sexta-feira, 5 de junho de 2020

CdF s2 e16: Oceano

Sempre torci para que esse dia não chegasse e, ao mesmo tempo, era a coisa que eu mais queria que acontecesse. Tenho certeza que se Bethina não estivesse ao meu lado eu jamais teria a coragem do que estava prestes a fazer. Desde que saímos da Metrópole eu me fechei em uma introspecção tão profunda que, todas as dúvidas que eu ainda tinha, desmanchavam-se tal qual linhas de tetris.

Sentados na mesa da cozinha, cheiro de bolo de cenoura fiz as apresentações de Bethina, falei do nosso noivado e que tínhamos planos. Minha mãe apenas sorria acompanhando tudo com uma generosa xícara de café. Mesmo sendo uma ilha era frio essa época do ano. Não sabia se queria minha cúmplice do meu lado ou não. No fim a própria disse que ia fazer uma ligação e já voltava. Esse era o momento. Eu sabia que não tinha telefonema nenhum e que ela estaria debaixo da janela ouvindo tudo e intervindo caso fosse necessário.

- A senhora não mudou nada, mãe... - Tomei a mão dela na minha - Só esse cabelo platinado.

- Gostou? Fiz luzes - Rimos - Já você... voltou ao cabelo comprido... conheceu alguém... ta trabalhando no que gosta...

- Verdade...

- ... Mas tem algo que está te incomodando - A habilidade analítica dela seguia afiada - Vai, fala.

- Eu não sei como começar essa conversa - Sorri amarelo - Na minha cabeça fiz tantos planos, tantas vezes e tantas possibilidades...

- Se não sabe como começar, vai pelo meio.

- Parece fácil... - Respirei fundo pegando o celular do bolso, achando uma das fotos daquele final de semana e mostrei para ela - ... Que acha?

- O que isso tem... - Ela olhou mais atentamente, acho que dona Sônia precisava refazer os óculos - ... é você?

- Sim.

- Ficou muito bonito... mas e o que tem a ver com o que você quer me falar?

- Então, mãe... - Respirei fundo, uma, duas, três, pensei nela como se fosse minha terapeuta, em tudo que vivi até aqui e o quanto tudo parecia reduzido nesse funil que agora não passava uma gota d'água sequer - ... Sabe, minha terapeuta disse que não seria fácil falar mas que eu precisava... até Bethina me encheu o saco pra eu definir uma data e vir aqui te falar sobre tudo isso que está acontecendo comigo.

- Continua enrolado - Ela deu um gole no café com um sorriso sincero nos lábios - Vai, um, dois e...

- ... eu não me identifico mais como menino e sim como menina - Ela parou - Nunca me identifiquei como menino sabe? Por fora eu podia até ficar mais tempo com essa aparência mais masculina, mas por dentro isso foi machucando, foi magoando, por isso que quando pintou o primeiro trabalho fora daqui eu fui sem muito planejamento sabe? Eu queria meu espaço sozinha pra pensar nisso tudo, poder fixar umas ideias na cabeça, descartar outras e chegar nesse ponto atual... eu quero viver o resto da vida como a mulher que eu sou por dentro mas, daqui pra frente, por fora também... - Respirei fundo, força - Eu sou uma mulher trans.

- Pronto - Ela lentamente pousou a xícara na mesa e se levantou vindo me abraçar, foi inevitável o choro - Eu sempre imaginei algo assim, sabia?

- S-s-sempr... - minha voz estava horrível e com a mão macia de minha mãe me acariciando os cabelos era como se toda aquela espera, todos aqueles anos esperando e planejando essa situação encontrassem aqui, nesse instante - C-c-como voc...

- Como eu sabia? - Ela deu um beijo na minha testa - As mães sempre sabem das coisas - Ela sorriu enxugando minhas lágrimas - Fora que tinha épocas que você nem tentava disfarçar... por muito tempo achei que você fosse gay, cheguei a cogitar isso...

- Quando isso?

- Lá pelos seus quatorze anos eu via que meu guarda-roupas sempre estava meio bagunçado, minhas calcinhas do avesso... primeiro pensei que fosse algo da puberdade, depois fiquei um tempo tentando entender, mas vi que você foi tomando um rumo e agora ta aí, me enchendo de orgulho...

- Orgulho?

- Lógico, você é uma pessoa de bem, não faz coisas erradas... - Outra onda de choro que fez outro abraço se fazer - ... eu só fiquei curiosa com a moça, é sua amiga ou é noiva mesmo?

- É noiva mesmo!

- Mas você acabou de dizer que é mulher...

- ... sim - Sorri ruborizando - E acho que lésbica. - Fiz uma caretinha - É meio confuso, mas eu amo ela e ela me ama.

- Ah bom, se tem amor o resto que se foda.

- Que isso, mãe.

- É a real meu filh... aliás, como eu devo te chamar daqui pra frente?

- Pode ser... Filha, Fê...

- ... Vou acabar errando às vezes, então me perdoe antecipadamente ta bem? - Ela sorriu - Sua mãe é um pouco lerda com isso... 

- Normal, todo mundo demora pra entender... 

- Pode sair daí, Bethina - Minha mãe ergueu a voz - Você é uma péssima ninja - Rimos enquanto ela saía de debaixo da janela e entrava pela porta da cozinha - Vê se faz ele feliz, digo, ela.

- Não precisa nem pedir.

- Mas e como vocês se conheceram? Aliás - Minha progenitora me olhou - Eu imagino que você queira ficar mais a vontade, não? Vai lá no quarto enquanto eu faço uma sabatina nessa moça aqui...

- Pega leve, dona Sônia.

- Vai logo - As duas falaram em uníssono e riram.

Os passos até o quarto foram como se caminhasse em um chão feito completamente e nuvens, a sensação de que aquilo era um sonho era tão intensa que me belisquei inúmeras vezes no corredor da cozinha até o que um dia já foi meu quarto e hoje era escritório e quarto de hóspedes. Ao longe ouvia as vozes, risadas e um papo fluindo tão leve que acho que as duas já eram melhores amigas de outra vida. Fechei a porta do quarto e me despi inteira. O corpo depilado. Comecei com sutiã com bojo, um calessom azul escuro e um vestido azul escuro com mangas bem curtas que tinha comprado alguns dias atrás com o objetivo de andar aqui. 

Era incrível como às vezes a gente protela coisas que na nossa mente são tempestades imensas e para os outros são apenas uma garoa fina. Diante do espelho passava uma escova rápida no cabelo só para separar os fios, da mala peguei a necessaire com base suave, com habilidade aprendida em centenas de horas de tutoriais do YouTube eu me julgava uma aprendiz, mas cobri as olheiras, fiz uma maquiagem suave am redor dos olhos, batom que deveria ser nude mas era três tons mais escuros que minha pele reforçava o contorno dos meus lábios, um brinco pequeno e nos pés o bom e velho chinelo de dedos. 

O espelho me sorriu.

Meu retorno à cozinha foi sorriso e elogios. Bethina se ofereceu para assumir as panelas enquanto eu e minha mãe caminhávamos pela praia, que tínhamos mais coisas para conversar. Essa minha noiva era abusada às vezes e o foda é que essa era uma das características que eu mais gostava nela.

E foi assim que, mais de vinte anos de enrolação viraram uma conversa que não durou meia hora e teve uma aceitação tão boa que me senti idiota por ter enrolado tanto tempo. Caminhamos em silêncio enquanto o vento gelado vindo do mar subia por minhas pernas. Durante aqueles passos diante do mar dezenas de outras perguntas vieram e todas respondidas com tanta maestria que se fosse a banca do TCC eu tiraria a maior nota possível. O mar cadenciava os questionamentos e a sua dissolução completa e, conforme falava, sentia ainda mais força para seguir adiante, cada palavra que dizia a confiança dobrava. Ao fim de mais de uma hora e com a boca seca voltamos para casa. Antes, parei um instante sozinha diante daquela imensidão. Juntei as palmas das mãos, inclinei a cabeça para frente sentindo-me abraçada pelo vento que agora era impossivelmente morno. Uma última lágrima rolou pela face. Abri os olhos.

Obrigada, Oceano.

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