Não vou dizer que não tenha aproveitado as férias, mas é aquela coisa: é uma merda ter que voltar a trabalhar. Não que eu não gostasse do meu trabalho, pelo contrário, eu amava. Mas preferia um milhão de vezes ficar em casa curtindo a ter que acordar cedo e vir trabalhar. Por sorte tinha Fernando do meu lado. Mesmo que às vezes ele desse umas opiniões completamente idiotas.
Falar nele era bom vê-lo assim, tranquilo. Quando falei com a psicologa dele a primeira vez me assustei, ele havia tentado se matar meses antes da gente se conhecer. Também não consigo imaginar a barra que é se sentir uma pessoa e ser outra por fora. Não que ter me assumido lésbica tenha sido moleza, mas eu ainda era a mesma mulher que nasci, agora ele queria mudar completamente o que nasceu. E eu fui me apaixonar por uma criatura assim, pode parecer estranho, mas só reforçou minha predileção por mulheres.
Só que até ele virar ela completa levaria um bom tempo ainda e eu estava disposta a seguir todo esse processo, aturar as mudanças hormonais, as mudanças do corpo... pelo que pesquisei seria como ter uma puberdade forçada e condensada em dois anos de tratamento hormonal que daria uma penca de reações adversas além de dores da musculatura se adaptando com a nova carga hormonal... a psicologa sugeriu que eu passasse a fazer sessões com ela para suportar tanta mudança assim, isso, claro, se eu quisesse ficar com ele. E, como eu queria, marquei as sessões pras quartas-feiras, era o dia que o lado menino de Fernando aflorava vendo futebol, nada exagerado ou fanático, ele apenas gostava e não era nocivo, no entanto acabei não falando com ele que, a partir da próxima semana, eu também bateria ponto na psicóloga.
Talvez por ainda não ter chego em um ponto espiritual tão singular quanto o dele meditar era difícil, mas gostava de estar perto dele, queria aceitar as propostas dele de morarmos juntos, mas não agora, faria algumas sessões de terapia para confirmar que eu conseguiria segurar esse rojão praticamente sozinha. Eu era forte, decidida, não havia porque duvidar da minha capacidade... porém né, ajuda nunca é demais e, por isso mesmo, vê-lo atravessar tudo isso só com ajuda psicológica e a minha não era certo, já havíamos conversado algumas vezes dele falar logo para seus pais sobre a transsexualidade e os passos que iria seguir nos próximos meses, mas escorpiano como é, emburrava e nada o fazia mudar de ideia. Resolvi insistir mais uma vez.
- Eu acho que você devia falar logo - Ele permaneceu de olhos fechados, como se não tivesse me ouvido - Sério mesmo, quanto mais demorar pior vai ficar.
- Melhor não... - Como sempre ficou na defensiva, tinha que começar as consultas para saber lidar com isso, essa negação dele me incomodava pra caralho - ... eles não vão receber bem.
- Que não recebam ué - Lembrei de quando me assumi lésbica, não foi fácil, mas foi necessário - O que não pode é você ficar enganando eles mais tempo.
- Eu não estou enganando eles - Apesar de amar meu cabelo achava lindo o movimento do cabelo dele, mesmo que fosse para prender - Estou poupando eles de...
- ... De quem você é - Interrompi, francamente, eu devia parar, mas me senti tomada pelo gênio briguento, acho que estava para entrar na TPM - Eu acho isso super errado, cara, sério, uma coisa é você não contar pra ninguém aqui da empresa, outra coisa é não contar pros seus pais... - suspirei - sua família!
- Sabe que eu não tenho essa ligação toda com a família né?
- Sei e acho errado pra caralho.
- Errado por que?
- Depois de tudo que tive com o Lucca ninguém ficou do meu lado - Relembrar meu antigo namorado era um saco, odiava saber que ele já tinha cumprido a pena e estava pela rua, por sorte eu consegui uma ordem restritiva o que obrigou ele a ir morar no nordeste com algum parente distante, mesmo um merda como ele teve o apoio da família e era isso que eu queria botar na cabeça desse idiota - Só minha mãe, ela me levou no hospital, ela me levou na delegacia, ela pegou turno dobrado para pagar terapia pra mim por um tempo...
- Cada caso é um caso - Senti o sangue ferver, odiava quando ele relativizava - Nunca tive essa ligação toda com meu pais.
- Pois nunca é tarde pra isso, amanhã depois eles morrem e aí, fica como?
- Sei lá - Decididamente essa discussão ia acabar em tragédia, só que o trem desgovernado não pára simplesmente porque as pessoas dizem que não querem o descarrilamento - Não faço a menor ideia.
- Pois quando fizer - Levantei ao passo que ele ficou sentado no banco de concreto, dei um beijo suave nos cabelos - Me procura, posso até ir com você pra explicar tudo.
- Não vai rolar... não vai rolar mesmo.
- Por besteira da sua parte né, Fernando.
- Ah sim - Pronto, agora a merda estava feita, eu podia só ter dado o beijo e saído, mas não, tive que continuar provocando, parabéns pra mim - E o que acha que eu devia fazer, dona Bethina? Chegar "oi mãe, então, sabe o seu filho? Ele é uma mulher trans, daqui pra frente chama ela de Fernanda e ele vai cortar o pinto fora... sabe o teu sonho de ter netos? Pois é, já era." sem chance né?
- Nossa cara - Eu realmente fiquei puta da cara, que merda, confesso que a vontade foi dar um soco bem dado no meio desse nariz, colocar dentes na boca do estômago, mas respirei fundo e, mentalmente, tentei contar até dois, nada feito - Quando quer você consegue ser escroto pra caralho.
Esperei um segundo a resposta dele. Não vinha nada, eu sabia que tinha passado de um limite, mas ele também não colabora, cada vez que tento ajudar, a buscar uma solução, a escavar mais pra desenterrar todas as raízes dos problemas dele ele vira um caminhão em cima e esconde tudo. Já estava puta demais para continuar ali, por isso resolvi voltar para o setor, com sorte ninguém teria voltado e eu podia ficar sozinha em um pufe pensando o que faria dali pra frente. Cheguei a pegar o celular pra ouvir alguma música, mas não queria contaminar canção alguma com esse sentimento ruim. Ouvi passos, tinha certeza que era ele. Dito e feito. Tinha horas que ele era extremamente previsível.
- Desculpa - Ele esticou o dedo minimo, não correspondi - Falei besteira.
- Sabe, cara - Suspirei tentando não dar a ele o gosto de ver uma lágrima minha - Você fala assim de família e quer que eu seja a sua família... não dá sabe?
- Nada a ver, você...
- Eu o quê? - Senti o sangue borbulhar dentro das veias - Amanhã depois você passa a me achar complexada como sua mãe e passa a esconder coisas de mim... super entendo esconder a parada do crossdresser durante a adolescência e até sair de casa, mas agora você está em outro patamar, você é adulto, paga suas contas... está perto de mudar completamente para deixar de suprimir, pra deixar uma parte sua tão linda ver a luz e fica procurando formas de soterrar tudo isso... é meio como sua psicóloga me disse dia desses, parece que a cada vez que chega em uma raiz de problema você enterra elas cada vez mais fundo... eu tô cansada disso sabe? Quando você se decidir de mostrar pro mundo inteiro o que você é e foda-se o resto... me avisa.
Eu sabia que ele iria dizer algo e eu acabaria me derretendo pela fala macia dele. Mas eu precisava dar pra ele esse choque de realidade, mostrar que não é só a forma como ele vê o mundo e as coisas é que estão certas, existem muitas maneiras de se recortar uma imagem, algumas são melhores pra uns, outras pra outros e assim é a vida, aprender com os outros técnicas para suportar melhor essa coisa que é o mundo. Por isso me levantei, dei um beijo na testa dele e me sentei em frente do computador. Torci para ele não se sentar logo em seguida, pois me veria não controlar as duas lágrimas que rolaram pela minha face.
Sinceramente eu queria ajudar ele mais do que tudo, mas não via meios, toda forma que eu tentava recebia um bloqueio, um beco sem saída ou uma pá de terra. Espero que a psicologa me dê uma luz quanto a isso tudo. Porque, mesmo com todos os seus defeitos eu amava a pessoa que ele era, fosse masculino carregando as compras do mercado sozinho, fosse super feminina usando uma saia godê com avental enquanto cozinhava com extrema habilidade. Restava saber o quanto eu estava disposta a ir na toca do coelho. Pensar nisso me lembrou de Alice, a primeira mulher com quem tive uma relação maior que sexual... talvez fosse a hora de dar uma de chapeleira maluca e buscar outra saída para essa disputa. Ponderei mil vezes me virar e aceitar as desculpas de Fernando, mas mil e uma vezes me impedi disso, hoje eu precisava ficar na minha e deixá-lo pensar por si mesmo. Lá vinha o Borges e o pessoal do setor. Ótimo.
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