Nunca desejei que um final de semana passasse tão rápido. Nem mesmo o pit-stop no posto para calibrar os pneus da minha bicicleta a caminho da Lótus me fez mudar de humor e desejar tanto chegar. Assim que passei a portaria dona Vera veio me abraçar, dizer que fiz falta nas manhãs dela. Aquela teoria da Bethina de que ela nutria algum sentimento por mim cada vez fazia mais sentido, ou não, ela era uma pessoa de bom coração e temente ao deus dela, fazia o bem e sempre tinha um sorriso.
Como era de se esperar passei pela operação onde os poucos funcionários conversavam amenidades sobre o final de semana, sobre a atualização mais recente de algum jogo coreano... os nerds seguiam nerds. Cheguei no setor e Borges, em sua mesa, caneca de café preto fumegante olhava as estatísticas da rodada de futebol. Passei por ele deixando minha mochila na cadeira. Foi quanto fui notada.
- Fernando! - Tinha de aguentar mais um tempo com essa persona que não mais me pertencia - Resolveu voltar ao caos da cidade grande? - Sem nenhuma cerimônia ele me abraçou, correspondi ao gesto - Foi boa a viagem?
- ô, foi ótima - Desfizemos o abraço - Fui visitar minha mãe...
- ... E apresentar a nora pra ela?
- Basicamente. - Típico humor masculino, rimos brevemente - E como tão as coisas por aqui?
- Se arrastando... - Ele chegou mais perto olhando em volta - Mas tem algo legal rolando, ouvi dizer que...
- Eu já sei.
- Sabe?
- Claro, eu não seria da área de comunicação se não soubesse das coisas... inclusive já tenho um release pronto na cabeça, só preciso esperar o momento pra ter os detalhes exatos.
Liguei o computador sendo saudado pelo discreto papel de parede do shen-long e ícones posicionados ao redor da imagem ficando o cronograma na base do mitológico dragão. Não teria tempo de escrever nada agora. Em dois minutos tudo isso aqui ia mudar, de novo. Mesmo sendo digital eu podia ouvir o relógio em seu tic-tac, internamente o despertador tocou e veio o chamado para todos irem para a sala de reunião principal, no andar da presidência.
Saí rápido, queria estar na primeira fila para ver o que ia acontecer. Dos setores mais remotos da Lótus até aqui em cima não demoravam cinco minutos, mas tinha muita gente pra poucos elevadores, logo, quando bateram dez minutos o último técnico do setor de produtos chegou.
Henrique Arantes, homem de corpo franzino, terno mal cortado, parcialmente calvo estava no palco, microfone na mão, notebook conectado ao projetor. Começou dizendo o óbvio de que a empresa havia faturado menos do que o esperado e por isso cortes seriam necessários. Só agora tinha me dado conta de que Freya estava sentada do meu lado com seu inconfundível tailleur de grife e um belíssimo sapato loubotin com solado vermelho. Quando chegou nos gráficos extremamente mal feitos a submissa me cutucou jogando as sobrancelhas pra cima como quem diz para prestar atenção no que aconteceria dali em diante, antes que eu pudesse perguntar as duas portas do auditório se abriram atrás de nós.
- Prendam esse homem - Rafaela vinha elegante a um nível que jamais a vi, saia de couro branco colada ao corpo, meia fina, blusa preta por baixo de um blazer branco, cabelos soltos e nos pés um sapato do mesmo designer italiano - Tenho aqui as provas de que há fraude nesses balanços.
- C-como ousa entrar assim? - O atual CEO da Lótus ficou descompassado - Você foi demovida do conselho por...
- ... Por preferir o bem-estar do funcionário a um lucro absurdo para os acionistas - Dois seguranças entravam logo atrás de Rafaela no papel de Domme Rafaela que carregava uma pasta com papéis - Freya, me ajuda aqui.
- Pois não - A jovem pegou das mãos de sua senhora um pendrive que logo projetava uma apresentação super esmerada - A vontade.
- Então, meus caros funcionários - Rafaela tomou o microfone de Henrique Arantes - Eu fui retirada do conselho por dar mais vantagens a vocês do que o habitual do mercado, porém isso tudo refletia em mais produtividade, no entanto, fraudando balanços, esse homem convenceu os acionistas de que a empresa não estava dando o lucro esperado... - Ela respirou e eu puxei o celular para anotar os tópicos do futuro release - Levei alguns meses para recolher todos os documentos e conseguir me reunir com o conselho que, no final da semana passada, me reconduziu à presidencia da Lótus - Se caísse uma agulha no fundo da sala ela pareceria um disparo tamanho o silêncio que estava no ambiente - Seguranças, podem levar esse homem daqui, a viatura já o aguarda para levá-lo às mãos da justiça.
- Não ouçam essa louca - Os dois armários seguraram cada um em um braço do ex-CEO o conduzindo pelo corredor onde as expressões iam de surpresa à vingança realizada - Ela está mentindo, enganando todos vocês!
- Enfim - Logo que o homem foi conduzido para fora todos seguiam completamente perdidos e sem reação até que eu comecei um aplauso que logo ganhou força e todos aplaudiam - É muito bom ver todos vocês aqui... porém creio que faltam alguns não é mesmo? - A chave virou e a Rafaela-Domme saiu dando espaço para a versão mais humana - A partir de agora todas as demissões feitas nos últimos meses estão revogadas e eu irei, pessoalmente, entrar em contato com todos que foram demitidos propondo não só seu religamento à Lótus imediato como também um bônus pelo incômodo... - Ela sorriu dando uma sutil piscada para mim - De resto é isso, agora voltem ao trabalho... temos muita coisa pra fazer!
Os aplausos se intensificaram ganhando a companhia de alguns assobios. Ao fim daquela ovação todos voltaram aos seus postos, no elevador eu já escrevia o release com toda a velocidade para não perder nenhuma ideia que passava pela minha cabeça. Fui o último do setor a chegar, porém logo joguei o texto no computador, revisei e encaminhei para Borges dar seus toques pessoais. Mais uma revisada e o escrito rodou por todos os funcionários da comunicação antes de ser enviado à Freya que, prontamente, encaminhou à Rafaela.
A hora do almoço esse era o único assunto. Mesmo pessoas de empresas vizinhas perguntaram e a história foi se espalhando rápido. Amanhã, provavelmente, a imprensa já estaria ciente de tudo e querendo marcar entrevistas, afinal, a Lótus sempre esteve na vanguarda do ensino e da educação, era um dos tijolinhos dourados da reconstrução de tudo depois daquele governo desastroso.
Ainda tinha a chave do terraço, por isso resolvi fazer o pós-almoço lá. Meditar um pouco, agradecer aos céus tudo que havia acontecido... esse lugar aqui era um dos meus favoritos no mundo. Não era o prédio mais alto muito menos o mais bonito da região, porém sentia algo diferente nele e nem eram por minhas hortaliças. Algo místico. Foi quando o som de passos se fizeram atrás de mim, cadenciados, firmes, decididos. Dei espaço no banco.
- Senti falta desse lugar aqui... - Rafaela se sentou ao meu lado com um café daquela loja cara - Sua hortinha deu uma nova vida pra esse lugar.
- Verdade - Ela estava com o olhar sereno, típico de quem recupera o trabalho inteiro da sua vida em uma jogada de mestre - A propósito, parabéns, seu retorno triunfal foi legal de assistir.
- Gostou? - A dominadora não escondia o sorriso no canto dos lábios - Acredita que fiquei desde sábado a noite escolhendo roupa?
- Valeu a pena.
- Valeu?
- Valeu sim - A olhei com o canto do olho - Não faz muito o meu estilo, mas eu usaria numa boa.
- Me lembrarei disso quando você for minha executiva de comunicação - Ela riu - Soube que andou viajando...
- Sim, fui ver minha mãe.
- Apresentar a Bethina, imagino.
- Não só isso - Respirei fundo - Fui falar sobre tudo até aqui...
- Tudo... - Rafaela ficou pensativa um instante se virando em seguida - Tudo... Tudo?
- Tudo, falei da minha história até aqui, dos próximos passos, da transição e tudo mais.
- E ela?
- Ficou confusa - Tentei segurar uma lágrima fujona - Mas com o tempo ela vai entender...
- Vai sim, as mães sempre entendem nossas escolhas, às vezes demora um pouco, mas ao verem as crias felizes, elas entendem e aceitam... - Mordi o lábio por dentro, não queria que aquela lágrima virasse mais, Rafaela notou - Fico feliz de ter ajudado a lagarta a virar essa borboleta pronta pra voar... e quando vai ser o casamento?
- Ainda não pensamos em data.
- Quando pensar me avisa, temos uma política na empresa de dar bons presentes aos funcionários, aliás, falar nela, Bethina volta a trabalhar aqui ainda essa semana - Ela franziu a cara tentando parecer má - Não me decepcionem, nada de ficar se agarrando pelos cantos.
Gargalhamos nos levantando. Um abraço forte e tudo pareceu tão leve que o restante do dia passou voando. Logo estava em casa e depois outro dia e mais outro e Bethina ao meu lado foi como a cereja de um bolo da melhor delicatesse da Metrópole. Nem mesmo a ida à terapia nas semanas seguintes foi tão marcante e emblemática quanto aquela segunda-feira na parte final do inverno com cara de primavera.
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