sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

CdF s2e3: Prometida

Vou confessar que não gostava de fazer isso com Fernando, mas às vezes ele parecia uma criança mimada. Até concordo no começo quando ele tinha suas dúvidas quanto que caminho seguir ficar na sua, mas agora... tinha decidido, não conheço ele tempo suficiente mas sei que aquela decisão deve ter sido a mais crucial na vida dele até hoje.

"Dele", pensar no gênero masculino quando penso é natural, por fora ainda é um homem bonito, uma barba rala, um corpo relativamente largo e coxas definidas, braços okay... a única coisa que poderia denunciar algo é o cabelo, extremamente bem cuidado, sempre com cheirinho de creme de pentear, escovado e preso em um rabo-de-cavalo tão sutil que mal dava para notar que estava preso. Quando ele virava a cabeça em um movimento rápido é lindo ver aquele chicote capilar batendo no pescoço... e cá estava eu chamando de "ele" de novo.

Em parte nossa discussão veio a calhar, eu precisava de um final de semana inteiro sozinha pra pensar. Eu amo ele... ela... whatever, eu amo aquela pessoa e estou disposta a ir com ela onde ela for, só queria que ela tivesse um pouco mais de confiança, aceitasse logo tudo e fosse falar com seus pais, ou pelo menos sua mãe que parece ter um certo respeito maior, uma admiração. Por sorte Fernando tinha aprendido a respeitar esses meus espaços assim como eu respeitava os momentos de introspecção dele. A verdade é que, mesmo me magoando um pouco, eu entendia o lado dela no que tangia família e tals, só me é estranho uma família que não tem meia dúzia tudo morando perto se ajudando... Se bem que com o Lucca só minha mãe ficou perto. Talvez Fê não estivesse tão errado assim.

No começo da tarde de domingo um convite dele pra pedalarmos no parque quase me tirou de minha nuvem introspectiva. Hoje não estava com o menor saco de colocar o pé na rua. Recusei o convite. Sim, estou bem, só estou com preguiça. Merda. A merda dele é que ele era compreensível ao extremo. Um "tudo bem, qualquer coisa estou por aqui" seguido de um coraçãozinho roxo me fez suspirar como uma adolescente idiota. Como você se apaixonou por uma mulher trans hem, Bethina? Como?

Felizmente a semana começou o que tirava o tempo de conversa pro trabalho. Na hora do almoço era fácil sair com as meninas que gostavam de ir em um restaurante vegano, Fê jamais pisaria em um lugar assim... gosto de um bom bife, mas como "punição" resolvi deixar Fê no vácuo até a primeira consulta com a psicóloga. Era um auto-exílio pra mim e uma forma de pressão pra que ele tomasse uma atitude.

Na terça-feira já no final da tarde fui levar um material de páscoa que foi impresso na sala da chefia, seria algo rápido, deixava as artes com a secretária pessoal, a tal da Freya, e voltava para minha caverna ouvindo Tim Maia nos fones produzindo artes pro dia das mães... logo eu que nunca quis ser mãe. A vida é estranha. Dona Freya não estava. Podia largar as peças ali com um post-it pedindo a aprovação, mas não, dona Bethina tem que se meter onde não é chamada, por uma fresta de porta vi algo que nunca imaginei de dona Rafaela... todo aquele ar sombrio, aquela cena... será que? Fui vista. Merda. Merda. Merda. Corri pelas escadas voltando pra minha baia. Fui seguida? Acho que não.

Enfim chegou a quarta. Não que eu ache que precise de terapia agora, mas eu precisava de mais informações sobre como lidar com uma pessoa trans, o Google não pareceu uma fonte tão confiável, por isso nada melhor que a própria psicóloga dele, assim eu podia ter uns spoilers do que viria a seguir e de como eu devia lidar com tudo aquilo. "Não, Fê, vou encontrar umas amigas da faculdade, é amanhã a gente conversa melhor... sim sim, ta tudo bem entre a gente". E um beijo pra selar o que eu dizia, provavelmente eu não descendia de Eva e sim de Lilith. Enfim minha vez de entrar no consultório, já sabia o caminho.

- Bethina... certo? - Ela tomou um pequeno caderno nas mãos anotando algo - Eu já imagino o que te traz aqui... mas quero ouvir de você: o que te traz aqui?

- Então... - Suspirei jogando a cabeça para trás - Minha vida é até bem boa sabe? Tive um relacionamento ruim com um homem no passado, com agressão e o caralho a quatro - Coloquei a mão sobre a boca - Desculpa o palavreado.

- Relaxa - Ela sorriu de forma tranquila - Fala como você se sente melhor... somos adultas aqui.

Puta merda. Minha cabeça pensou em um plot daqueles pornôs vagabundos que perneiam a internet inteira. Eu me aproximaria "então somos adultas é..." e ela responderia "como assim?" e eu roubaria um beijo e transaríamos no meio do consultório. Credo. Eu devia ter alguma coisa em escorpião, depois precisava checar meu mapa astral de novo.

- Beleza - Respirei fundo - Então, depois desse relacionamento com o cara que me agredia e cumpriu dois anos e pouco por isso, eu decidi nunca mais me relacionar com homem nenhum na vida sabe? Tipo um pacto comigo mesma.

- Que forma interessante de lidar com um trauma...

- Foi a forma que consegui lidar - Dei de ombros - Mas então quando cheguei aqui... tipo, eu já tinha trabalhado como designer em algumas agências pequenas do interior, feito alguns freelas pra agências aqui da Metrópole, foi quando vi a vaga no meu atual emprego, pensei "por que não?", deu dois dias e fui contratada, isso já faz mais de um ano... - Suspirei - No começo foi bem barra porque eu até tinha morado sozinha, mas não em uma cidade tão grande.

- Aqui é tudo no superlativo né? - Ela anotou algo - Então depois daquele relacionamento abusivo você não se relacionou com ninguém?

- Claro que não - Ri corando de leve - Comecei a me relacionar só com meninas, pensa, eu devia ter uns dezesseis pra dezessete anos e já estava definindo que meu lance eram as pepekas e não as pirocas... caralho, desculpa!

- Tudo bem - Rimos enquanto ela anotava mais alguma coisa - Então você se descobriu lésbica?

- Exatamente! - Tinha curiosidade em saber o que tanto ela anotava - Mas aí apareceu, na época, o Fernando na minha frente...

- Aí fodeu de vez?

- Tirou as palavras da minha boca - Eu devia estar com aquele sorriso bobo na cara - Me apaixonei e, quando soube dos rolês de crossdresser eu fiquei meio confusa, cheguei a pensar que era pegadinha de Olodumare... mas não, era real... e pior: ele queria virar ela! Puta merda, muito sinal divino!

- E como você lida com isso?

- Ah cara... é um pouco estranho, mas é algo pra ele se sentir bem consigo mesmo saca? Já vi ele ter crises de auto-imagem e é meio punk... mesmo bem montadinha ele se olhava no espelho e via algo ruim, uma figura errada... então se for algo que vai fazer bem, eu super apoio... pelo que li na internet é um processo foda mas necessário pra transição rolar numa boa.

- Que bom que você é esclarecida... - Ela me olhou, sorriso bonito, sombra nos olhos, brinco discreto, pescoço com um colar pequeno de pérolas - E no que mais eu posso te ajudar?

- Assim... tem uma coisa que ta me irritando nele que é tipo: beleza, ele vai transicionar e virar mulher tanto por dentro quanto por fora, belê - Olhei em volta como se procurasse as palavras - O que fode é que tipo, ele ta protelando a coisa de ir falar pros pais dele sabe? E isso me incomoda profundamente, porra... como que ele vai virar mulher e não vai contar pra família de sangue?

- É realmente algo complicado sabe, Bethina - Ela grifou algo - É algo que estou tentando construir nele, ter essa confiança, esse último salto de fé, se expor sem medos, bater no peito e dizer "olha só, essa sou eu", desde algumas experiências recentes onde ele ficou montada no meio de várias pessoas em uma chácara ele dava sinais de que ia sair disso mas... regrediu um pouco, avança duas casas, volta três - A mão dela veio à minha - Acho que você tem mais influência sobre ele do que eu... insiste, faz greve, se afasta dele até ele tomar alguma atitude... eu acho que você ele vai ouvir, até mais que eu ou a... - Freio de mão - enfim, consegue isso?

- Consigo - Ela tinha segurado um nome, será que era quem eu pensava? Dammit - A senhora cutuca ele na próxima sessão... e eu sito dando um gelo.

- Perfeito! - Selamos o acordo com um aperto de mão - infelizmente por hoje nosso tempo acabou... te vejo semana que vem?

- Vê sim... é bom ter com quem conversar, desde que cheguei aqui só saí com algumas conhecidas pra falar amenidades e com Fê...

- Vai dar tudo certo - O sorriso extremamente sincero era capaz de fazer a paz mundial acontecer - Seja forte.

- Serei!

E assim acabou a minha primeira sessão de terapia. Voltei pra casa pensativa, tanto pra resolver e tão poucas ideias. Bem dizem que santo de casa não faz milagre... ou será que faz? Em uma passada rápida pelo shopping uma loja me chamou a atenção... Merda. E aquela cena de ontem? Puta que pariu. Tive uma ideia nefasta. Assim que Fernando se decidisse eu daria uma noite pra ele não esquecer. Assim que cheguei em casa avisei pra ele que tinha chego em casa e ia dormir, afinal, ainda tinham dois dias na semana. "Dorme bem, te amo". Esses redatores e suas vírgulas. 

Me senti babá na quinta-feira ensinando meia dúzia de trainee sobre a empresa, mostrando os setores, apresentando a história... graças a oxalá a Isadora - uma ruiva dona de um lindo par de coxas - fez uma apresentação e foi a oradora na maior parte da caminhada. Na sexta um dos trainees foi parar na comunicação e lá fui eu colocar ele em seu devido lugar: junto dos estagiários, sou sucinta  "se ajudem, se virem, fucem esse material, qualquer coisa eu estou ali na frente, mas sugiro mandar mensagem pela rede interna porque o Borges não suporta gente zanzando". E assim o dia passou com minha helpdesk de estagiários. Tentei ser o mais didática possível e as coisas iam se encaixando. 

Fernando ia para a terapia e eu pra casa, uma passada no mercadinho e a janta se tornou uma bela omelete. Janta feita, banho tomado, pijama confortável, série de terror no streaming, nada como a fantasia pra tirar a gente da realidade um pouco, Freud deve ter alguma explicação pra isso e deve envolver a mãe de alguém. 

Vinte e duas horas e oito minutos. A tela do celular acende.

"No meio do ano."
"Quer ir comigo? Preciso do seu apoio."

Foda-se a hora. Troquei de roupa, fiz uma mochila rápida, tranquei tudo, reguei as plantinhas. Chamei um carro pelo aplicativo. Preço dinâmico. O dobro do preço habitual, foda-se. Não tinha respondido a mensagem, me cocei várias vezes para responder, mas me controlei. O porteiro já me conhecia e, depois do meu pedido, ele não avisou da minha chegada.

Vinte e duas horas e cinquenta e quatro minutos. Toquei a campainha. Hoje a noite prometia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comenta aí ;)