sábado, 25 de julho de 2020

CdF s2e22 - Céu

Nossa, nem dá pra acreditar que já estamos no final de mais um ano. Um ano com tantos altos e baixos, com tantas reviravoltas, provavelmente o ano com mais surpresas da minha vida. A começar por tudo que aconteceu na Lótus, Rafaela tomando um golpe que lembrou aquele que a presidenta levou alguns anos atrás, mas, como se fosse uma história escrita por alguém completamente bipolar e que vai decidindo o que acontece conforme escreve, as coisas foram se encaixando e Rafaela voltou ao posto de CEO da Lótus e recontratou a imensa maioria. Alguns já tinham achado outro emprego e preferiram ficar lá, eu confesso que quase cogitei isso, mas a volatilidade da vida de freelancer é muito grande e não quero mais isso pra vida.

Agora com relação à Fernanda o ano foi uma ascendente tão linda. Tivemos nossos momentos ruins, nossas brigas, ela dormindo no sofá, eu dormindo no sofá... nada que estragasse o sentimento. Caminhei até a geladeira, peguei uma coca gelada. Fernanda está decidida a assumir sua real personalidade e encarar tudo que isso pode acarretar, amo essa coragem dela. Bebi um gole do líquido negro do capitalismo, puta merda que coisa boa.

O caminho daqui em diante seria doloroso pra nós duas, mas eu tenho fé em meus orixás que tudo vai ser bom, que é na dor da caminhada que se valoriza a chegada. Com hoje se vão três meses que Fernanda começou com o tratamento, ela diz que sente algumas dores pequenas, nada que incomode ou estrague o dia, mas sei que ela mente mal, porque à vezes a vejo se contorcer de dor e a merda é que não tenho muito o que fazer além de me mostrar presente. A psicologa inclusive me disse isso: que é ótimo Fernanda ter alguém do lado enquanto passa por tudo isso. Ela teria uma puberdade que dura anos em um ano e meio... ia ser foda, mas a gente segura o rojão. Falar nisso... caminhei até a porta do banheiro.

- Ow princesa - Fazia quase uma hora que ela estava no banho - Assim a gente vai se atrasar.

- Tô quase acabando - A voz abafada me deixou em um misto de preocupação com curiosidade, não era raro ela se trancar no banheiro pra chorar, uma das noites no sofá foi por isso dela esconder seus sentimentos pra não me preocupar - Só escovar o cabelo... aí cê me ajuda com a maquiagem, amor?

- Claro, mas anda logo - Alarme falso, a voz estava serena - Não gosto de chegar atrasada em lugar nenhum e acredito que vai ter trânsito para um caralho até lá.

- Relaxa, dona Bethina - Ela abriu a porta e uma coluna de vapor a seguiu - Ainda temos horas pra chegar lá, além do que não é longe.

- Eu tô super relaxada, aquela sua massagem ontem foi incrível - Fernanda estava enrolada na toalha quando passou indo para o quarto - Ano que vem faz de novo?

- Ano que... - Ela fez careta fechando a porta - Já começou as piadinhas do ano que vem né.

- Ah sim, já postei no grupo das minhas primas várias desse tipo... elas até falaram de me banir.

Ri indo até o banheiro que parecia que tinha sido invadido por uma bomba de fumaça. Desembacei o espelho com a toalha e comecei a me maquiar, nada muito trabalhado, só o suficiente pra valorizar a mulher maravilhosa que eu sou. Até nisso Fernanda me influenciou, minha auto-estima subiu nos últimos tempos. Dez minutos e eu estava pronta. Vestido branco, pouco acima do joelho, decote pequeno, cabelo com os cachos todos definidos, umas pulseiras pra fazer barulho além do anel de noivado. Quando entrei na Lótus e conheci Fernanda eu não me importava muito com minha aparência, qualquer roupa servia. Camiseta, jeans, tênis baixo e pronto. Tinha muito pouca roupa de menininha. Até nisso ela me mudou... No visor do celular já eram quase vinte horas.

Voltei à sala onde calcei a sandália de salto baixo e presa no peito do pé. Bolsa em cima do sofá e estava pronta. A porta do quarto abriu como se fosse em câmera lenta. Fernanda com uma saia longa branca indo até próximo dos pés e uma blusinha dourada, nos pés uma rasteirinha completava o visual hippie-de-cidade dela. Podia jurar que era peruca aquele cabelo, mas não, essa desgraçada conseguiu deixar o cabelo liso com pequenas ondas... ou será que era um efeito dos hormônios? Vai saber.

- Me ajuda com a maquiagem, amor?

- Me dá um segundo...

- Pra que? - Ela me olhou franzindo a testa - Que foi?

- Estou admirando o quão linda é a filha da puta da minha noiva.

- Não exagera... - Senti uma onda de baixa-estima vindo nela - Não ta tanto assim...

- Calaboca - E eu sabia interromper isso, era meio passivo-agressivo, mas funcionava - Você ta maravilhosa! Quer casar comigo?

- A gente já vai casar - Pronto, o cenho dela aliviou - Agora me ajuda com a maquiagem que já estamos atrasadas...

- "Estamos atrasadas" sério? - A fiz sentar, apesar do tom era em tom de brincadeira - A princesa fica mais de uma hora no banho sendo que eu já estava pronta e eu que sou a culpada pelo nosso atraso é? 

- É que você já é maravilhosa, não demora muito pra se arrumar - Ela sentou jogando o cabelo pra trás - Já eu tenho que remar muito pra chegar aos seus pés.

- Besteira - Dei um beijo na testa dela - Você é maravilhosa também.

Dito isso ela se calou enquanto eu fazia uma maquiagem suave. Uma sombra, um pouco de pó, base pra cobrir uma espinha no queixo, batom e ela estava incrível. Ninguém diria que, até meses atrás, ela era ele. Pensar nisso me trouxe uma nostalgia diferente. Me fechei um pouco na minha introspecção. O ano dela provavelmente foi mais emocionante que o meu com uma demissão e demissão cancelada. E agora estávamos as duas dentro de um carro do aplicativo. Fernanda conversava com a motorista que dizia que aquela era a última corrida da noite e que estava indo para casa onde o marido fazia a ceia de ano novo.

Conforme eu previ tinha trânsito, todo mundo queria chegar na avenida central para ver os fogos e o lugar que estávamos indo ficava no caminho. Olhei no relógio da rua e já eram passado das vinte e uma horas. O convite dizia que a ceia era depois da meia noite, após os fogos... mas sentia que a gente tinha que chegar logo. Chegamos na frente daquele prédio alto, Fernanda pagou uma bela gorjeta para a motorista enquanto eu descia. Mesmo menininha ela seguia cavalheiro... cavalheiro... cavalheira. Acho que cavalheirismo é algo além de gênero, depois pesquisaria.

- 'Bora garota - Ela desceu arrumando um eventual amassado no tecido da saia e agora era ela quem me puxava - Não quero perder a comida.

- Nossa - Despertei da minha bolha de introspecção - Depois reclama que engordou né.

- Nem engordo - Passamos pelo porteiro e entramos no elevador, o espelho do veículo evidenciou os quase vinte centímetros de diferença na altura - É culpa dos hormônios.

- Sei, aham - Falei segurando o riso - Tu que é esfomeada, isso sim!

Chegamos no último andar. A cobertura. No mesmo andar apenas mais um apartamento, com um capacho de loja barata. Fernanda tocou a campainha enquanto eu enganchava no braço dela. Uma criatura híbrida abriu a porta. Era nítidamente um homem em trajes de empregada francesa. 

- E-entrem - Rafaela tinha começado um novo experimento? Olhei pra minha companheira - A senhora aguarda vocês na sacada.

- Obrigada - Fernanda agradeceu enquanto a criatura se retirava voltando para a cozinha - A Rafaela não perde tempo...

- Então...

- Yes, uma sissy - Ela sorriu enquanto caminhavamos na direção da sacada - Tem jeito.

- Você já foi assim? Quero dizer... tipo empregadinha.

- Já - Ela corou suavemente - Foi uma época pra me definir e me descobrir.

- Um dia você podia escrever um livro sobre esse rolê todo...

- Quando ficar velha, quem sabe?

Assim que chegamos na sacada foi como aquelas entradas em saloon de filmes de velho oeste. Os poucos convidados todos nos olharam, não cheguei a notar se a música parou, mas Freya e aquele outro rapaz que trabalhava para a Rafaela, se não me engano o nome era Vali, vieram em nossa direção. Cumprimentos feitos ficamos em conversas alheias, filmes, séries, a vida... nada que fosse tão grandioso.

Logo os fogos começaram a colorir o céu, ora vermelho, ora azul, ora verde, amarelo, branco, rosa, roxo... a cobertura de Rafaela ficava próximo do epicentro das festividades na Metrópole e o céu estrelado com pouca poluição dava às luzes ainda mais brilho.

Pelo segundo ano seguido Fernanda passou empoderada de si e da incrível criatura que nascia ali naqueles comprimidinhos diários. Cada nova explosão levava uma mágoa, uma dor em vê-la ter algumas reações adversas... mas fazia parte né? Senti a mão dela apertar mais a minha e só então me dei conta que estávamos com os olhos rasos em lágrimas, a tal da comunicação não-verbal que ela dizia termos. Certa vez minha mãe falou que o choro de felicidade que é compartilhado é o mais lindo que há... e não é que ela tem razão? Antes do fim das explosões que saudavam a chegada de um novo ano um beijo se fez e, a julgar pelo silêncio da sacada, não éramos o único casal agarrados reforçando laços de sentimento.

- Muito bem - Ao fim do espetáculo Rafaela se posicionou na cabeceira da mesa - Cheguem todos aqui mais perto, sentem-se - Ela pegou a taça, movimento repetido por todos os presentes - O ano que passou foi de muita provação e superação de barreiras - Notei o olhar dela à Fernanda que, com um suave inclinar lateral de cabeça agradeceu a parte que lhe cabia - Todos que estão aqui são pessoas que eu confio e quero dividir os momentos de felicidade como os de agora... - Algum buchicho se fez - Eu sei que prometi não falar de trabalho em um momento como esse... mas eu quero dividir com todos vocês, em primeira mão, que, a partir de hoje, a Lótus irá subir de patamar, nosso pioneirismo e qualidade tanto nos materiais quanto no profissional foi recompensado com o que vou dizer agora - Ela pausou, buscou o fôlego, todo esse suspense me deixava bolada - No apagar de luzes do ano saiu o resultado do edital de fornecimento de materiais pro governo do estado e nós fomos a empresa vencedora! Brindemos!

Por essa eu não esperava. Os copos se tocavam, as pessoas riam, conversavam sobre a imensa porta que se abria, definitivamente o próximo ano vai ser de muitas mudanças, a começar por Fernanda dando entrada nos documentos, seguir a terapia, a medicação e, se tudo correr bem, decidir se vai operar ou não... confesso que pra mim tanto faz, desde que ela esteja feliz e comigo eu topo tudo e agora, com a empresa decolando, topar tudo significa ao infinito e além. 

Bem vindo, ano novo, hora de enterrar velhas neuras, superar velhas mágoas e seguir em frente. Como diz Fernanda, Alea jacta est.

domingo, 19 de julho de 2020

CdF s2e21: Arrumação

Nunca desejei que um final de semana passasse tão rápido. Nem mesmo o pit-stop no posto para calibrar os pneus da minha bicicleta a caminho da Lótus me fez mudar de humor e desejar tanto chegar. Assim que passei a portaria dona Vera veio me abraçar, dizer que fiz falta nas manhãs dela. Aquela teoria da Bethina de que ela nutria algum sentimento por mim cada vez fazia mais sentido, ou não, ela era uma pessoa de bom coração e temente ao deus dela, fazia o bem e sempre tinha um sorriso.

Como era de se esperar passei pela operação onde os poucos funcionários conversavam amenidades sobre o final de semana, sobre a atualização mais recente de algum jogo coreano... os nerds seguiam nerds. Cheguei no setor e Borges, em sua mesa, caneca de café preto fumegante olhava as estatísticas da rodada de futebol. Passei por ele deixando minha mochila na cadeira. Foi quanto fui notada.

- Fernando! - Tinha de aguentar mais um tempo com essa persona que não mais me pertencia - Resolveu voltar ao caos da cidade grande? - Sem nenhuma cerimônia ele me abraçou, correspondi ao gesto - Foi boa a viagem?

- ô, foi ótima - Desfizemos o abraço - Fui visitar minha mãe...

- ... E apresentar a nora pra ela?

- Basicamente. - Típico humor masculino, rimos brevemente - E como tão as coisas por aqui?

- Se arrastando... - Ele chegou mais perto olhando em volta - Mas tem algo legal rolando, ouvi dizer que...

- Eu já sei.

- Sabe?

- Claro, eu não seria da área de comunicação se não soubesse das coisas... inclusive já tenho um release pronto na cabeça, só preciso esperar o momento pra ter os detalhes exatos.

Liguei o computador sendo saudado pelo discreto papel de parede do shen-long e ícones posicionados ao redor da imagem ficando o cronograma na base do mitológico dragão. Não teria tempo de escrever nada agora. Em dois minutos tudo isso aqui ia mudar, de novo. Mesmo sendo digital eu podia ouvir o relógio em seu tic-tac, internamente o despertador tocou e veio o chamado para todos irem para a sala de reunião principal, no andar da presidência.

Saí rápido, queria estar na primeira fila para ver o que ia acontecer. Dos setores mais remotos da Lótus até aqui em cima não demoravam cinco minutos, mas tinha muita gente pra poucos elevadores, logo, quando bateram dez minutos o último técnico do setor de produtos chegou.

Henrique Arantes, homem de corpo franzino, terno mal cortado, parcialmente calvo estava no palco, microfone na mão, notebook conectado ao projetor. Começou dizendo o óbvio de que a empresa havia faturado menos do que o esperado e por isso cortes seriam necessários. Só agora tinha me dado conta de que Freya estava sentada do meu lado com seu inconfundível tailleur de grife e um belíssimo sapato loubotin com solado vermelho. Quando chegou nos gráficos extremamente mal feitos a submissa me cutucou jogando as sobrancelhas pra cima como quem diz para prestar atenção no que aconteceria dali em diante, antes que eu pudesse perguntar as duas portas do auditório se abriram atrás de nós.

- Prendam esse homem - Rafaela vinha elegante a um nível que jamais a vi, saia de couro branco colada ao corpo, meia fina, blusa preta por baixo de um blazer branco, cabelos soltos e nos pés um sapato do mesmo designer italiano - Tenho aqui as provas de que há fraude nesses balanços.

- C-como ousa entrar assim? - O atual CEO da Lótus ficou descompassado - Você foi demovida do conselho por...

- ... Por preferir o bem-estar do funcionário a um lucro absurdo para os acionistas - Dois seguranças entravam logo atrás de Rafaela no papel de Domme Rafaela que carregava uma pasta com papéis - Freya, me ajuda aqui.

- Pois não - A jovem pegou das mãos de sua senhora um pendrive que logo projetava uma apresentação super esmerada - A vontade.

- Então, meus caros funcionários - Rafaela tomou o microfone de Henrique Arantes - Eu fui retirada do conselho por dar mais vantagens a vocês do que o habitual do mercado, porém isso tudo refletia em mais produtividade, no entanto, fraudando balanços, esse homem convenceu os acionistas de que a empresa não estava dando o lucro esperado... - Ela respirou e eu puxei o celular para anotar os tópicos do futuro release - Levei alguns meses para recolher todos os documentos e conseguir me reunir com o conselho que, no final da semana passada, me reconduziu à presidencia da Lótus - Se caísse uma agulha no fundo da sala ela pareceria um disparo tamanho o silêncio que estava no ambiente - Seguranças, podem levar esse homem daqui, a viatura já o aguarda para levá-lo às mãos da justiça.

- Não ouçam essa louca - Os dois armários seguraram cada um em um braço do ex-CEO o conduzindo pelo corredor onde as expressões iam de surpresa à vingança realizada - Ela está mentindo, enganando todos vocês!

- Enfim - Logo que o homem foi conduzido para fora todos seguiam completamente perdidos e sem reação até que eu comecei um aplauso que logo ganhou força e todos aplaudiam - É muito bom ver todos vocês aqui... porém creio que faltam alguns não é mesmo? - A chave virou e a Rafaela-Domme saiu dando espaço para a versão mais humana - A partir de agora todas as demissões feitas nos últimos meses estão revogadas e eu irei, pessoalmente, entrar em contato com todos que foram demitidos propondo não só seu religamento à Lótus imediato como também um bônus pelo incômodo... - Ela sorriu dando uma sutil piscada para mim - De resto é isso, agora voltem ao trabalho... temos muita coisa pra fazer!

Os aplausos se intensificaram ganhando a companhia de alguns assobios. Ao fim daquela ovação todos voltaram aos seus postos, no elevador eu já escrevia o release com toda a velocidade para não perder nenhuma ideia que passava pela minha cabeça. Fui o último do setor a chegar, porém logo joguei o texto no computador, revisei e encaminhei para Borges dar seus toques pessoais. Mais uma revisada e o escrito rodou por todos os funcionários da comunicação antes de ser enviado à Freya que, prontamente, encaminhou à Rafaela.

A hora do almoço esse era o único assunto. Mesmo pessoas de empresas vizinhas perguntaram e a história foi se espalhando rápido. Amanhã, provavelmente, a imprensa já estaria ciente de tudo e querendo marcar entrevistas, afinal, a Lótus sempre esteve na vanguarda do ensino e da educação, era um dos tijolinhos dourados da reconstrução de tudo depois daquele governo desastroso.

Ainda tinha a chave do terraço, por isso resolvi fazer o pós-almoço lá. Meditar um pouco, agradecer aos céus tudo que havia acontecido... esse lugar aqui era um dos meus favoritos no mundo. Não era o prédio mais alto muito menos o mais bonito da região, porém sentia algo diferente nele e nem eram por minhas hortaliças. Algo místico. Foi quando o som de passos se fizeram atrás de mim, cadenciados, firmes, decididos. Dei espaço no banco.

- Senti falta desse lugar aqui... - Rafaela se sentou ao meu lado com um café daquela loja cara - Sua hortinha deu uma nova vida pra esse lugar.

- Verdade - Ela estava com o olhar sereno, típico de quem recupera o trabalho inteiro da sua vida em uma jogada de mestre - A propósito, parabéns, seu retorno triunfal foi legal de assistir.

- Gostou? - A dominadora não escondia o sorriso no canto dos lábios - Acredita que fiquei desde sábado a noite escolhendo roupa?

- Valeu a pena.

- Valeu?

- Valeu sim - A olhei com o canto do olho - Não faz muito o meu estilo, mas eu usaria numa boa.

- Me lembrarei disso quando você for minha executiva de comunicação - Ela riu - Soube que andou viajando...

- Sim, fui ver minha mãe.

- Apresentar a Bethina, imagino.

- Não só isso - Respirei fundo - Fui falar sobre tudo até aqui...

- Tudo... - Rafaela ficou pensativa um instante se virando em seguida - Tudo... Tudo?

- Tudo, falei da minha história até aqui, dos próximos passos, da transição e tudo mais.

- E ela?

- Ficou confusa - Tentei segurar uma lágrima fujona - Mas com o tempo ela vai entender...

- Vai sim, as mães sempre entendem nossas escolhas, às vezes demora um pouco, mas ao verem as crias felizes, elas entendem e aceitam... - Mordi o lábio por dentro, não queria que aquela lágrima virasse mais, Rafaela notou - Fico feliz de ter ajudado a lagarta a virar essa borboleta pronta pra voar... e quando vai ser o casamento?

- Ainda não pensamos em data.

- Quando pensar me avisa, temos uma política na empresa de dar bons presentes aos funcionários, aliás, falar nela, Bethina volta a trabalhar aqui ainda essa semana - Ela franziu a cara tentando parecer má - Não me decepcionem, nada de ficar se agarrando pelos cantos.

Gargalhamos nos levantando. Um abraço forte e tudo pareceu tão leve que o restante do dia passou voando. Logo estava em casa e depois outro dia e mais outro e Bethina ao meu lado foi como a cereja de um bolo da melhor delicatesse da Metrópole. Nem mesmo a ida à terapia nas semanas seguintes foi tão marcante e emblemática quanto aquela segunda-feira na parte final do inverno com cara de primavera.

CdF s2e20: Retorno

Viagens de ônibus sempre foram relaxantes, desde sempre, gostava de viajar, ver tudo ir ficando para trás diante dos meus olhos na janela. Não raro eu acabava dormindo e acordando já no destino. Hoje penso que os sons dentro do veículo são como ASMR que meu corpo encontra uma mansidão gostosa.

Mas, dessa vez, desejei que motorista ultrapassasse os limites de velocidade e chegasse antes. Tinha tantas coisas para resolver na Metrópole que estava quase pedindo pra ir correndo na frente, tamanha minha ansiedade. Ao meu lado Bethina cochilava com os fones enterrados na orelha. Na tela do telefone podia ver que era um dos incontáveis podcasts sobre design que ela tanto gostava de ouvir.

A cada quilômetro a quantidade de edificações deixava evidente da aproximação do destino. Já reconhecia uma ou outra silhueta de prédio, nome de rua e, quando o ônibus virou bruscamente para a direita a rodoviária se tornou uma unidade no horizonte. No mesmo instante que estacionamos Bethina acordou. Conhecendo-a como conheço sabia que ela odiava ouvir palavras nos primeiros minutos depois de despertar. Ela se espreguiçou olhando pela janela.

- Chegamos? - Fiz que sim com a cabeça - Boa menina, aprende rápido.

Ri fazendo caretinha. Ela tirou os fones enrolando e jogando na minha mochila. Fiz o mesmo. Pegamos nossas bagagens e chamamos um carro pelo aplicativo. Ambas estávamos cansadas e o motorista notou isso ficando em silêncio quase toda a viagem. A cidade com pouco trânsito fez o trajeto ser cumprido em menos de uma hora quando o normal seriam uma hora e meia.

Tiramos as malas. Subimos ao nosso andar. Abri a porta do apartamento. Bethina foi reto para o banheiro e eu fui ver se tudo estava no seu devido lugar. Mania de quem viaja achar que a casa vai mudar algo. Devia ser algum tipo de TOC ou algo semelhante. Por sorte tudo estava no seu lugar. Reboquei as malas até a lavanderia já tirando as peças e jogando na máquina de lavar.

- Tô morrendo de fome, quer uma pizza? - Bethina veio na minha direção - Aliás, você nem notou que dia é hoje né...

- Pizza é uma boa - Liguei a máquina de lavar - É domingo, amanhã já volto ao batente.

- Não coisa loira - Ela riu pegando o celular - Hoje é sexta, tem o final de semana inteiro ainda... vai tomar um banho enquanto eu peço a pizza.

Ri pegando meu telefone. Estranho, jurava que já era domingo, mas que bom. Entrei no banho e lembrei que meu pijama estava lavando. Nada muito demorado, pela diminuta janela do banheiro notei que já era noite. Ao ir pro quarto uma camisola que se estendia até abaixo dos joelhos me esperava na cama. "De volta ao normal" pensei vestindo ela. Parei um instante na frente do espelho da porta do guarda-roupas. O material não era o mais requintado, mas era confortável e deixava a impressão de não estar usando nada, além disso acompanhava um roupão para usar por cima. Escovei o cabelo displicentemente e voltei à sala. Bethina estava olhando o catálogo do serviço de Streaming.

- Sua vez, aproveita que deixei o banheiro quentinho.

- Não vou precisar de pé de pato né? - Rimos enquanto ela se levantou passando por mim - Puta merda, como você é gostosa amor, se não estivesse cansada te comia aqui mesmo.

- Cansada do que? Foi você que veio dirigindo?

- Besta - Ela me roubou um selinho - O dinheiro da pizza ta ali em cima da mesa, pedi duas e ganhei uma brotinho doce, meia chocolate e meia prestigio além do refrigerante.

- Ótimo uso dos P do marketing.

- Nossa, depois dessa vazei.

Gargalhei enquanto Bethina entrou no banheiro. Coloquei a primeira música que o YouTube me recomendou, fiquei entretida olhando o clipe e o celular tentando saber se era real e oficial o que Bethina tinha me mostrado. Mas ninguém respondia. Provavelmente estavam em suas festinhas privadas. Aproveitei pra mandar mensagem pra terapeuta que respondeu perguntando se trouxe as conchinhas dela. Pior que tinha. A música dos anos noventa só foi quebrada pela campainha. Meu coração parou por um instante. Eu precisaria atender a porta. Puta merda. Respira Fernanda, respira. Assume logo essa mulher maravilhosa que você nasceu pra ser. Um. Dois. Três. Vai. Me levantei pegando o dinheiro na mesa e arrumando o robe por cima de tudo. Destranquei a porta.

- Foi daqui que pediram uma de lombo com catupiri e outra a moda da casa? - A bolsa era muito maior que o entregador, entreguei o dinheiro e ele as pizzas, pareceu uma troca justa - Valeu, boa noite, dona.

Corei suavemente. Fiz questão de demorar alguns segundos pra fechar a porta, queria ver se ele olharia de novo. Dito e feito, uma olhada rápida por cima do ombro esquerdo me fez ser inundada por um sentimento bom. Bethina com a toalha nos cabelos assistiu toda a cena sem comentar uma só palavra. Ela trajava o pijama.

- É gostoso isso né? - Ela veio na minha direção pegando uma das caixas e o refrigerante - Essa coisa de se sentir bonita... desejada... acredito que seja algo novo pra você.

- Vou parar de ir na psicologa - Coloquei a outra caixa na mesa - Você anda manjando mais que ela.

- Não viaja, Fê - Ela já colocava os pratos na mesa - Acredito que quando vivia como menino você nunca se sentiu assim...

- Assim como?

- Bonita.

- Só nas vezes que invadia o quarto dos meus pais.

- Fazia a imagem do espelho saltar - Bethina colocou os copos e destampou as pizzas - Mas nunca teve a aprovação fora dele né...

- Pelo visto alguém andou estudando - Servi o refrigerante pra nós duas - Mas sim, até a Rafaela uns tempos atrás e, principalmente você, eu não teria chego onde cheguei... não estaria pronta nem preparada pra dar o maior salto de fé da minha vida.

- É bom te ouvir dizer isso e que bom que eu posso estar aqui pra te ajudar.

- Te amo, Bê - Tomei a mão dela na minha e dei um beijo suave - Agora 'bora comer antes que esfrie.

Jantamos conversando sobre coisas da viagem e do quanto nada mudou na nossa ausência o que comprovou, pelo menos pra nós, que sem a gente aqui o mundo não mudaria. Porém uma coisa que eu não julgava ser possível de acontecer havia acontecido no nosso período sabático. Seria mais uma virada em minha vida e, quem sabe, na de Bethina também. Mas era algo a se ver segunda-feira. Agora respirei fundo e tratei de relaxar com a escolha cinematográfica de minha cúmplice.

sábado, 18 de julho de 2020

CdF s2e19: Encaixe

A buzina do barco significou o fim daquelas pequenas férias, importantes não só para descansar como também para Fernanda colocar seus demônios sob seu controle. Tantos anos planejou àquela conversa e quando ela veio foi algo tão leve que se sentiu idiota de ter ficado tanto tempo protelando. 

Conforme o veículo se afastada do pier onde Sônia havia ficado Bethina ofereceu o colo à noiva ciente de que aqueles dias todos seriam o gás que precisava para encarar uma nova realidade. Muito embora uma mensagem, recebida no dia anterior a fez sorrir e ficar mais leve. Era algo tão incrivelmente bom que não conseguia imaginar como aconteceu, porém, assim que chegasse marcaria um café com a portadora de boas notícias. Mas esperaria chegar na Metrópole para as boas novas.

A travessia entre a ilha e o continente não costumava demorar mais do que quarenta minutos, uma hora se o mar estivesse mais agitado. Por ser fora de temporada haviam poucas pessoas na embarcação, meia dúzia de nativos, outra meia dúzia de turistas além do casal que não notava os olhares de estranhamento de um homem de idade aproximada dos cinquenta anos.

Uma vez atracado no continente todos os ocupantes desembarcaram tendo em Bethina e Fernanda os últimos a saírem do veículo. Caminhavam conversando alegremente sobre bons ensaios que fariam na próxima visita à ilha, sem nenhum pudor Fernanda dizia quais vestidos usaria e em quais horários, Bethina, por sua vez comentava ângulos de câmera, valores de exposição e detalhes técnicos. Ao sentarem para esperar o ônibus que as levaria até a cidade próxima onde passariam a noite para, só então, voltarem à Metrópole o homem não se aguentou.

- Chega a ser um desperdício uma mulher dessas com um viadão desses...

- Como é que é? - O espírito guerreiro de Bethina inflamou - Tá falando com a gente?

- Além de viadão é frouxo - o homem escarrou no chão em um ato que, na sua cabeça, significava desprezo - Não se fazem mais homens como antigamente... no meu tempo mulher minha não ia nem sair na rua com uma saia tão curta.

- Repete - Fernanda deixou a testosterona que ainda circulava nas veias dominar a ação se levantando e indo na direção do homem - Anda seu monte de bosta, repete.

- Olha só, a bichinha resolveu virar homem - O algoz gargalhava frente aos olhares perplexos do outro casal de turistas que aguardava o mesmo ônibus - Começa cortando esse cabelo, puta cabelo de viadão.

- Deixa pra lá, amor - Bethina respirou um segundo deixando o sangue esfriar - Não vale a pena brigar com um frustrado desses...

Quando Bethina deu um passo para o lado o homem passou como um vulto pelo seu lado indo na direção de Fernanda que, rememorando suas aulas de karatê na infância, desviou do golpe batendo com o ombro no queixo do agressor. Como se fosse um golpe de luta livre a morena fez posicionou as duas mãos para segurar o homem enquanto Fernanda lhe aplicava uma rasteira para, em seguida, imobilizá-lo. Toda a cena não durou mais do que dez segundos, mas para o casal foi epifania de que o relacionamento estava em perfeita sintonia.

Os outros dois que não participaram da briga, nesse meio tempo, haviam acionado a polícia que chegava para levar o homem. Queixa e flagrante. Desde que o antigo governo tinha sido varrido para fora do poder as poucas células de intolerância que restavam iam sendo dissolvidas. Os que não demonstravam aptidão em aprender a, no mínimo, aceitar que aquele tipo de pensamento não tinha mais vez no mundo atual, eram convidados a se retirar da sociedade. Soava um pouco ditatorial, mas era a única forma que o novo governo encontrou para resolver a situação diante da terra arrasada que encontrou.

Passados os instantes acalorados naquela tarde de final de julho os dois casais seguiram juntos para a cidade. Eles eram de lá mesmo, trabalhavam no setor portuário mas almejavam ir para o setor de logística ou até mesmo comunicação. Esse foi o mote para longas horas de conversa regados à boa comida e bebida gelada.

Já instaladas no hotel enquanto Fernanda estava no banho Bethina respondia às mensagens que recebia. Ao sair do banho a recém-empossada mulher quis saber o que tanto a noiva falava no celular. A morena se recusava em dar um fim às dúvidas, apenas dizia que sentia algo bom vindo no horizonte e era melhor elas dormirem pois o ônibus saía ao amanhecer.

Uma vez instaladas e ganhando a estrada Bethina não cabia dentro de si tamanha a alegria que tinha na palma da mão, Fernanda, em um lance rápido, tomou o celular da noiva e foi procurar, sob protestos, o que trazia tantos sorrisos ao rosto dela. Leu diversas mensagens aleatórias até chegar em um nome específico. Reconhecia a foto. Ousou ler.

- É sério isso?

- Sim! Seríssimo!

- Puta merda... - Fernanda não conteve as lágrimas - Motorista, acelera isso que estamos com pressa!

Nunca desejou tanto estar em um avião indo de Mar Redondo para a Metrópole. Tanta coisa para resolver e tantos quilômetros adiante, oito horas de estrada pela frente e um dia inteiro em casa para poder desarrumar as malas e lavar a roupa. Tentou enviar mensagem do seu número para a portadora de boas notícias, mas o sinal era péssimo e, entre ter uma crise de ansiedade e aprender a esperar, optou pela segunda e se deixou cochilar. Tudo estava, finalmente, se encaixando.