Ver Fernanda na água, brincando de pular ondas me fazia sorrir. Puxei o ar sendo brindada pelo cheiro salgado do mar e de café. Sônia, mãe dela vinha com uma térmica e duas canecas.
- É uma pata né? - Ela se sentou ao meu lado na pedra - Posso te confessar uma coisa, minha filha?
- Claro! - Uma das xícaras veio à minha mão e logo a bebida dos deuses se fez presente - Sou toda ouvidos.
- Não fala pra ele... ela... mas eu ainda tô bem confusa com tudo isso sabe?
- Sei e te entendo perfeitamente...
- O desabafo é meu mas pode falar se quiser - Brindamos com café - Acredita que não consegui ensinar ela a beber isso aqui?
- Ah, nem me fala - Suspirei bebendo um gole e todo aquele vento gelado dissipou - Quando fui no apartamento dela eu estranhei.
- Aproveitando o ensejo - Ela bebeu um gole e a reação foi igual a minha - Como vocês se conheceram?
- A gente trabalhava na mesma empresa, papo vai, papo vem... ela é minha melhor dupla de criação, ela é, como redatora, o que eu sou como designer, nos completávamos tão bem que fomos notando afinidades e um dia ela torceu o pé e tirou uns dias de folga, quando fui lá, já com más intenções - Ri ruborizando um pouco - Acabou que nos conhecemos melhor...
- E ela já foi te falando desses... - Ela ponderou um instante - Desejos?
- Não! Isso eu fui descobrir na manhã seguinte...
- Manhã seguinte - Dona Sônia franziu o cenho - Esses jovens de hoje - Rimos - Mas continue.
- ... Então, na manhã seguinte eu fui fuçar, porque na minha cabeça eu tava 'como que um cara legal desses, bonito, com um apartamento tão bem cuidado não tem ninguém?' e cheguei no guarda-roupas, achei saias, vestidos, sapatos... - A sogra tentava achar normal, mas a situação ainda era incômoda para ela, não tiro a razão - ... Fui pro conflito, falei que ela tinha alguém e tudo mais...
- E aí? Ele... ela confessou tudo?
- Não, ficou quieta e como eu também sou sangue quente saí de lá... resumindo: o stress da situação fez meu apêndice estourar e fui às pressas pro hospital, fiquei quase uma semana internada e sem conseguir falar com ela.
- Nossa senhora - Sônia deu um gole curto no café - E aí?
- Aí eu expliquei que não sumi por vontade própria, pressionei e ela assumiu tudo... foi bem... chocante... - Bebi um gole longo, puta merda como eu amo essa bebida - Por isso te entendo, sei o quanto é assustador tudo isso, ainda mais com filho, mas, com o tempo, você nota que é a mesma pessoa, não mudou, tudo o que você gostava nela está ali ainda e tem um milhão de coisas novas pra gostar... - Bebi mais um gole - Ou não, e assim é a vida.
- Nossa - Olhei para o lado e ela chorava copiosamente - Você devia trabalhar de terapeuta, leva jeito.
Nos abraçamos evitando desperdiçar o café já semi frio nas xícaras. Se para mim, que logo cedo, me descobri bissexual com preferência em meninas já foi difícil ter aceitação em casa, imagina isso, de repente o filho único vira... filha. O baque ia ser foda e era algo que ela só podia aceitar sozinha.
- Desculpa perguntar isso... - Desfizemos o abraço - Mas... a senhora é divorciada né?
- Eita - Ela enxugou a lágrima - Senhora é sua vovózinha - Rimos - Mas sim, nos separamos tem mais de dez anos...
- E o pai dela, por onde anda?
- Não sei ao certo, perdemos contato, mas a última vez que soube ele estava saindo do Uruguai e ia para o Chile, dizia querer conhecer o Atacama e quem sabe ser abduzido pela espaçonave que o trouxe...
- Sério?
- A parte da espaçonave é brincadeira, ele sempre gostou dessa coisa de alienígenas e tals - Ela sorriu um sorriso saudoso - Mas a parte do Chile sim.
- Que doideira... Ela nunca fala dele.
- Normal, o divórcio foi um tanto traumático pra ele - Ela passou a olhar o horizonte - Do nada as fundações da vida somem, até me admira que vocês estejam de anel e tudo - Olhei para meu anel - Ele sempre disse que não ia casar e tudo mais... digo, ela - Um longo suspiro - Vou demorar pra acostumar.
- Mas logo acostuma, eu precisei de uns dias pra assimilar tudo também...
- Ah, mas você é jovem - Ela se serviu de mais uma caneca de café - Vocês aprendem tudo rápido.
- Nahhh - Fiz careta - Fui fazer terapia pra aceitar bem...
- E aceitou? - Ela me olhou de canto - Quero dizer, está sendo, como dizem vocês jovens, de boa?
- Nem tanto viu, tem dias que é um pouco difícil assimilar tudo ainda...
- Se é difícil pra gente - Dona Sônia tomou um farto gole da bebida enquanto Fernanda ia saindo da água e vindo na nossa direção - Imagina pra ela - Eu não tinha resposta pra isso - Mas sei que vai cuidar bem dela.
- Sabe?
- Claro que sei.
- E como tem tanta certeza?
- Se não cuidar eu quebro sua cara - Ela me olhou rindo - Olha que imensidão de lugar pra enterrar um corpo... brincadeira, vejo que você é uma pessoa do bem, Bethina, vai ficar tudo bem.
Realmente essa viagem não era só para Fernanda, era pra mim também. O tanto de coisa que eu acabei descobrindo e encontrando aqui era, sem sombra de dúvidas, muito mais do que eu esperava. Dentro de mim uma mansidão se fazia vendo ela vindo, aspirei profundamente aquele ar delicioso. Foda-se minha cidade natal ou a Metrópole, aqui era meu novo lugar favorito no planeta. Essa senhorinha do alto dos seus sessenta e poucos anos me trouxe algo que eu não tinha, algo que eu não conseguia definir bem na bagunça que é a vida em uma grande cidade, a voz calma, a confusão em entender tudo, o café quase sem açúcar... acho que ganhei uma segunda mãe.