sábado, 18 de janeiro de 2020

CdF s2e1: Raiz

As férias da empresa tinham sido boas e o começo do ano não prometia grandes sobressaltos além dos habituais: pessoas saindo, pessoas chegando, produtos novos, produtos saindo de cena. Curioso como estando no meu terceiro ano aqui tudo parecia entrar em uma espécie de automático, pois logo já era fevereiro, março e só me dei conta do mês quando comecei a ver ovos de páscoa no mercado e os estagiários da comunicação fizeram artes para a páscoa e pediram minha opinião.

Bethina ainda declinava da ideia de morarmos juntos. Dizia que cada um precisava do seu espaço e que ainda tinha mágoas do passado para curar. Claro que isso não impedia que, vez por outra, dormíssemos na mesma cama, fizéssemos viagens juntos, mas às vezes era estranho chegar em casa sozinho. Claro que tudo podia ser questão de tempo. Nosso relacionamento não era segredo na empresa e não afetava nossa produtividade - pelo contrário, só azeitou mais a afinidade - e como não havia reclamação dos passarinhos do galho de cima, tudo seguia em paz.

A terapia estava avançando e a decisão já estava tomada, claro que ainda não tínhamos batido o martelo e eu esperava pela opinião de outros dois psicólogos para chancelarem o "diagnóstico" e isso era demorado pois eu tinha que fazer algumas sessões com outros profissionais, contar a história toda de novo... era quase um telemarketing psiquiátrico. Ri pensando isso enquanto meditava ao lado de Bethina no terraço. 

Foi interessante como convenci ela de almoçar rápido e vir aqui pra cima meditar. Também era notável o quanto as hortaliças produzidas aqui eram de boa qualidade mesmo com a poluição da Metrópole. Metade do terraço se tornou lar de pés de alface, brócolis, cenoura, tomate, manjericão, orégano, tomilho além de morangos que só brotavam perto do final do ano. Para fazer troça Leonardo, uma espécie de valete de Rafaela, dizia que só faltava criar galinhas aqui em cima, minha vontade era perguntar se família dele iria gostar de morar aqui. Mas, claro, guardava respostas ácidas dentro de mim.

- Eu acho que você devia falar logo. - Ela abriu os olhos lentamente - Sério mesmo, quanto mais demorar pior vai ficar.

- Melhor não... - Bethina tentava me convencer de que era melhor eu falar logo para meus pais dos meus planos de transicionar gênero - ... eles não vão receber bem.

- Que não recebam ué, o que não pode é você ficar enganando eles mais tempo.

- Eu não estou enganando eles - Joguei a cabeça pra trás prendendo meu cabelo que agora já era passível de fazer um rabo-de-cavalo honesto - Estou poupando eles de...

- ... De quem você é - Abri os olhos olhando o horizonte repleto de prédios - Eu acho isso super errado cara, sério, uma coisa é você não contar pra ninguém aqui na empresa, outra coisa é não contar pros seus pais... sua família.

- Sabe que eu não tenho essa ligação toda com a família né?

- Sei e acho errado pra caralho.

- Errado por que?

- Depois de tudo que tive com o Lucca ninguém ficou do meu lado - Ela me olhava fixamente, um olhar que, devo dizer, era como um imã, pois me fez virar a cabeça e olhar para ela - Só minha mãe, ela me levou no hospital, ela me levou na delegacia, ela pegou turno dobrado pra pagar terapia pra mim por um tempo...

- Cada caso é um caso - Odiava essa história, em parte porque eu sentia o sangue subir e a vontade de fazer esse cara pagar usando de violência era imensa e, em parte, porque minha família era toda desunida mesmo - Nunca tive essa ligação toda com meus pais...

- Pois nunca é tarde pra isso, amanhã depois eles morrem e aí, fica como?

- Sei lá - O assunto estava me chateando, voltei a olhar para o panorama de edifícios - Não faço a menor ideia...

- Pois quando fizer - Ela se levantou, me deu um beijo nos cabelos - Me procura, posso até ir com você pra explicar tudo.

- Não vai rolar - Sorri de canto - Não vai rolar mesmo...

- Por besteira da sua parte né, Fernando.

- Ah sim - Me levantei me virando pra ela - E o que acha que eu devia fazer, dona Bethina? Chegar "oi mãe, então, sabe o seu filho? Ele é uma mulher trans, daqui pra frente chama ela de Fernanda e ele vai cortar o pinto fora... sabe o teu sonho de ter netos? Pois é, já era." sem chance né?

- Nossa cara - Ela balançou a cabeça negativamente - Quando quer você consegue ser escroto pra caralho.

Aquela frase havia sido pesada. Eu não tinha resposta, afastei os lábios, porém nada saiu, no entanto não adiantaria nada, pois logo em seguida ela rodou nos calcanhares e sumiu na escada que dava acesso aos andares inferiores. Joguei a cabeça para trás respirando fundo. 

Merda. 

Trinta segundos haviam se passado e eu resolvi tentar resolver a situação. A sala da comunicação estava vazia, apenas Bethina com o corpo jogado em um dos puffes parecia ocupar a sala toda com sua presença. Eu, ao contrário, me sentia pior que a mosca do coco do cavalo do bandido. Me aproximei dela já me abaixando para ficarmos na mesma altura.

- Desculpa - ofereci o dedo minimo para ela - Falei besteira.

- Sabe, cara - Ela não retribuiu o gesto, estava magoada, pois olhava para o vazio da parede - Você fala assim de família e quer que eu seja a sua família... não dá sabe? 

- Nada a ver, você...

- Eu o quê? Amanhã depois você passa a me achar complexada como sua mãe e passa a esconder coisas de mim... super entendo esconder a parada do crossdresser durante a adolescência e até sair de casa, mas agora você está em outro patamar, você é adulto, paga suas contas... está perto de mudar completamente para deixar de suprimir, pra deixar uma parte sua tão linda ver a luz e fica procurando formas de soterrar tudo isso... é meio como sua psicóloga me disse dia desses, parece que a cada vez que chega em uma raiz de problema você enterra elas cada vez mais fundo... eu tô cansada disso sabe? Quando você se decidir de mostrar pro mundo inteiro o que você é e foda-se o resto... me avisa.

Quando eu fiz menção de continuar a conversa ela se levantou do puffe, me deu um beijo na testa e se sentou no computador. Fiquei congelado naquela posição como se o beijo fosse de um dementador que sugou de mim a capacidade de locomoção. Todas as palavras tinham sido jogadas no chão como um quebra-cabeças e eu não conseguia achar a ordem correta para colocá-las. Na hora que tudo começou a se encaixar o setor voltou a ter mais pessoas tornando impossível qualquer outra conversa além de trabalho.

Respirei fundo tentando entender qual o problema que havia comigo. Por que tinha essa mania de enterrar tudo o que eu sentia? De onde vinha essa coisa de não ser eu mesmo com medo de incomodar os outros? Me reprimir para que as pessoas ficassem bem com elas mesmo. Sempre fui assim, para manter os outros em paz eu me colocava em posição inferior. Não conseguia concatenar as palavras que queria dizer à Bethina, dois metros do meu lado, tudo que pensava era apenas mais uma desculpa, mais uma fuga, mais uma pá de terra soterrando as raízes das minhas neuras. Por sorte Borges me encheu de trabalho, assim eu podia parar de pensar em quem eu sou. Ótimo.

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