Eu podia sentir na mão dela a hesitação quando a voz quase robótica anunciou o nosso portão de embarque. Poderíamos ir de avião, mas a grana estava curta, mais a mais não havia voos para a cidade onde estávamos indo. Segurei firme a mão de Fernanda enquanto dava o primeiro passo com um sorriso fino nos lábios. Ela respirou fundo e deu o passo completamente fraco. Posso apostar que se eu não estivesse aqui ela não faria essa viagem, muito menos daria o salto de fé que, espero, que ela dê quando cheguemos à cidadezinha onde a mãe dela morava.
Quando entramos deixei que ela ficasse com a janela. Seriam quase dez horas de viagem, por isso cada uma trouxe sua própria playlist. Embora meu plano fosse dormir algumas dessas horas, friozinho, tão logo ganhamos a rodovia e as luzes do corredor se apagaram pude notar o silêncio dela e isso me cortava o coração. Mas não podia fazer nada agora, cada quilômetro era como uma badalada de um relógio que ela achou que nunca fosse despertar.
Fê gostava de ouvir alguns rocks pesados, podcasts de comédia e de saúde mental. Eu até gostava de alguma coisa que ela ouvia, mas minha playlist ia por algo mais introspectivo, jazz, soul, podcasts sobre política, empoderamento... coisas assim me davam ânimo e confiança no em mim mesma. Talvez por isso logo que saí da Lótus eu não tenha demorado dois dias para arranjar alguma outra coisa. Se bem que aquela mensagem da Freya me deixou encucada.
A verdade que aquele som baixo, o ar condicionado fresco e apaguei. Fui acordar já nos arredores do ponto final. Sentia a cara mais amassada que roupa depois de sair da máquina de lavar. A mão de Fernanda na minha, ela sorrindo de canto ao rever paisagens que já conhecia. Descer em uma rodoviária quase sem movimento onde aquele ônibus parecia o mais avançado da tecnologia que aquele lugar via foi a primeira sensação estranha.
- Bem-vinda a Mar Redondo, amor - Era a primeira vez desde que saímos da Metrópole que ouvia ela falar algo, aquele silêncio era ensurdecedor, porém eu entendia - Vem, vamos pegar um táxi.
- Chama pelo aplicativo...
- ... Ah, aqui não tem essas modernidades.
- Como assim? - Arrastava minha mala ao passo que Fê fazia o mesmo - Aqui está realmente no século vinte e um?
- Besta - Ela riu - Está sim, só que uma lei municipal proibiu de ter, só isso.
- Ah ta - Entramos no táxi, as duas sentadas no banco de trás, ela passou o endereço e ficamos a viagem toda em silêncio - Boa oportunidade para ganhar uns trocados aqui.
- Pode tentar, mas fora da temporada isso aqui é tão morto quanto qualquer cidade pequena.
- Mas os hotéis ainda funcionam...
- Ah sim, sempre tem viajantes.
A verdade é que a mãe dela morava em uma ilha. Não era sentido figurado, era uma ilha mesmo. Uma hora de barco do pier em frente do hotel até onde ela tinha um pequeno chalé. Boa forma de curtir a aposentadoria. Hotel horrível, mas confortável o suficiente para dormir em paz. Me surpreendi com o silêncio noturno, era quase irreal, assim como Fernanda dormindo com uma camisola... quem diria.
Com os primeiros raios de sol Fernanda despertou e fez questão de me despertar também. Pelo menos o café daqui era bastante tolerável e me acordou. Apesar do sono não queria perder esse ânimo todo que imbuiu-se da alma dela. Devo confessar que a ideia de entrar em um barco de madeira, motor barulhento, lento não me agradou nada, mas ouvi-la falar dos lugares onde brincou quando criança, do quanto gostava de pegar esse mesmo barco e passar o dia naquela ilha me convenceu de que tudo ida ficar bem.
Assim que chegamos agradeci por estar vestindo shorts e chinelos de dedo, odiaria ter que trocar de calçado na areia. Quase me lembrei de uns anos atrás quando eu fazia esse tipo de aventura com as amigas, era legal acampar, acho que logo vou bolar um acampamento e arrastar dona Fernanda, dariam ótimas fotos.
Ao longe uma figura veio se aproximando. Uma mulher, não mais que um e sessenta, cabelos brancos e brilhantes como se fossem cromados, pele bronzeada, roupa simples. Sônia. Mãe dela. Ou melhor, dele. Até que Fernanda falasse eu não podia errar e a sensação de estar andando sobre ovos era horrível. Mas ver o mar me acalmava e as ondas me diziam que tudo ia ficar bem.
Saravá, Iemanjá.
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