Nossa, nem dá pra acreditar que já estamos no final de mais um ano. Um ano com tantos altos e baixos, com tantas reviravoltas, provavelmente o ano com mais surpresas da minha vida. A começar por tudo que aconteceu na Lótus, Rafaela tomando um golpe que lembrou aquele que a presidenta levou alguns anos atrás, mas, como se fosse uma história escrita por alguém completamente bipolar e que vai decidindo o que acontece conforme escreve, as coisas foram se encaixando e Rafaela voltou ao posto de CEO da Lótus e recontratou a imensa maioria. Alguns já tinham achado outro emprego e preferiram ficar lá, eu confesso que quase cogitei isso, mas a volatilidade da vida de freelancer é muito grande e não quero mais isso pra vida.
Agora com relação à Fernanda o ano foi uma ascendente tão linda. Tivemos nossos momentos ruins, nossas brigas, ela dormindo no sofá, eu dormindo no sofá... nada que estragasse o sentimento. Caminhei até a geladeira, peguei uma coca gelada. Fernanda está decidida a assumir sua real personalidade e encarar tudo que isso pode acarretar, amo essa coragem dela. Bebi um gole do líquido negro do capitalismo, puta merda que coisa boa.
O caminho daqui em diante seria doloroso pra nós duas, mas eu tenho fé em meus orixás que tudo vai ser bom, que é na dor da caminhada que se valoriza a chegada. Com hoje se vão três meses que Fernanda começou com o tratamento, ela diz que sente algumas dores pequenas, nada que incomode ou estrague o dia, mas sei que ela mente mal, porque à vezes a vejo se contorcer de dor e a merda é que não tenho muito o que fazer além de me mostrar presente. A psicologa inclusive me disse isso: que é ótimo Fernanda ter alguém do lado enquanto passa por tudo isso. Ela teria uma puberdade que dura anos em um ano e meio... ia ser foda, mas a gente segura o rojão. Falar nisso... caminhei até a porta do banheiro.
- Ow princesa - Fazia quase uma hora que ela estava no banho - Assim a gente vai se atrasar.
- Tô quase acabando - A voz abafada me deixou em um misto de preocupação com curiosidade, não era raro ela se trancar no banheiro pra chorar, uma das noites no sofá foi por isso dela esconder seus sentimentos pra não me preocupar - Só escovar o cabelo... aí cê me ajuda com a maquiagem, amor?
- Claro, mas anda logo - Alarme falso, a voz estava serena - Não gosto de chegar atrasada em lugar nenhum e acredito que vai ter trânsito para um caralho até lá.
- Relaxa, dona Bethina - Ela abriu a porta e uma coluna de vapor a seguiu - Ainda temos horas pra chegar lá, além do que não é longe.
- Eu tô super relaxada, aquela sua massagem ontem foi incrível - Fernanda estava enrolada na toalha quando passou indo para o quarto - Ano que vem faz de novo?
- Ano que... - Ela fez careta fechando a porta - Já começou as piadinhas do ano que vem né.
- Ah sim, já postei no grupo das minhas primas várias desse tipo... elas até falaram de me banir.
Ri indo até o banheiro que parecia que tinha sido invadido por uma bomba de fumaça. Desembacei o espelho com a toalha e comecei a me maquiar, nada muito trabalhado, só o suficiente pra valorizar a mulher maravilhosa que eu sou. Até nisso Fernanda me influenciou, minha auto-estima subiu nos últimos tempos. Dez minutos e eu estava pronta. Vestido branco, pouco acima do joelho, decote pequeno, cabelo com os cachos todos definidos, umas pulseiras pra fazer barulho além do anel de noivado. Quando entrei na Lótus e conheci Fernanda eu não me importava muito com minha aparência, qualquer roupa servia. Camiseta, jeans, tênis baixo e pronto. Tinha muito pouca roupa de menininha. Até nisso ela me mudou... No visor do celular já eram quase vinte horas.
Voltei à sala onde calcei a sandália de salto baixo e presa no peito do pé. Bolsa em cima do sofá e estava pronta. A porta do quarto abriu como se fosse em câmera lenta. Fernanda com uma saia longa branca indo até próximo dos pés e uma blusinha dourada, nos pés uma rasteirinha completava o visual hippie-de-cidade dela. Podia jurar que era peruca aquele cabelo, mas não, essa desgraçada conseguiu deixar o cabelo liso com pequenas ondas... ou será que era um efeito dos hormônios? Vai saber.
- Me ajuda com a maquiagem, amor?
- Me dá um segundo...
- Pra que? - Ela me olhou franzindo a testa - Que foi?
- Estou admirando o quão linda é a filha da puta da minha noiva.
- Não exagera... - Senti uma onda de baixa-estima vindo nela - Não ta tanto assim...
- Calaboca - E eu sabia interromper isso, era meio passivo-agressivo, mas funcionava - Você ta maravilhosa! Quer casar comigo?
- A gente já vai casar - Pronto, o cenho dela aliviou - Agora me ajuda com a maquiagem que já estamos atrasadas...
- "Estamos atrasadas" sério? - A fiz sentar, apesar do tom era em tom de brincadeira - A princesa fica mais de uma hora no banho sendo que eu já estava pronta e eu que sou a culpada pelo nosso atraso é?
- É que você já é maravilhosa, não demora muito pra se arrumar - Ela sentou jogando o cabelo pra trás - Já eu tenho que remar muito pra chegar aos seus pés.
- Besteira - Dei um beijo na testa dela - Você é maravilhosa também.
Dito isso ela se calou enquanto eu fazia uma maquiagem suave. Uma sombra, um pouco de pó, base pra cobrir uma espinha no queixo, batom e ela estava incrível. Ninguém diria que, até meses atrás, ela era ele. Pensar nisso me trouxe uma nostalgia diferente. Me fechei um pouco na minha introspecção. O ano dela provavelmente foi mais emocionante que o meu com uma demissão e demissão cancelada. E agora estávamos as duas dentro de um carro do aplicativo. Fernanda conversava com a motorista que dizia que aquela era a última corrida da noite e que estava indo para casa onde o marido fazia a ceia de ano novo.
Conforme eu previ tinha trânsito, todo mundo queria chegar na avenida central para ver os fogos e o lugar que estávamos indo ficava no caminho. Olhei no relógio da rua e já eram passado das vinte e uma horas. O convite dizia que a ceia era depois da meia noite, após os fogos... mas sentia que a gente tinha que chegar logo. Chegamos na frente daquele prédio alto, Fernanda pagou uma bela gorjeta para a motorista enquanto eu descia. Mesmo menininha ela seguia cavalheiro... cavalheiro... cavalheira. Acho que cavalheirismo é algo além de gênero, depois pesquisaria.
- 'Bora garota - Ela desceu arrumando um eventual amassado no tecido da saia e agora era ela quem me puxava - Não quero perder a comida.
- Nossa - Despertei da minha bolha de introspecção - Depois reclama que engordou né.
- Nem engordo - Passamos pelo porteiro e entramos no elevador, o espelho do veículo evidenciou os quase vinte centímetros de diferença na altura - É culpa dos hormônios.
- Sei, aham - Falei segurando o riso - Tu que é esfomeada, isso sim!
Chegamos no último andar. A cobertura. No mesmo andar apenas mais um apartamento, com um capacho de loja barata. Fernanda tocou a campainha enquanto eu enganchava no braço dela. Uma criatura híbrida abriu a porta. Era nítidamente um homem em trajes de empregada francesa.
- E-entrem - Rafaela tinha começado um novo experimento? Olhei pra minha companheira - A senhora aguarda vocês na sacada.
- Obrigada - Fernanda agradeceu enquanto a criatura se retirava voltando para a cozinha - A Rafaela não perde tempo...
- Então...
- Yes, uma sissy - Ela sorriu enquanto caminhavamos na direção da sacada - Tem jeito.
- Você já foi assim? Quero dizer... tipo empregadinha.
- Já - Ela corou suavemente - Foi uma época pra me definir e me descobrir.
- Um dia você podia escrever um livro sobre esse rolê todo...
- Quando ficar velha, quem sabe?
Assim que chegamos na sacada foi como aquelas entradas em saloon de filmes de velho oeste. Os poucos convidados todos nos olharam, não cheguei a notar se a música parou, mas Freya e aquele outro rapaz que trabalhava para a Rafaela, se não me engano o nome era Vali, vieram em nossa direção. Cumprimentos feitos ficamos em conversas alheias, filmes, séries, a vida... nada que fosse tão grandioso.
Logo os fogos começaram a colorir o céu, ora vermelho, ora azul, ora verde, amarelo, branco, rosa, roxo... a cobertura de Rafaela ficava próximo do epicentro das festividades na Metrópole e o céu estrelado com pouca poluição dava às luzes ainda mais brilho.
Pelo segundo ano seguido Fernanda passou empoderada de si e da incrível criatura que nascia ali naqueles comprimidinhos diários. Cada nova explosão levava uma mágoa, uma dor em vê-la ter algumas reações adversas... mas fazia parte né? Senti a mão dela apertar mais a minha e só então me dei conta que estávamos com os olhos rasos em lágrimas, a tal da comunicação não-verbal que ela dizia termos. Certa vez minha mãe falou que o choro de felicidade que é compartilhado é o mais lindo que há... e não é que ela tem razão? Antes do fim das explosões que saudavam a chegada de um novo ano um beijo se fez e, a julgar pelo silêncio da sacada, não éramos o único casal agarrados reforçando laços de sentimento.
- Muito bem - Ao fim do espetáculo Rafaela se posicionou na cabeceira da mesa - Cheguem todos aqui mais perto, sentem-se - Ela pegou a taça, movimento repetido por todos os presentes - O ano que passou foi de muita provação e superação de barreiras - Notei o olhar dela à Fernanda que, com um suave inclinar lateral de cabeça agradeceu a parte que lhe cabia - Todos que estão aqui são pessoas que eu confio e quero dividir os momentos de felicidade como os de agora... - Algum buchicho se fez - Eu sei que prometi não falar de trabalho em um momento como esse... mas eu quero dividir com todos vocês, em primeira mão, que, a partir de hoje, a Lótus irá subir de patamar, nosso pioneirismo e qualidade tanto nos materiais quanto no profissional foi recompensado com o que vou dizer agora - Ela pausou, buscou o fôlego, todo esse suspense me deixava bolada - No apagar de luzes do ano saiu o resultado do edital de fornecimento de materiais pro governo do estado e nós fomos a empresa vencedora! Brindemos!
Por essa eu não esperava. Os copos se tocavam, as pessoas riam, conversavam sobre a imensa porta que se abria, definitivamente o próximo ano vai ser de muitas mudanças, a começar por Fernanda dando entrada nos documentos, seguir a terapia, a medicação e, se tudo correr bem, decidir se vai operar ou não... confesso que pra mim tanto faz, desde que ela esteja feliz e comigo eu topo tudo e agora, com a empresa decolando, topar tudo significa ao infinito e além.
Bem vindo, ano novo, hora de enterrar velhas neuras, superar velhas mágoas e seguir em frente. Como diz Fernanda, Alea jacta est.