domingo, 19 de julho de 2020

CdF s2e20: Retorno

Viagens de ônibus sempre foram relaxantes, desde sempre, gostava de viajar, ver tudo ir ficando para trás diante dos meus olhos na janela. Não raro eu acabava dormindo e acordando já no destino. Hoje penso que os sons dentro do veículo são como ASMR que meu corpo encontra uma mansidão gostosa.

Mas, dessa vez, desejei que motorista ultrapassasse os limites de velocidade e chegasse antes. Tinha tantas coisas para resolver na Metrópole que estava quase pedindo pra ir correndo na frente, tamanha minha ansiedade. Ao meu lado Bethina cochilava com os fones enterrados na orelha. Na tela do telefone podia ver que era um dos incontáveis podcasts sobre design que ela tanto gostava de ouvir.

A cada quilômetro a quantidade de edificações deixava evidente da aproximação do destino. Já reconhecia uma ou outra silhueta de prédio, nome de rua e, quando o ônibus virou bruscamente para a direita a rodoviária se tornou uma unidade no horizonte. No mesmo instante que estacionamos Bethina acordou. Conhecendo-a como conheço sabia que ela odiava ouvir palavras nos primeiros minutos depois de despertar. Ela se espreguiçou olhando pela janela.

- Chegamos? - Fiz que sim com a cabeça - Boa menina, aprende rápido.

Ri fazendo caretinha. Ela tirou os fones enrolando e jogando na minha mochila. Fiz o mesmo. Pegamos nossas bagagens e chamamos um carro pelo aplicativo. Ambas estávamos cansadas e o motorista notou isso ficando em silêncio quase toda a viagem. A cidade com pouco trânsito fez o trajeto ser cumprido em menos de uma hora quando o normal seriam uma hora e meia.

Tiramos as malas. Subimos ao nosso andar. Abri a porta do apartamento. Bethina foi reto para o banheiro e eu fui ver se tudo estava no seu devido lugar. Mania de quem viaja achar que a casa vai mudar algo. Devia ser algum tipo de TOC ou algo semelhante. Por sorte tudo estava no seu lugar. Reboquei as malas até a lavanderia já tirando as peças e jogando na máquina de lavar.

- Tô morrendo de fome, quer uma pizza? - Bethina veio na minha direção - Aliás, você nem notou que dia é hoje né...

- Pizza é uma boa - Liguei a máquina de lavar - É domingo, amanhã já volto ao batente.

- Não coisa loira - Ela riu pegando o celular - Hoje é sexta, tem o final de semana inteiro ainda... vai tomar um banho enquanto eu peço a pizza.

Ri pegando meu telefone. Estranho, jurava que já era domingo, mas que bom. Entrei no banho e lembrei que meu pijama estava lavando. Nada muito demorado, pela diminuta janela do banheiro notei que já era noite. Ao ir pro quarto uma camisola que se estendia até abaixo dos joelhos me esperava na cama. "De volta ao normal" pensei vestindo ela. Parei um instante na frente do espelho da porta do guarda-roupas. O material não era o mais requintado, mas era confortável e deixava a impressão de não estar usando nada, além disso acompanhava um roupão para usar por cima. Escovei o cabelo displicentemente e voltei à sala. Bethina estava olhando o catálogo do serviço de Streaming.

- Sua vez, aproveita que deixei o banheiro quentinho.

- Não vou precisar de pé de pato né? - Rimos enquanto ela se levantou passando por mim - Puta merda, como você é gostosa amor, se não estivesse cansada te comia aqui mesmo.

- Cansada do que? Foi você que veio dirigindo?

- Besta - Ela me roubou um selinho - O dinheiro da pizza ta ali em cima da mesa, pedi duas e ganhei uma brotinho doce, meia chocolate e meia prestigio além do refrigerante.

- Ótimo uso dos P do marketing.

- Nossa, depois dessa vazei.

Gargalhei enquanto Bethina entrou no banheiro. Coloquei a primeira música que o YouTube me recomendou, fiquei entretida olhando o clipe e o celular tentando saber se era real e oficial o que Bethina tinha me mostrado. Mas ninguém respondia. Provavelmente estavam em suas festinhas privadas. Aproveitei pra mandar mensagem pra terapeuta que respondeu perguntando se trouxe as conchinhas dela. Pior que tinha. A música dos anos noventa só foi quebrada pela campainha. Meu coração parou por um instante. Eu precisaria atender a porta. Puta merda. Respira Fernanda, respira. Assume logo essa mulher maravilhosa que você nasceu pra ser. Um. Dois. Três. Vai. Me levantei pegando o dinheiro na mesa e arrumando o robe por cima de tudo. Destranquei a porta.

- Foi daqui que pediram uma de lombo com catupiri e outra a moda da casa? - A bolsa era muito maior que o entregador, entreguei o dinheiro e ele as pizzas, pareceu uma troca justa - Valeu, boa noite, dona.

Corei suavemente. Fiz questão de demorar alguns segundos pra fechar a porta, queria ver se ele olharia de novo. Dito e feito, uma olhada rápida por cima do ombro esquerdo me fez ser inundada por um sentimento bom. Bethina com a toalha nos cabelos assistiu toda a cena sem comentar uma só palavra. Ela trajava o pijama.

- É gostoso isso né? - Ela veio na minha direção pegando uma das caixas e o refrigerante - Essa coisa de se sentir bonita... desejada... acredito que seja algo novo pra você.

- Vou parar de ir na psicologa - Coloquei a outra caixa na mesa - Você anda manjando mais que ela.

- Não viaja, Fê - Ela já colocava os pratos na mesa - Acredito que quando vivia como menino você nunca se sentiu assim...

- Assim como?

- Bonita.

- Só nas vezes que invadia o quarto dos meus pais.

- Fazia a imagem do espelho saltar - Bethina colocou os copos e destampou as pizzas - Mas nunca teve a aprovação fora dele né...

- Pelo visto alguém andou estudando - Servi o refrigerante pra nós duas - Mas sim, até a Rafaela uns tempos atrás e, principalmente você, eu não teria chego onde cheguei... não estaria pronta nem preparada pra dar o maior salto de fé da minha vida.

- É bom te ouvir dizer isso e que bom que eu posso estar aqui pra te ajudar.

- Te amo, Bê - Tomei a mão dela na minha e dei um beijo suave - Agora 'bora comer antes que esfrie.

Jantamos conversando sobre coisas da viagem e do quanto nada mudou na nossa ausência o que comprovou, pelo menos pra nós, que sem a gente aqui o mundo não mudaria. Porém uma coisa que eu não julgava ser possível de acontecer havia acontecido no nosso período sabático. Seria mais uma virada em minha vida e, quem sabe, na de Bethina também. Mas era algo a se ver segunda-feira. Agora respirei fundo e tratei de relaxar com a escolha cinematográfica de minha cúmplice.

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