sábado, 18 de julho de 2020

CdF s2e19: Encaixe

A buzina do barco significou o fim daquelas pequenas férias, importantes não só para descansar como também para Fernanda colocar seus demônios sob seu controle. Tantos anos planejou àquela conversa e quando ela veio foi algo tão leve que se sentiu idiota de ter ficado tanto tempo protelando. 

Conforme o veículo se afastada do pier onde Sônia havia ficado Bethina ofereceu o colo à noiva ciente de que aqueles dias todos seriam o gás que precisava para encarar uma nova realidade. Muito embora uma mensagem, recebida no dia anterior a fez sorrir e ficar mais leve. Era algo tão incrivelmente bom que não conseguia imaginar como aconteceu, porém, assim que chegasse marcaria um café com a portadora de boas notícias. Mas esperaria chegar na Metrópole para as boas novas.

A travessia entre a ilha e o continente não costumava demorar mais do que quarenta minutos, uma hora se o mar estivesse mais agitado. Por ser fora de temporada haviam poucas pessoas na embarcação, meia dúzia de nativos, outra meia dúzia de turistas além do casal que não notava os olhares de estranhamento de um homem de idade aproximada dos cinquenta anos.

Uma vez atracado no continente todos os ocupantes desembarcaram tendo em Bethina e Fernanda os últimos a saírem do veículo. Caminhavam conversando alegremente sobre bons ensaios que fariam na próxima visita à ilha, sem nenhum pudor Fernanda dizia quais vestidos usaria e em quais horários, Bethina, por sua vez comentava ângulos de câmera, valores de exposição e detalhes técnicos. Ao sentarem para esperar o ônibus que as levaria até a cidade próxima onde passariam a noite para, só então, voltarem à Metrópole o homem não se aguentou.

- Chega a ser um desperdício uma mulher dessas com um viadão desses...

- Como é que é? - O espírito guerreiro de Bethina inflamou - Tá falando com a gente?

- Além de viadão é frouxo - o homem escarrou no chão em um ato que, na sua cabeça, significava desprezo - Não se fazem mais homens como antigamente... no meu tempo mulher minha não ia nem sair na rua com uma saia tão curta.

- Repete - Fernanda deixou a testosterona que ainda circulava nas veias dominar a ação se levantando e indo na direção do homem - Anda seu monte de bosta, repete.

- Olha só, a bichinha resolveu virar homem - O algoz gargalhava frente aos olhares perplexos do outro casal de turistas que aguardava o mesmo ônibus - Começa cortando esse cabelo, puta cabelo de viadão.

- Deixa pra lá, amor - Bethina respirou um segundo deixando o sangue esfriar - Não vale a pena brigar com um frustrado desses...

Quando Bethina deu um passo para o lado o homem passou como um vulto pelo seu lado indo na direção de Fernanda que, rememorando suas aulas de karatê na infância, desviou do golpe batendo com o ombro no queixo do agressor. Como se fosse um golpe de luta livre a morena fez posicionou as duas mãos para segurar o homem enquanto Fernanda lhe aplicava uma rasteira para, em seguida, imobilizá-lo. Toda a cena não durou mais do que dez segundos, mas para o casal foi epifania de que o relacionamento estava em perfeita sintonia.

Os outros dois que não participaram da briga, nesse meio tempo, haviam acionado a polícia que chegava para levar o homem. Queixa e flagrante. Desde que o antigo governo tinha sido varrido para fora do poder as poucas células de intolerância que restavam iam sendo dissolvidas. Os que não demonstravam aptidão em aprender a, no mínimo, aceitar que aquele tipo de pensamento não tinha mais vez no mundo atual, eram convidados a se retirar da sociedade. Soava um pouco ditatorial, mas era a única forma que o novo governo encontrou para resolver a situação diante da terra arrasada que encontrou.

Passados os instantes acalorados naquela tarde de final de julho os dois casais seguiram juntos para a cidade. Eles eram de lá mesmo, trabalhavam no setor portuário mas almejavam ir para o setor de logística ou até mesmo comunicação. Esse foi o mote para longas horas de conversa regados à boa comida e bebida gelada.

Já instaladas no hotel enquanto Fernanda estava no banho Bethina respondia às mensagens que recebia. Ao sair do banho a recém-empossada mulher quis saber o que tanto a noiva falava no celular. A morena se recusava em dar um fim às dúvidas, apenas dizia que sentia algo bom vindo no horizonte e era melhor elas dormirem pois o ônibus saía ao amanhecer.

Uma vez instaladas e ganhando a estrada Bethina não cabia dentro de si tamanha a alegria que tinha na palma da mão, Fernanda, em um lance rápido, tomou o celular da noiva e foi procurar, sob protestos, o que trazia tantos sorrisos ao rosto dela. Leu diversas mensagens aleatórias até chegar em um nome específico. Reconhecia a foto. Ousou ler.

- É sério isso?

- Sim! Seríssimo!

- Puta merda... - Fernanda não conteve as lágrimas - Motorista, acelera isso que estamos com pressa!

Nunca desejou tanto estar em um avião indo de Mar Redondo para a Metrópole. Tanta coisa para resolver e tantos quilômetros adiante, oito horas de estrada pela frente e um dia inteiro em casa para poder desarrumar as malas e lavar a roupa. Tentou enviar mensagem do seu número para a portadora de boas notícias, mas o sinal era péssimo e, entre ter uma crise de ansiedade e aprender a esperar, optou pela segunda e se deixou cochilar. Tudo estava, finalmente, se encaixando.

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