segunda-feira, 29 de junho de 2020

CdF s2e18: Mansidão

Ver Fernanda na água, brincando de pular ondas me fazia sorrir. Puxei o ar sendo brindada pelo cheiro salgado do mar e de café. Sônia, mãe dela vinha com uma térmica e duas canecas.

- É uma pata né? - Ela se sentou ao meu lado na pedra - Posso te confessar uma coisa, minha filha?

- Claro! - Uma das xícaras veio à minha mão e logo a bebida dos deuses se fez presente - Sou toda ouvidos.

- Não fala pra ele... ela... mas eu ainda tô bem confusa com tudo isso sabe?

- Sei e te entendo perfeitamente...

- O desabafo é meu mas pode falar se quiser - Brindamos com café - Acredita que não consegui ensinar ela a beber isso aqui?

- Ah, nem me fala - Suspirei bebendo um gole e todo aquele vento gelado dissipou - Quando fui no apartamento dela eu estranhei.

- Aproveitando o ensejo - Ela bebeu um gole e a reação foi igual a minha - Como vocês se conheceram?

- A gente trabalhava na mesma empresa, papo vai, papo vem... ela é minha melhor dupla de criação, ela é, como redatora, o que eu sou como designer, nos completávamos tão bem que fomos notando afinidades e um dia ela torceu o pé e tirou uns dias de folga, quando fui lá, já com más intenções - Ri ruborizando um pouco - Acabou que nos conhecemos melhor...

- E ela já foi te falando desses... - Ela ponderou um instante - Desejos?

- Não! Isso eu fui descobrir na manhã seguinte... 

- Manhã seguinte - Dona Sônia franziu o cenho - Esses jovens de hoje - Rimos - Mas continue.

- ... Então, na manhã seguinte eu fui fuçar, porque na minha cabeça eu tava 'como que um cara legal desses, bonito, com um apartamento tão bem cuidado não tem ninguém?' e cheguei no guarda-roupas, achei saias, vestidos, sapatos... - A sogra tentava achar normal, mas a situação ainda era incômoda para ela, não tiro a razão - ... Fui pro conflito, falei que ela tinha alguém e tudo mais...

- E aí? Ele... ela confessou tudo?

- Não, ficou quieta e como eu também sou sangue quente saí de lá... resumindo: o stress da situação fez meu apêndice estourar e fui às pressas pro hospital, fiquei quase uma semana internada e sem conseguir falar com ela.

- Nossa senhora - Sônia deu um gole curto no café - E aí?

- Aí eu expliquei que não sumi por vontade própria, pressionei e ela assumiu tudo... foi bem... chocante... - Bebi um gole longo, puta merda como eu amo essa bebida - Por isso te entendo, sei o quanto é assustador tudo isso, ainda mais com filho, mas, com o tempo, você nota que é a mesma pessoa, não mudou, tudo o que você gostava nela está ali ainda e tem um milhão de coisas novas pra gostar... - Bebi mais um gole - Ou não, e assim é a vida.

- Nossa - Olhei para o lado e ela chorava copiosamente - Você devia trabalhar de terapeuta, leva jeito.

Nos abraçamos evitando desperdiçar o café já semi frio nas xícaras. Se para mim, que logo cedo, me descobri bissexual com preferência em meninas já foi difícil ter aceitação em casa, imagina isso, de repente o filho único vira... filha. O baque ia ser foda e era algo que ela só podia aceitar sozinha.

- Desculpa perguntar isso... - Desfizemos o abraço - Mas... a senhora é divorciada né?

- Eita - Ela enxugou a lágrima - Senhora é sua vovózinha - Rimos - Mas sim, nos separamos tem mais de dez anos...

- E o pai dela, por onde anda?

- Não sei ao certo, perdemos contato, mas a última vez que soube ele estava saindo do Uruguai e ia para o Chile, dizia querer conhecer o Atacama e quem sabe ser abduzido pela espaçonave que o trouxe...

- Sério?

- A parte da espaçonave é brincadeira, ele sempre gostou dessa coisa de alienígenas e tals - Ela sorriu um sorriso saudoso - Mas a parte do Chile sim.

- Que doideira... Ela nunca fala dele.

- Normal, o divórcio foi um tanto traumático pra ele - Ela passou a olhar o horizonte - Do nada as fundações da vida somem, até me admira que vocês estejam de anel e tudo - Olhei para meu anel - Ele sempre disse que não ia casar e tudo mais... digo, ela - Um longo suspiro - Vou demorar pra acostumar.

- Mas logo acostuma, eu precisei de uns dias pra assimilar tudo também...

- Ah, mas você é jovem - Ela se serviu de mais uma caneca de café - Vocês aprendem tudo rápido.

- Nahhh - Fiz careta - Fui fazer terapia pra aceitar bem...

- E aceitou? - Ela me olhou de canto - Quero dizer, está sendo, como dizem vocês jovens, de boa?

- Nem tanto viu, tem dias que é um pouco difícil assimilar tudo ainda...

- Se é difícil pra gente - Dona Sônia tomou um farto gole da bebida enquanto Fernanda ia saindo da água e vindo na nossa direção - Imagina pra ela - Eu não tinha resposta pra isso - Mas sei que vai cuidar bem dela.

- Sabe?

- Claro que sei.

- E como tem tanta certeza?

- Se não cuidar eu quebro sua cara - Ela me olhou rindo - Olha que imensidão de lugar pra enterrar um corpo... brincadeira, vejo que você é uma pessoa do bem, Bethina, vai ficar tudo bem.

Realmente essa viagem não era só para Fernanda, era pra mim também. O tanto de coisa que eu acabei descobrindo e encontrando aqui era, sem sombra de dúvidas, muito mais do que eu esperava. Dentro de mim uma mansidão se fazia vendo ela vindo, aspirei profundamente aquele ar delicioso. Foda-se minha cidade natal ou a Metrópole, aqui era meu novo lugar favorito no planeta. Essa senhorinha do alto dos seus sessenta e poucos anos me trouxe algo que eu não tinha, algo que eu não conseguia definir bem na bagunça que é a vida em uma grande cidade, a voz calma, a confusão em entender tudo, o café quase sem açúcar... acho que ganhei uma segunda mãe.

terça-feira, 9 de junho de 2020

CdF s2 e17 - Sujeira

- E aí - Bethina se sentou do meu lado na pedra em frente do mar - Como se sente?

- Como se tivesse tirado o mundo inteiro dos meus ombros.

- Não posso dizer que sei como é, mas acho que foi mais ou menos como quando falei pra minha mãe sobre gostar de meninas...

- Somos um nicho interessante - Ri arrumando uma mecha de cabelo que o vento insistia em tirar de trás da orelha - Quer dizer, eu sou o nicho do nicho.

- Mas ela nem se acha - Ela fez careta rindo em seguida - Falando um pouquinho sério agora... fiquei muito feliz pelo passo que você deu aqui, eu imagino que era isso que faltava para que se sentisse melhor...

- Era sim - Mexi os ombros - Era tudo que eu precisava para dar o próximo passo...

- Que vai ser?

- Você sabe - Hesitei um segundo - Transicionar.

- Muito bom te ouvir falar isso, sabe?

- É?

- Sua psi falou que a voz tem um poder fundamental na aceitação e compreensão das coisas, por isso falar, com a voz é fator primordial para que tudo se encaixe... tipo quando a gente estuda pra prova e conversa sobre com alguém.

- Faz sentido.

- Claro que faz, sou eu que estou dizendo.

- Ah, bem eu que me acho né. - Rimos - 'bora tomar um banho de mar?

- Cê ta doida, menina? Ta mó frio.

- Frio?

- Tô morrendo de frio, até toparia aquele teu chá fraco agora...

- E depois eu que sou fresca - Me levantei soltando o nó do vestido na nuca e o deixando cair revelando meu maiô roxo escuro, com o canto do olho notava Bethina me olhando, resolvi provocar - Que foi?

- Que bunda linda, puta merda, se não fosse minha noiva eu ia ter que te inventar... que ódio da sua bunda.

- Falou quem tem uma bunda mais redonda que a minha.

- Calaboca, vai logo nadar antes que eu te jogue na água.

Sabia que Bethina jamais teria força para me levantar e jogar no mar, mas o vento começava a mudar de lado e logo o frio viria tornando meu banho completamente impossível, no primeiro mergulho me virei para a imensidão agradecendo tudo que estava acontecendo. Não sei quanto tempo fiquei ali, em uma espécie de oração com o oceano. Quando saía da água pude ver minha mãe se aproximar de Bethina, conversarem algo e ela sair. Fiquei encucada nadando até a pedra.

- A água não ta gelada não? - Ela sorria me vendo sair e entregando uma toalha - Você sempre esqueceu da toalha...

- Obrigada - Sequei o corpo e deixei a toalha sobre os ombros - A água tá começando a esfriar, esse inverno vai ser frio.

- Provavelmente...

- Tem algo te incomodando, dona Sônia - Sabia reconhecer as microexpressões dela - diz ae.

- Eu passei os últimos dois dias lendo sobre o que você vai fazer, li relatos de pessoas que passaram pelo processo todo e... - Ela não conteve uma lágrima - Eu não sei o que pensar sabe? Quando você me mandou mensagem dizendo que vinha passar duas semanas aqui meu coração ficou radiante e apertado duma saudade estranha, eu sentia que vinha algo aí... E quando falou que ia trazer alguém achei que ia ser... - O choro foi interrompido pela face ruborizada - ... Um outro cara.

- Ah, mãe... - Ri em meio às lágrimas - Por muito tempo eu pensei que fosse gay ou algo assim sabe? Lutei comigo mesma, cheguei a ter algumas experiências... Digamos assim exóticas... Mas no fim a que mais faz sentido, a que me acalmou o espirito é como estou hoje.

- E por que nunca me falou sobre?

- Essa é a pergunta de um milhão de dinheiros... - O frio tomou minha espinha, mordi o lábio inferior pensando em quais palavras usar, como concatenar as ideias - Em parte porque nem eu sabia onde ia chegar, qual era o objetivo disso tudo, por que eu... - Respirei fundo - E em parte porque eu sentia aqui dentro que eu devia ser alguém antes de fazer qualquer coisa, ter um bom emprego, estabilidade financeira, um canto só meu...

- ... Acho que tenho que te pedir desculpas, então.

- Como assim?

- Sempre te cobrei tudo isso antes de querer ser quem se é, sempre disse coisas como 'pra ter seu lugar tem que ser alguém primeiro' - Ela não conteve às lágrimas, muito menos eu - Você me perdoa, filho?

Não consegui responder. Tudo que fiz foi chorar e abraça-la tão forte que pouco importava se eu estava molhada ou ela tivesse me chamado de filho, era impossível pra mim mensurar a avalanche de informações que ela havia recebido nos últimos dias e tinha que lidar assim, do nada. Perdi a noção de quanto tempo se passou, sei que quando reabri os olhos já estava escuro, a noite caiu tão pesada e rápida que as estrelas já polvilhavam o céu. Desfizemos o abraço, recoloquei o vestido e fui ofereci a mão.

- Não tem nada que pedir desculpa... - Começamos a caminhar até a casa - Vai parecer presunção... Mas faz terapia um tempo, ajuda pra caralho pra colocar os pensamentos em ordem.

- É uma... - Ela apertou minha mão - Você ta fazendo?

- Tô sim, a empresa paga uma muito boa... Falando nisso, a senhorita anda se cuidando né?

- Ando sim, mas não tomo mais os remédios - Fiz menção de falar algo - Esse cenário, minha casinha, o quintal... Vale mais que qualquer terapia.

- Dona Sônia dona Sônia - Entramos no carreiro que ia até a casa - Mas pelo menos marca com a doutora Pâmela... 

- Nossa... Você foi nela um tempão atrás... É desde aquela época?

- As dúvidas e questionamentos? Sim...

Entramos no pátio sendo saudadas pelo magnífico cheiro de molho carbonara feito pela Bethina. Nadar sempre me deixou com fome. Mas antes precisava de um banho pra tirar o sal da pele.

- Arrumei uma nora prendada - Sem a menor cerimônia minha mãe abriu a porta, Bethina dançava ao som de tell'me bout it, eu já conhecia aquele nível de felicidade dela ao cozinhar - E ao que tudo indica boa dançarina.

- Bondade sua, sogrinha.

- Quer ajuda? Aliás - Dona Sônia me olhou - Vai tomar banho, criatura que eu botei no mundo.

Não ousei questionar. Afinal, mães não se questionam, se obedecem. Passei pelo quarto e peguei uma calça mais larga e uma camiseta. Afinal, estava ficando friozinho e eu não pretendia sair de novo. Era notável o quanto essa casinha evoluiu desde a última vez que estive aqui, o banheiro agora tinha azulejo até o teto, o box era novo, fora as toalhas com cheiro de amaciante. Quando aquela ágora morna molhou a primeira camada do meu corpo senti o peso completo de tudo escorrer de meus ombros e seguir pelo ralo, como se fosse sujeira saindo do corpo. Pensando assim era uma boa metáfora. Nossos medos são sujeiras. Algumas persistentes. Algumas irremovíveis. Algumas chatas. Mas todas sujeiras. Mas uma sujeira que só sai com o sabão certo.

No meu caso, as lágrimas de felicidade.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

CdF s2 e16: Oceano

Sempre torci para que esse dia não chegasse e, ao mesmo tempo, era a coisa que eu mais queria que acontecesse. Tenho certeza que se Bethina não estivesse ao meu lado eu jamais teria a coragem do que estava prestes a fazer. Desde que saímos da Metrópole eu me fechei em uma introspecção tão profunda que, todas as dúvidas que eu ainda tinha, desmanchavam-se tal qual linhas de tetris.

Sentados na mesa da cozinha, cheiro de bolo de cenoura fiz as apresentações de Bethina, falei do nosso noivado e que tínhamos planos. Minha mãe apenas sorria acompanhando tudo com uma generosa xícara de café. Mesmo sendo uma ilha era frio essa época do ano. Não sabia se queria minha cúmplice do meu lado ou não. No fim a própria disse que ia fazer uma ligação e já voltava. Esse era o momento. Eu sabia que não tinha telefonema nenhum e que ela estaria debaixo da janela ouvindo tudo e intervindo caso fosse necessário.

- A senhora não mudou nada, mãe... - Tomei a mão dela na minha - Só esse cabelo platinado.

- Gostou? Fiz luzes - Rimos - Já você... voltou ao cabelo comprido... conheceu alguém... ta trabalhando no que gosta...

- Verdade...

- ... Mas tem algo que está te incomodando - A habilidade analítica dela seguia afiada - Vai, fala.

- Eu não sei como começar essa conversa - Sorri amarelo - Na minha cabeça fiz tantos planos, tantas vezes e tantas possibilidades...

- Se não sabe como começar, vai pelo meio.

- Parece fácil... - Respirei fundo pegando o celular do bolso, achando uma das fotos daquele final de semana e mostrei para ela - ... Que acha?

- O que isso tem... - Ela olhou mais atentamente, acho que dona Sônia precisava refazer os óculos - ... é você?

- Sim.

- Ficou muito bonito... mas e o que tem a ver com o que você quer me falar?

- Então, mãe... - Respirei fundo, uma, duas, três, pensei nela como se fosse minha terapeuta, em tudo que vivi até aqui e o quanto tudo parecia reduzido nesse funil que agora não passava uma gota d'água sequer - ... Sabe, minha terapeuta disse que não seria fácil falar mas que eu precisava... até Bethina me encheu o saco pra eu definir uma data e vir aqui te falar sobre tudo isso que está acontecendo comigo.

- Continua enrolado - Ela deu um gole no café com um sorriso sincero nos lábios - Vai, um, dois e...

- ... eu não me identifico mais como menino e sim como menina - Ela parou - Nunca me identifiquei como menino sabe? Por fora eu podia até ficar mais tempo com essa aparência mais masculina, mas por dentro isso foi machucando, foi magoando, por isso que quando pintou o primeiro trabalho fora daqui eu fui sem muito planejamento sabe? Eu queria meu espaço sozinha pra pensar nisso tudo, poder fixar umas ideias na cabeça, descartar outras e chegar nesse ponto atual... eu quero viver o resto da vida como a mulher que eu sou por dentro mas, daqui pra frente, por fora também... - Respirei fundo, força - Eu sou uma mulher trans.

- Pronto - Ela lentamente pousou a xícara na mesa e se levantou vindo me abraçar, foi inevitável o choro - Eu sempre imaginei algo assim, sabia?

- S-s-sempr... - minha voz estava horrível e com a mão macia de minha mãe me acariciando os cabelos era como se toda aquela espera, todos aqueles anos esperando e planejando essa situação encontrassem aqui, nesse instante - C-c-como voc...

- Como eu sabia? - Ela deu um beijo na minha testa - As mães sempre sabem das coisas - Ela sorriu enxugando minhas lágrimas - Fora que tinha épocas que você nem tentava disfarçar... por muito tempo achei que você fosse gay, cheguei a cogitar isso...

- Quando isso?

- Lá pelos seus quatorze anos eu via que meu guarda-roupas sempre estava meio bagunçado, minhas calcinhas do avesso... primeiro pensei que fosse algo da puberdade, depois fiquei um tempo tentando entender, mas vi que você foi tomando um rumo e agora ta aí, me enchendo de orgulho...

- Orgulho?

- Lógico, você é uma pessoa de bem, não faz coisas erradas... - Outra onda de choro que fez outro abraço se fazer - ... eu só fiquei curiosa com a moça, é sua amiga ou é noiva mesmo?

- É noiva mesmo!

- Mas você acabou de dizer que é mulher...

- ... sim - Sorri ruborizando - E acho que lésbica. - Fiz uma caretinha - É meio confuso, mas eu amo ela e ela me ama.

- Ah bom, se tem amor o resto que se foda.

- Que isso, mãe.

- É a real meu filh... aliás, como eu devo te chamar daqui pra frente?

- Pode ser... Filha, Fê...

- ... Vou acabar errando às vezes, então me perdoe antecipadamente ta bem? - Ela sorriu - Sua mãe é um pouco lerda com isso... 

- Normal, todo mundo demora pra entender... 

- Pode sair daí, Bethina - Minha mãe ergueu a voz - Você é uma péssima ninja - Rimos enquanto ela saía de debaixo da janela e entrava pela porta da cozinha - Vê se faz ele feliz, digo, ela.

- Não precisa nem pedir.

- Mas e como vocês se conheceram? Aliás - Minha progenitora me olhou - Eu imagino que você queira ficar mais a vontade, não? Vai lá no quarto enquanto eu faço uma sabatina nessa moça aqui...

- Pega leve, dona Sônia.

- Vai logo - As duas falaram em uníssono e riram.

Os passos até o quarto foram como se caminhasse em um chão feito completamente e nuvens, a sensação de que aquilo era um sonho era tão intensa que me belisquei inúmeras vezes no corredor da cozinha até o que um dia já foi meu quarto e hoje era escritório e quarto de hóspedes. Ao longe ouvia as vozes, risadas e um papo fluindo tão leve que acho que as duas já eram melhores amigas de outra vida. Fechei a porta do quarto e me despi inteira. O corpo depilado. Comecei com sutiã com bojo, um calessom azul escuro e um vestido azul escuro com mangas bem curtas que tinha comprado alguns dias atrás com o objetivo de andar aqui. 

Era incrível como às vezes a gente protela coisas que na nossa mente são tempestades imensas e para os outros são apenas uma garoa fina. Diante do espelho passava uma escova rápida no cabelo só para separar os fios, da mala peguei a necessaire com base suave, com habilidade aprendida em centenas de horas de tutoriais do YouTube eu me julgava uma aprendiz, mas cobri as olheiras, fiz uma maquiagem suave am redor dos olhos, batom que deveria ser nude mas era três tons mais escuros que minha pele reforçava o contorno dos meus lábios, um brinco pequeno e nos pés o bom e velho chinelo de dedos. 

O espelho me sorriu.

Meu retorno à cozinha foi sorriso e elogios. Bethina se ofereceu para assumir as panelas enquanto eu e minha mãe caminhávamos pela praia, que tínhamos mais coisas para conversar. Essa minha noiva era abusada às vezes e o foda é que essa era uma das características que eu mais gostava nela.

E foi assim que, mais de vinte anos de enrolação viraram uma conversa que não durou meia hora e teve uma aceitação tão boa que me senti idiota por ter enrolado tanto tempo. Caminhamos em silêncio enquanto o vento gelado vindo do mar subia por minhas pernas. Durante aqueles passos diante do mar dezenas de outras perguntas vieram e todas respondidas com tanta maestria que se fosse a banca do TCC eu tiraria a maior nota possível. O mar cadenciava os questionamentos e a sua dissolução completa e, conforme falava, sentia ainda mais força para seguir adiante, cada palavra que dizia a confiança dobrava. Ao fim de mais de uma hora e com a boca seca voltamos para casa. Antes, parei um instante sozinha diante daquela imensidão. Juntei as palmas das mãos, inclinei a cabeça para frente sentindo-me abraçada pelo vento que agora era impossivelmente morno. Uma última lágrima rolou pela face. Abri os olhos.

Obrigada, Oceano.

CdF s2 e15: Mão

Eu podia sentir na mão dela a hesitação quando a voz quase robótica anunciou o nosso portão de embarque. Poderíamos ir de avião, mas a grana estava curta, mais a mais não havia voos para a cidade onde estávamos indo. Segurei firme a mão de Fernanda enquanto dava o primeiro passo com um sorriso fino nos lábios. Ela respirou fundo e deu o passo completamente fraco. Posso apostar que se eu não estivesse aqui ela não faria essa viagem, muito menos daria o salto de fé que, espero, que ela dê quando cheguemos à cidadezinha onde a mãe dela morava.

Quando entramos deixei que ela ficasse com a janela. Seriam quase dez horas de viagem, por isso cada uma trouxe sua própria playlist. Embora meu plano fosse dormir algumas dessas horas, friozinho, tão logo ganhamos a rodovia e as luzes do corredor se apagaram pude notar o silêncio dela e isso me cortava o coração. Mas não podia fazer nada agora, cada quilômetro era como uma badalada de um relógio que ela achou que nunca fosse despertar.

Fê gostava de ouvir alguns rocks pesados, podcasts de comédia e de saúde mental. Eu até gostava de alguma coisa que ela ouvia, mas minha playlist ia por algo mais introspectivo, jazz, soul, podcasts sobre política, empoderamento... coisas assim me davam ânimo e confiança no em mim mesma. Talvez por isso logo que saí da Lótus eu não tenha demorado dois dias para arranjar alguma outra coisa. Se bem que aquela mensagem da Freya me deixou encucada.

A verdade que aquele som baixo, o ar condicionado fresco e apaguei. Fui acordar já nos arredores do ponto final. Sentia a cara mais amassada que roupa depois de sair da máquina de lavar. A mão de Fernanda na minha, ela sorrindo de canto ao rever paisagens que já conhecia. Descer em uma rodoviária quase sem movimento onde aquele ônibus parecia o mais avançado da tecnologia que aquele lugar via foi a primeira sensação estranha.

- Bem-vinda a Mar Redondo, amor - Era a primeira vez desde que saímos da Metrópole que ouvia ela falar algo, aquele silêncio era ensurdecedor, porém eu entendia - Vem, vamos pegar um táxi.

- Chama pelo aplicativo...

- ... Ah, aqui não tem essas modernidades.

- Como assim? - Arrastava minha mala ao passo que Fê fazia o mesmo - Aqui está realmente no século vinte e um?

- Besta - Ela riu - Está sim, só que uma lei municipal proibiu de ter, só isso.

- Ah ta - Entramos no táxi, as duas sentadas no banco de trás, ela passou o endereço e ficamos a viagem toda em silêncio - Boa oportunidade para ganhar uns trocados aqui.

- Pode tentar, mas fora da temporada isso aqui é tão morto quanto qualquer cidade pequena.

- Mas os hotéis ainda funcionam...

- Ah sim, sempre tem viajantes.

A verdade é que a mãe dela morava em uma ilha. Não era sentido figurado, era uma ilha mesmo. Uma hora de barco do pier em frente do hotel até onde ela tinha um pequeno chalé. Boa forma de curtir a aposentadoria. Hotel horrível, mas confortável o suficiente para dormir em paz. Me surpreendi com o silêncio noturno, era quase irreal, assim como Fernanda dormindo com uma camisola... quem diria.

Com os primeiros raios de sol Fernanda despertou e fez questão de me despertar também. Pelo menos o café daqui era bastante tolerável e me acordou. Apesar do sono não queria perder esse ânimo todo que imbuiu-se da alma dela. Devo confessar que a ideia de entrar em um barco de madeira, motor barulhento, lento não me agradou nada, mas ouvi-la falar dos lugares onde brincou quando criança, do quanto gostava de pegar esse mesmo barco e passar o dia naquela ilha me convenceu de que tudo ida ficar bem.

Assim que chegamos agradeci por estar vestindo shorts e chinelos de dedo, odiaria ter que trocar de calçado na areia. Quase me lembrei de uns anos atrás quando eu fazia esse tipo de aventura com as amigas, era legal acampar, acho que logo vou bolar um acampamento e arrastar dona Fernanda, dariam ótimas fotos.

Ao longe uma figura veio se aproximando. Uma mulher, não mais que um e sessenta, cabelos brancos e brilhantes como se fossem cromados, pele bronzeada, roupa simples. Sônia. Mãe dela. Ou melhor, dele. Até que Fernanda falasse eu não podia errar e a sensação de estar andando sobre ovos era horrível. Mas ver o mar me acalmava e as ondas me diziam que tudo ia ficar bem.

Saravá, Iemanjá.