terça-feira, 9 de junho de 2020

CdF s2 e17 - Sujeira

- E aí - Bethina se sentou do meu lado na pedra em frente do mar - Como se sente?

- Como se tivesse tirado o mundo inteiro dos meus ombros.

- Não posso dizer que sei como é, mas acho que foi mais ou menos como quando falei pra minha mãe sobre gostar de meninas...

- Somos um nicho interessante - Ri arrumando uma mecha de cabelo que o vento insistia em tirar de trás da orelha - Quer dizer, eu sou o nicho do nicho.

- Mas ela nem se acha - Ela fez careta rindo em seguida - Falando um pouquinho sério agora... fiquei muito feliz pelo passo que você deu aqui, eu imagino que era isso que faltava para que se sentisse melhor...

- Era sim - Mexi os ombros - Era tudo que eu precisava para dar o próximo passo...

- Que vai ser?

- Você sabe - Hesitei um segundo - Transicionar.

- Muito bom te ouvir falar isso, sabe?

- É?

- Sua psi falou que a voz tem um poder fundamental na aceitação e compreensão das coisas, por isso falar, com a voz é fator primordial para que tudo se encaixe... tipo quando a gente estuda pra prova e conversa sobre com alguém.

- Faz sentido.

- Claro que faz, sou eu que estou dizendo.

- Ah, bem eu que me acho né. - Rimos - 'bora tomar um banho de mar?

- Cê ta doida, menina? Ta mó frio.

- Frio?

- Tô morrendo de frio, até toparia aquele teu chá fraco agora...

- E depois eu que sou fresca - Me levantei soltando o nó do vestido na nuca e o deixando cair revelando meu maiô roxo escuro, com o canto do olho notava Bethina me olhando, resolvi provocar - Que foi?

- Que bunda linda, puta merda, se não fosse minha noiva eu ia ter que te inventar... que ódio da sua bunda.

- Falou quem tem uma bunda mais redonda que a minha.

- Calaboca, vai logo nadar antes que eu te jogue na água.

Sabia que Bethina jamais teria força para me levantar e jogar no mar, mas o vento começava a mudar de lado e logo o frio viria tornando meu banho completamente impossível, no primeiro mergulho me virei para a imensidão agradecendo tudo que estava acontecendo. Não sei quanto tempo fiquei ali, em uma espécie de oração com o oceano. Quando saía da água pude ver minha mãe se aproximar de Bethina, conversarem algo e ela sair. Fiquei encucada nadando até a pedra.

- A água não ta gelada não? - Ela sorria me vendo sair e entregando uma toalha - Você sempre esqueceu da toalha...

- Obrigada - Sequei o corpo e deixei a toalha sobre os ombros - A água tá começando a esfriar, esse inverno vai ser frio.

- Provavelmente...

- Tem algo te incomodando, dona Sônia - Sabia reconhecer as microexpressões dela - diz ae.

- Eu passei os últimos dois dias lendo sobre o que você vai fazer, li relatos de pessoas que passaram pelo processo todo e... - Ela não conteve uma lágrima - Eu não sei o que pensar sabe? Quando você me mandou mensagem dizendo que vinha passar duas semanas aqui meu coração ficou radiante e apertado duma saudade estranha, eu sentia que vinha algo aí... E quando falou que ia trazer alguém achei que ia ser... - O choro foi interrompido pela face ruborizada - ... Um outro cara.

- Ah, mãe... - Ri em meio às lágrimas - Por muito tempo eu pensei que fosse gay ou algo assim sabe? Lutei comigo mesma, cheguei a ter algumas experiências... Digamos assim exóticas... Mas no fim a que mais faz sentido, a que me acalmou o espirito é como estou hoje.

- E por que nunca me falou sobre?

- Essa é a pergunta de um milhão de dinheiros... - O frio tomou minha espinha, mordi o lábio inferior pensando em quais palavras usar, como concatenar as ideias - Em parte porque nem eu sabia onde ia chegar, qual era o objetivo disso tudo, por que eu... - Respirei fundo - E em parte porque eu sentia aqui dentro que eu devia ser alguém antes de fazer qualquer coisa, ter um bom emprego, estabilidade financeira, um canto só meu...

- ... Acho que tenho que te pedir desculpas, então.

- Como assim?

- Sempre te cobrei tudo isso antes de querer ser quem se é, sempre disse coisas como 'pra ter seu lugar tem que ser alguém primeiro' - Ela não conteve às lágrimas, muito menos eu - Você me perdoa, filho?

Não consegui responder. Tudo que fiz foi chorar e abraça-la tão forte que pouco importava se eu estava molhada ou ela tivesse me chamado de filho, era impossível pra mim mensurar a avalanche de informações que ela havia recebido nos últimos dias e tinha que lidar assim, do nada. Perdi a noção de quanto tempo se passou, sei que quando reabri os olhos já estava escuro, a noite caiu tão pesada e rápida que as estrelas já polvilhavam o céu. Desfizemos o abraço, recoloquei o vestido e fui ofereci a mão.

- Não tem nada que pedir desculpa... - Começamos a caminhar até a casa - Vai parecer presunção... Mas faz terapia um tempo, ajuda pra caralho pra colocar os pensamentos em ordem.

- É uma... - Ela apertou minha mão - Você ta fazendo?

- Tô sim, a empresa paga uma muito boa... Falando nisso, a senhorita anda se cuidando né?

- Ando sim, mas não tomo mais os remédios - Fiz menção de falar algo - Esse cenário, minha casinha, o quintal... Vale mais que qualquer terapia.

- Dona Sônia dona Sônia - Entramos no carreiro que ia até a casa - Mas pelo menos marca com a doutora Pâmela... 

- Nossa... Você foi nela um tempão atrás... É desde aquela época?

- As dúvidas e questionamentos? Sim...

Entramos no pátio sendo saudadas pelo magnífico cheiro de molho carbonara feito pela Bethina. Nadar sempre me deixou com fome. Mas antes precisava de um banho pra tirar o sal da pele.

- Arrumei uma nora prendada - Sem a menor cerimônia minha mãe abriu a porta, Bethina dançava ao som de tell'me bout it, eu já conhecia aquele nível de felicidade dela ao cozinhar - E ao que tudo indica boa dançarina.

- Bondade sua, sogrinha.

- Quer ajuda? Aliás - Dona Sônia me olhou - Vai tomar banho, criatura que eu botei no mundo.

Não ousei questionar. Afinal, mães não se questionam, se obedecem. Passei pelo quarto e peguei uma calça mais larga e uma camiseta. Afinal, estava ficando friozinho e eu não pretendia sair de novo. Era notável o quanto essa casinha evoluiu desde a última vez que estive aqui, o banheiro agora tinha azulejo até o teto, o box era novo, fora as toalhas com cheiro de amaciante. Quando aquela ágora morna molhou a primeira camada do meu corpo senti o peso completo de tudo escorrer de meus ombros e seguir pelo ralo, como se fosse sujeira saindo do corpo. Pensando assim era uma boa metáfora. Nossos medos são sujeiras. Algumas persistentes. Algumas irremovíveis. Algumas chatas. Mas todas sujeiras. Mas uma sujeira que só sai com o sabão certo.

No meu caso, as lágrimas de felicidade.

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