conheceu Rafaela, raramente usava salto... tempos estranhos.

Conforme se aproximava do clarão que a porta aberta gerava ouvia alguns grunhidos baixos que lembravam choro. Seu instinto disse para acelerar o passo, afinal, choro e locais altos não combinam. Ainda mais dado o histórico de Fernando. Ponderou chamar ajuda, afinal, mesmo com a academia que fazia não sabia se teria força física suficiente para segurar um homem com mais de um e oitenta que, apesar do crossdressismo, tinha um porte avantajado.

Ficou cega pelo excesso de luz não mais que um par de segundos enquanto era guiada pelo som. Conforme a visão voltava ao normal o vulto em nada lembrava de quem ela achava ser. Teve de forçar um pouco a memória para lembrar de Bethina, talentosa designer contratada nos primeiros dias do ano, ela havia deixado currículo no apagar das luzes de dezembro e coube à Freya entrevistá-la. Se não lhe falhava a memória ela e Fernando faziam uma ótima dupla de criação que garantia ao setor de comunicação da empresa uma desenvoltura ágil e sempre focada nos assuntos que estavam bombando, o que justificou o bom aumento de engajamento das redes sociais da empresa.

Por um instante ficou em dúvida sobre se aproximar ou não. "Girls support girls" pensou. Bethina estava abraçada aos joelhos, calça jeans normal, tênis all star, uma jaqueta fina por cima de uma blusa discreta de personagem de quadrinhos. Freya era quase o oposto: sapato de salto, uma saia midi marrom claro, uma camisa branca de botões com paletó um tom mais escuro que a saia e a coleira discreta que sempre usava como prova de que ela tinha dona.

- Oi... - Freya não sabia como começar, tanto tempo ignorando pessoas chorando ora de dor, ora de prazer que perdeu o tato - ... Tudo bem?

- Ai - Bethina enxugou o rosto com a manga da blusa - Desculpa dona Freya eu...

- Relaxa - Por dois pares de segundos ficou admirando o termo "dona Freya", era imponente - Achei que era outra pessoa... enfim, tá tudo bem? Não pude deixar de te ver chorando.

- Não sei sabe? - Bethina respirou fundo - Você já teve a sensação de conhecer uma pessoa que é a ideal pra você e do nada descobre que ela mente?

- Sei sim - Freya mentiu, mas não era o momento de ser a aprendiz de dominadora, era hora de ser empática - Aconteceu contigo?

- Foi... - a resposta foi dada em um fade out que foi se perdendo no ar até que a designer ficasse apenas com o olhar perdido no horizonte com os lábios afastados - ... doi né?

- Doi sim - "Pobre menina, mal sabe o quê é dor" pensava Freya evitando apoiar o quadril inteiro no banco de concreto - Quer falar sobre?

- Não... não quero te incomodar dona Freya.

- Fala - Já não tinha fome mesmo, então ponderou que bater papo com uma pessoa humana, com problemas humanos lhe desse alguma nova experiência, quem sabe lhe inspirasse em voltar a escrever poesias - Não precisa disso de "dona", pode falar.

- Então... - Era a brecha que Bethina queria para poder desabafar com alguém, tinha passado o final de semana inteiro remoendo toda aquela situação que havia tido com Fernando e precisava de alguém pra desabafar, colocar tudo pra fora - ... Esses dias saí com uma pessoa que estou afim sabe? Só que ele não me disse que era comprometido nem nada, aí quando descobri me senti enganada.

- Nossa - Freya quase bocejou frente ao dilema da jovem e lembrou da abertura daqueles programas sensacionalistas que Vali às vezes assiste "pessoas reais vivendo a emoção de toda uma vida" e teve que disfarçar sutilmente o riso, para que não fosse flagrada incentivou a continuação da narrativa - E como você descobriu?

- Eu achei o apartamento muito arrumadinho sabe? Cozinha limpa, banheiro limpo, roupas no varal... aliás - Bethina ganhou ânimo em falar - falar em varal, acredita que ele teve a pachorra de me dizer que tinha lavado roupa da vizinha porque a máquina de lavar dela tinha quebrado e por isso tinha umas saias, um vestido e uma camisola carerríma no varal? - Ela tomou um fôlego - Claro, essa história até era plausível, eu mesma já lavei roupa pra vizinho e tals... mas o pior foi quando eu fucei o guarda-roupas, posso ter feito coisa errada, mas é uma auto-proteção que tenho, sempre tento descobrir o máximo possível das pessoas que me relaciono até pra me precaver de surpresas futuras.

- Tá certa - Algo na cabeça de Freya lhe dizia que ela já sabia onde essa história acabaria - Mas e o que tinha no guarda-roupas?

- De um lado roupas normais dele e do outro cheio de roupas de mulher, saias, vestidos, sapatos...

- E o que ele disse? - Ela já tinha uma ideia mais bem formada, ou era só uma grande coincidência - Tentou se explicar?

- Ah, nem sei, fiquei tão puta da cara que saí de lá, ele até mandou mensagem querendo conversar, ligou umas duas vezes... mas nem dei bola.

- Desculpa a indiscrição... - Era hora de ver se a dúvida de Freya se tornaria verdade - É alguém que eu conheço?

- É... - Bethina teve um estalo de que talvez isso fosse proibido na empresa - Talvez... eu não quero complicar a pessoa...

- É aqui da empresa? - Estava esquentando - Quero dizer, se for não estou aqui pra julgar... você não está falando com a dona Freya, está falando com uma amiga - A submissa tomou a mão de Bethina na sua - Pode confiar.

- Tá bem... - A jovem respirou fundo - É o Fernando, ali da comunicação...

- Entendi - Freya sorriu de forma sincera, ela entendeu tudo que havia acontecido, mas não podia se intrometer no fato dele não ter falado nada sobre o crossdressismo, essa decisão era dele - Tu devias falar com ele - Tinha que se controlar pra não falar tudo - Dá uma pressionada... aposto que ele fala.

- É?

- É sim, se você gosta dele como parece, pressiona.

- Você tem razão - Bethina se lembrou com quem falava - Digo, a senhora tem razão... vou fazer isso, obrigada!

- Não por isso - Freya se sentiu estranhamente bem em dar uma de cupido, mas ela sabia que Fernando tinha que ter alguém e esse alguém parecia se desenhar na jovem designer. - Fica bem, qualquer coisa sabe onde me encontrar.

A aspirante à senhora saiu caminhando com passos lentos e se sentindo mais leve. Na escadaria pensava em todas as variantes e no quanto aqueles dois pareciam um casal interessantemente interessante. Ao sentar na sua mesa ponderou um instante e, com dedos ágeis, redigiu uma mensagem enviando para Fernando em seguida:

"Fernando, acho que você pode confiar nela, é boa pessoa. Abre teu coração e confia."

Passados alguns minutos a tela do aparelho se acendeu.

"Que? Do que está falando?"

Como sempre Fernando ficava evasivo quando colocado contra a parede. Freya pensou que esse era um comportamento natural ainda mais de crossdresser que precisa ter sempre uma resposta na ponta da língua pra explicar eventuais flagrantes, por isso resolveu ser direta.

"De Bethina, vocês precisam conversar. Relaxa que não vou falar pra ninguém. Se cuida."

Mensagem enviada e Rafaela chamou aos berros a submissa à sua sala. De volta aos afazeres da empresa, o dia ainda estava na metade. Mas sentia que tinha feito uma boa ação, até mesmo a dor havia lhe deixado em paz e, sem deixar sua senhora saber o motivo, sorriu ao entrar no ambiente.

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