terça-feira, 31 de dezembro de 2019

CdF: Fogos

- Eu não sabia que dava pra subir aqui - A voz de Bethina me tirou de meus devaneios acerca do ano que havia passado - A vista é linda, olha esse céu...

Ela parecia deslumbrada ao ver o céu repleto de pequenas bolas de plasma com diferentes idades e algumas que nem mesmo deveriam existir mais mas, devido a grandiosidade do universo, lá estava seu brilho chegando em ondas radioativas no espectro de luz visível.

- É bonito né? - Tinha crescido numa cidade pequena, a maioria das estrelas sumia com a poluição luminosa da Metrópole - Tem que ver longe da cidade.

- Eu imagino - Ela foi se aproximando, a iluminação aqui em cima era inexistente - Como que você tem a chave daqui?

- Pedi pro síndico, disse que queria plantar hortaliças e ele deu.

- Você sempre consegue as chaves que quer - ela segurou o riso - você já podia roubar casas... chegaria nas portas "oi, vim plantar hortaliças, me dá uma cópia da sua chave?" e te dariam.

Rimos por alguns segundos enquanto eu, com o canto do olho tentava ver a roupa dela. Meu prédio ficava acima dos prédios ao redor e longe o suficiente para não chegar luz onde estávamos, a única luz visível era da escada e da pequena lâmpada vermelha que piscava em cima do para-raios alguns metros acima de nossas cabeças.

A verdade é que, meia hora atrás, Bethina me perguntou onde era o melhor lugar para ver os fogos do ano novo. Falei que tinha as chaves do terraço e ela mandou que eu viesse que ela já subiria, provavelmente terminaria de se arrumar, mandar mensagens para parentes distantes ou até mesmo dar aquela última passada no banheiro, como bom obedecedor de regras que sou, acatei e subi. Agora eu tinha curiosidade na roupa dela e no que ela tinha nas mãos. Burro, estava com o celular no bolso. Não sei de quem foi a ideia de colocar uma lanterna no aparelho, mas era uma daquelas coisas do tipo "como ninguém pensou nisso antes?", puxei-o do bolso trazendo luz ao ambiente.

Um vestido branco, longo, com flores amarelas bordadas na altura dos joelhos, o cabelo com volume todo armado, no colo uma medalhinha que nunca tinha reparado que ela usava, nos pés a boa e velha sandália de dedos famosa. No braço esquerdo diversas pulseiras e o braço direito, tão logo viu a luz, escondeu-se atrás.

- Pode-se saber o que a senhorita está aprontando?

- Você subiu tão rápido que quase dá vontade de brincar aqui em cima... - ela tinha um sorriso perverso nos lábios - ... já deve ter ouvido falar de BDSM né?

- Claro - Confesso que um arrepio me subiu do cócs até a nuca, desceu e subiu novamente, hora de dar linha pra essa pipa - Já tive uma Senhora uma vez...

- Ah é? - Ela não pareceu surpresa - E quem foi?

- Você não conhece - hora de história pela metade - Faz uns anos tive um relacionamento com uma Senhora e tals... foi divertido enquanto durou.

- E essa Senhora tem um nome? - Ela viu que a história tinha buracos - Quero dizer... é alguém que eu conheço?

- Só se você estivesse em Belô uns três anos atrás. - Suspirei brevemente - O nome dela é Flávia, hoje mora em Londres acho... o pai dela é dono de diversas empresas e ela só fica recebendo os dividendos e tals.

- Entendi - Ela entendeu que era história não resolvida e não era ideal para o clima festivo - Na real eu tenho um pedido e uma pequena confissão pra fazer...

- Ih, lá vem - Ri um segundo enquanto notava que ela estava um pouco incomodada - Qual é o pedido?

- Que você use isso - Ela tirou o braço direito de trás revelando meu vestido branco usado no reveillon do ano passado, confesso que me pegou completamente no contra-pé - E depois a gente conversa.

Olhei em volta, não havia mais ninguém no terraço e as janelas dos arredores não era tão visível o que fazíamos aqui em cima. Mas, claro, a sensação de estar me montando em público trazia um imenso frio na barriga, o flagrante, as mil histórias prontas na cabeça, a possibilidade de quem ver filmar tudo e colocar na internet... hesitei um instante. Se o objetivo já era fazer isso um dia, que seja hoje. Tirei a camiseta, a bermuda e coloquei a peça que ficou um pouco justa na parte da barriga, acho que precisava voltar a me alimentar direito. 

Passados dois minutos eu estava dentro do vestido sentindo o vento frio entrando por baixo e me aplacando o calor nas partes íntimas. Em seguida Bethina me puxou para perto dela e fez uma maquiagem simples, mas que, com certeza, deve ter ficado infinitamente melhor que as que eu tentava fazer por conta própria.

- P-pronto... - confesso, estava morrendo de medo - C-como estou?

- Você está linda meu amor - Ela colou os lábios rosados aos meus rubros, confesso, a sensação daquele beijo que misturava os batons era algo que eu não tinha experimentado, o ato só foi interrompido pelos primeiros fogos do ano que se iniciava ali - Dizem que o que fazemos na virada do ano é o que faremos o resto do ano.

- Te beijar o ano todo? - Fiz caretinha - Parece bom...

- Só bom?

- Bom foi só o primeiro adjetivo... - hora da fuga linguística - parece maravilhoso mesmo!

- Ah bom, achei que era só bom - Ela fez um bico por um instante - Mas maravilhoso é ótimo.

- É sim - Tomei a mão na dela - Agora... o que ia confessar?

- Então - ela olhava os fogos, ao passo que eu fazia o mesmo - Lembra aquele dia que fui na sua psicologa?

- Lembro sim.

- Então... - Senti a mão dela esfriar subitamente, apertei um pouco como se buscasse passar confiança à Bethina - Ela me contou parte da sua história, dos seus traumas, seus rolês e tals

- Que fofoqueira - Merda, esse era o momento que ela iria terminar comigo ou algo assim, merda, já sentia o coração despedaçar inteiro - E...?

- E ela... na verdade eu joguei verde e colhi maduro - A mão dela ganhou calor novamente - Eu perguntei se você era algo além de crossdresser, se ia dar o passo seguinte e... bem... ela não negou - Cogitei falar algo mas ela não deixou - A verdade é que antes de te conhecer eu tinha decidido não ter mais relacionamento nenhum com homens sabe? Tive umas fitas mó complicadas, agressão e o caralho a quatro, por isso eu só estava me relacionando com meninas e já tinha definido dentro da minha cabeça que só teria um relacionamento sério com outra mulher e aí do nada você apareceu, puta cara gentil me mostrando a empresa, gente boa pra caralho, demorou um pouquinho pra tomar a iniciativa mas quando tomou teve um pouco de receio de se mostrar por inteiro e eu te entendo perfeitamente sabe? - Estávamos cara a cara, mesmo com a penumbra eu podia ver os olhos dela rasos em lágrimas - Aquele dia que saí daqui eu fui conversando com alguma entidade superior perguntando se isso era alguma pegadinha... aí meu apêndice deu ruim e não consegui te contatar nem nada e... 

- Fala logo - Ela parecia cansada de tanto falar e aproveitou minha interrupção para respirar - Pra ti, qual seria esse passo seguinte?

- Qual era o termo... - ela olhou para o lado dois segundos - ... transicionar gênero... é isso? É esse seu caminho?

- Provavelmente - Minha vez de olhar para o vazio - Sempre me senti meio errado por dentro e, quando invadi um quarto que não o meu e usei uma saia tive um clique... e acho que é por aí que devo seguir, não vai ser um caminho fácil, pelo que li os remédios tem reações bem tensas, fora as mudanças externas que não vai dar pra esconder muito tempo... A minha pergunta é: você quer, realmente, estar comigo nesses momentos?

- Quero sim - Ela me deu um beijo - Cara, eu te amo e tava em um puta conflito interno por me deixar seduzir por um homem de novo... e aí você, sem querer, resolveu isso pra mim.

- Quer dizer que você se vê mais...

- ... Como lésbica, tem anos essa história de não relacionar com homens - Ela respirou aliviada - Obrigada, Fê.

- Uau - Foi impossível conter uma lágrima fujona - Isso parece série da netflix - rimos - uma lésbica que se apaixona por um homem que, na verdade, é uma mulher trans... 

- Puta merda - Bethina também chorava copiosamente agora - Vamos escrever isso e ficar ricas!

- Feito!

E assim, entre risos, lágrimas e confissões os fogos iluminavam o céu da grande Metrópole. Não sabia porque mas agora me sentia ainda mais seguro em poder ser quem eu realmente era, dar aquele passo com a certeza que não vou querer voltar, seguir em frente, sem mais medos ou receios. Na real eu sabia o motivo dessa força toda que imbuiu meu ser e o nome dela era tão simples quanto complexo, além de ser uma das forças primordiais do universo. Essa força chama-se amor.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

CdF: Alta

Nunca o espaço entre uma sexta-feira e o sábado demorou tanto para Fernando. Passou a acreditar na relatividade do tempo, enquanto tomava uma ducha gelada para acordar notava que havia um silêncio quase irreal na Metrópole, deveriam fazer uns bons anos que ele não sabia o que era acordar cedo no final de semana, talvez só quando viajava, mas mesmo assim agora era diferente.

Tomou um gole do refrigerante de cola que tinha na geladeira, comeu uma maçã e se vestiu, chamou um carro pelo aplicativo já pensando se Bethina ficaria na sua casa ou iria para a casa dela própria. Na cabeça dele não fazia a menor diferença, tudo que queria era que ela se sentisse o mais confortável possível, até porque uma vez confessados os sentimentos e aquela quantidade inenarrável de mensagens trocadas nos últimos dois dias deveria querer dizer alguma coisa.

- Quer dizer alguma coisa - Balbuciou Fernando trancando a porta - ... não quer? - Deu uma rápida olhada para cima como se perguntasse a algum deus que estivevesse de plantão no final de semana.

Ao entrar no carro o motorista parecia pouco propenso à conversas e Fernando também não sabia se queria conversar, estava com tantas caraminholas dentro da cabeça que preferia não abrir a boca com medo de que as palavras fugissem e se nunca mais voltassem. Cada pensamento besta que acabou sorrindo de canto o que foi prontamente percebido por Astolfo, o motorista.

- Pelo sorriso está indo buscar alguém querido no hospital...

- Tá tão na cara assim?

- Ô se tá, ta exalando.

- É? - Fernando sentiu o rosto queimar - Exalando, gostei dessa palavra.

- Bonita né? - O motorista pareceu se entreter com o som dela - Dia desses entrou uma psicóloga muito falante e acabou falando essa palavra, aí fiquei com ela na cabeça... mas acho que é mais que uma palavra - Virou uma esquina, o destino estava no meio do quarteirão seguinte - é um sentimento, tipo estar exalando uma sensação boa.

- Sinestesia, a relação de planos sensoriais diferentes, tipo dizer que a cor azul é fria ou que uma música faz arrepiar.

- O senhor é professor?

- Publicitário, gosto de brincar com as palavras.

- Legal, tenho um filho estudando isso aí, cada dia que ele volta da aula é uma coisa nova que eu e minha velha passamos a perceber nas propagandas... vocês são tinhosos hem.

- Só o suficiente - Fernando riu enquanto o motorista estacionava - Obrigado pela conversa e um ótimo dia pra ti.

- Pro senhor também!

E assim, como se fosse carregado pelo vento Fernando entrou no hospital já perguntando pelo quarto de Bethina e, enquanto aguardava notou uma das funcionárias decorando uma árvore de natal, estranhou a cena, puxou o celular e faltavam menos de duas semanas para a época que menos gostava no ano, mas é a melhor época para fazer peças, todas muito iguais entre si, poucas palavras já causavam um impacto grande no público.

Tão logo soube o número do quarto foi guiado até lá pela mesma força mística que fez tantos homens lançarem-se ao mar em todas as histórias épicas. Por um instante sentiu-se Ulisses atravessando mares e perigos indo atrás da pessoa amada. Porta cento e um. Bateu suavemente três vezes.

- Pode entrar - A voz de Bethina foi como o canto de uma ninfa dentro da cabeça de Fernando.

Ao abrir a porta a imagem de Bethina, em um vestido florido, de alças finas, solto do corpo, nos pés uma rasteirinha e o cabelo solto mostrando ao mundo todo seu volume quase lhe fez desfalecer tamanha a emoção em vê-la ali. O abraço que culminou em um beijo foi apenas a cereja daquela profusão de sentimentos que, mantendo as palavras do motorista, exalavam entre eles. Palavras essas que sumiam entre um beijo e outro emendado por sentenças quase sem sentido para quem visse de fora aquela situação. Passados não mais que um par de minutos Fernando tomou a iniciativa.

- Já está liberada ou ainda precisa esperar mais?

- O médico assinou minha alta tem uns cinco minutos, estava vendo as mensagens lá da firma... até a dona Freya perguntando de mim.

- E você respondeu ela?

- Eu não - Bethina deu de ombros - Terça-feira eu respondo com o atestado, não sou obrigada.

Foi impossível não sorrir com a petulância da jovem que caminhava com certa lentidão para o lado de fora do quarto ao que Fernando, tal qual o bom cavalheiro que era carregava a mochila com os pertences da moça.

Optaram por motivos óbvios que o melhor era ela ficar no apartamento de Fernando para se resguardar e evitar esforço, fora que eles tinham muito a conversar e um final de semana parecia tão pouco tempo que passou voando e logo era segunda-feira. Ele foi para a empresa e ela voltou para o seu apartamento, oito quadras distante.

Aquele dia restou para ele transmitir as notícias acerca da designer tentando não demonstrar que ele estava mais apaixonado por ela como jamais esteve por qualquer outra mulher em sua vida. Ainda que estar com esse sentimento lhe deixasse um pouco confuso, mas... quando nada foi extremamente confuso na cabeça dele? Confuso para Fernando era o normal.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

CdF: Terapia

Ao chegar no consultório hoje me dei conta de que fazia exatamente um mês que eu não vinha à terapia. Primeiro foi um cancelamento por causa de urgência que nunca foi reposto, depois a doutora tirou duas semanas pra ir em um simpósio, congresso ou coisa assim e, semana passada, fui eu que faltei por causa de uma luxação. Nossa. E revendo mentalmente tudo que aconteceu parece que uma sessão seria pouca.

- Fernando - a recepcionista me chamou pelo nome - Pode entrar.

- Obrigado!

Já conhecia o caminho, quase um ano vindo aqui toda sexta-feira depois do trabalho, o tapete característico na porta. Soltei os ombros, respirei fundo e dei duas batidas suaves já abrindo e entrando. Decididamente a doutora nunca foi de cerimônias, pelo menos não comigo. Até torcíamos pro mesmo time. Se eu tivesse tido um apoio assim desde a infância certamente metade dos meus fantasmas jamais teriam surgido. Se bem que... foram importantes, apesar do sofrimento que causaram.

- Fernandes! - Ela saiu de trás da mesa e veio ao meu encontro me abraçando - Saudade de você! Como está?

- Saudade também - Correspondi ao abraço, ela já não era mais só minha terapeuta, era minha amiga, pelo menos era o que transparecia - Me-ni-na, aconteceu tanta coisa nesse mês que olha...

- Senta aí, vamos conversar! Aliás, antes... - Abraço desfeito, ela foi para a sua cadeira e eu fui pra minha - Tá com fome? Você é meu último paciente hoje e esse final de semana é do Thomas ficar com a Bia... então, sem hora pra chegar em casa!

- Quase falei um "coisa boa" - Rimos - Mas eu aceito sim - Thomas era o ex-marido e Beatrice a filha do casal, que tinha onze anos - Ajudo até a pagar.

- Mas aí a coisa ficou boa! O que vai querer?

- Ah, publicitários adoram pizza...

- Sério? Sempre achei que fosse um esteriótipo.

- E é, mas eu adoro mesmo.

- Beleza... vou pedir de calabresa e uma de chocolate com morango pra sobremesa... - ela me viu pegar o cartão - e deixa que eu pago, pela sua cara já sei que temos longas histórias! Então, manda bala!

- Bom... vejamos - Me levantei e caminhei até o sofá que tinha numa das paredes do consultório - Eu conheci alguém...

- A moça da empresa? - Ela checou as anotações - Bethina com "TH" né?

- Isso... então, lembra que semana passada eu torci o pé? Então, ela foi lá em casa cuidar de mim e tals e rolou.

- Aff - Ela fez uma cara de tédio - Conta tudo, não me esconda nada!

- Tá bem - Respirei fundo - Ela foi lá em casa, jantamos, bebemos um pouco e transamos, foi... como eu posso dizer... mágico.

- Gostei dessa palavra - Era nítido que a doutora grifava a palavra - E o que mais?

- Bom, antes da gente ir pros finalmentes aconteceu uma coisa - Bateram na porta, era o entregador das pizzas da pizzaria do outro lado da rua - Rápido hem.

- Muito e ali é a melhor da região - Sem esperar nem nada ela já tomou uma fatia nas mãos e mandou que eu me servisse - E que coisa aconteceu antes de vocês transarem de forma mágica?

- Como tá esfriando eu resolvi lavar a camisola pra guardar limpinha, só que nisso eu deixei secando na lavanderia e, bem... Bethina viu.

- Puta merda, e aí?

- Aí o redator publicitário aqui inventou uma história de que tinha lavado roupa para uma vizinha e tals e não é que colou?

- Fernando... o que falamos sobre esconder?

- Eu sei, eu sei, isso foi uma reação natural, eu não controlei, quando eu vi já tinha dito e vida que segue, ela colocou a camisola e ficou linda... disse que achou muito grande e eu mantive a história de que a vizinha era mais ou menos da minha largura e, no fim, rolou, transamos... de forma mágica.

- Certo - A doutora serviu o refrigerante - E agora vocês tão namorando?

- Não, ainda não! - Tomei um gole da bebida pegando mais uma fatia - Teve o dia seguinte!

- Sei - Ela também se serviu de mais uma fatia - Vocês transaram magicamente de novo?

- Antes fosse! Enquanto eu dormia por causa do remédio pra dor, vinho e magia ela fuçou o apartamento inteiro e, advinha, achou meu guarda-roupa CD...

- Puta merda! - Ela engasgou, tinha horas que eu esquecia completamente que ela era uma das psicólogas mais caras e renomadas do país, mas no perfil dela dizia que ela se adaptava a cada paciente, se a pessoa prezava a norma culta ela virava uma catedrática, se a pessoa era mais simples ela não tinha receio de falar em linguagem mais popular, fico curioso como ela tratava da Rafaela, uma hora eu pergunto  - E depois?

- Depois ela me acusou de ter mentido pra ela, que eu tinha um relacionamento e não queria assumir e tudo mais! Foi mó merda na hora, quase joguei tudo fora... só que, como que eu vou jogar fora o que eu sou? Não posso jogar fora a minha verdade.

- Isso mesmo! Mandou bem... mas, por favor, me fala que você abriu o jogo com ela...

- Claro, segunda-feira chamei ela lá em casa e não só falei como mostrei, ao vivo!

- Wow! - Ela me estendeu a mão, correspondi - Parabéns! E ela?

- Obrigado, tenho uma ótima terapeuta - Fiz caretinha - Ela reagiu como qualquer um reagiria né? Ficou em choque, sem saber o que dizer... ah, nesse meio tempo a gente confessou atração!

- Porra, essa história ta melhor que a maioria das séries da netflix hem! Devia escrever e vender pra eles, faria sucesso, certeza!

- Maybe a day - Suspirei ponderando a ideia - No dia seguinte ela não veio trabalhar e minha caixinha de maquinações aqui despirocou né... aí na quarta cobrei um favor do Borges e peguei o endereço dela e fui ver qual foi, o porteiro disse que ela não aparecia ali desde terça de manhã... véi, foram os piores momentos, porque pensei mil merdas, mas voltei pra casa pra tentar recolocar a cabeça no lugar...

- E colocou? Quero dizer... não teve certos pensamentos de novo né?

- Não deu tempo - Peguei o celular - Quarta a noite recebi essa mensagem - Deixei que ela lesse, claro que já tínhamos conversado mais, mas o resto era só nosso. - Aí eu fiquei num misto de sorrir feito idiota e chorar.

- ... um choro de alegria, isso merece um brinde! - Brindamos - Se você não se importar e ela quiser... pode trazer ela aqui semana que vem? Quero ter um particular com a moça.

- Virou minha mãe é? - Sorri, mas a doutora ficou séria - Trago sim.

- Tem coisas que eu acho que você não vai conseguir dizer direito pra ela... passos que, imagino que ainda queira tomar, que agora tem mais uma pessoa na caminhada.

- Verdade...

- Mas hey, parou de introspecção, 'bora sorrir e... caralho, quase dez horas da noite, vamos antes que tranquem a gente aqui dentro!

- Vamos sim - Foi uma sessão de duas horas regada a pizza e coca-cola - Obrigado.

- Pelo que? Ah, já sei - ela me deu a pizza doce - Pela pizza né... - De repente fiquei pensativo, ela me abraçou - Relaxa, vai ficar tudo bem, eu posso te ajudar a explicar pra moça tudo... quer dizer, ainda tá com os planos né?

- Tô sim, não posso fugir da minha verdade!

- Puta merda, te doutrinei muito bem, que orgulho!

Nos despedimos e rumei para casa. Amanhã tinha que acordar cedo, pegar um carro do aplicativo e ir buscar Bethina, tínhamos tanto para conversar e tantos pingos nos is para colocar que acho que o final de semana não seria suficiente.

domingo, 6 de outubro de 2019

CdF - Notícias

Decididamente eu não ia conseguir dormir. Tomei um banho gelado e, aos primeiros raios de sol que trespassavam a janela, peguei a bicicleta e fui para a empresa. Quer dizer, sentei na praça em frente e fiquei esperando o horário ouvindo o noticiário no rádio. Perdido entre tantos pensamentos não prestava atenção a nada. Troca de tiros num bairro. Bethina. Ações em queda. Bethina. Sol. Bethina. Joguei a cabeça pra trás.

- Merda... - Pegue o celular, devia mandar mensagem, mas, ao mesmo tempo queria deixar o tempo dizer - ... eu não devia ter feito isso.

Agora era tarde demais pra fazer qualquer coisa. Tinha que dar tempo pra ela digerir tudo. O foda seria rever ela daqui a pouco. Devia ter inventado alguma doença, gripe, rinite, dengue, surto psicótico... qualquer coisa que pudesse ficar em casa, escondido. Não. Não podia mais fugir do que eu queria, do que eu sou. Não posso mais negar isso, não posso esconder. Ou as pessoas aceitam e encaram com naturalidade ou, no mínimo, respeitam. Ainda mais depois de tudo que tinha descoberto na terapia... tanta coisa. Essa semana a terapia seria foda.

- Caiu da cama, rapaz? - A voz de Borges me tirou do meu mar de pensamentos - Bom dia!

- Buenas... - Odiava quem dizia bom dia tão cedo - Ontem fiquei sem internet aí fui dormir cedo, quando acordei faltava pouco pra acordar... resolvi vir mais cedo.

- Tá certo - Ele sentou do meu lado - Obrigado pelo quebra-galhos ontem, tô te devendo uma!

- Opa, que isso.

- Sério, se tiver alguma forma de pagar... - cogitei pedir uns dias de folga, mas não, não cabia mais em mim correr ou até mesmo seguir fugindo e me escondendo - ... bora, vou te pagar um café!

Fomos na padaria que tinha na rua na lateral da empresa. Cheia de engravatados com pastas dignas de filmes de espionagem. Seria prático uma troca em um ambiente desses. Externamente respondia Borges e pensava em quantos desses executivos tinham vidas tão secretas quanto a minha. E a merda de manter ela secreta me fazia pensar muito em quem eu era e quem eu queria ser.

Desjejum tomado seguimos para a empresa falando sobre o ataque de ontem, sobre futebol, a empresa. Ótimos assuntos pra me distrair, espairecer a cabeça e me ligar ao que precisava fazer na empresa e, na hora do almoço, falar com Bethina. Me sentei, liguei o computador, respirei fundo e comecei a trabalhar. O relógio ia passando e nada dela aparecer. Em uma ida ao banheiro não aguentei mais. Puxei o celular e disparei a mensagem.

"Olá, bom dia... tudo bem?"

Esperei alguns minutos e ela não recebeu. Nada. Voltei à minha mesa. Nada. Liguei o automático, ainda era terça-feira e tinham muitos conteúdos para recolocar no site. A hora do almoço chegou e nada. Nenhuma resposta. Nem mesmo recebeu. Arrisquei tudo. Liguei. Chamou, chamou, chamou, caixa postal. Okay, agora eu estava preocupado. Se bem que com a chuva de ontem eu não duvidaria ela estar de cama, misturado com o choque de ontem... se a minha cabeça ainda estava confusa com tudo isso imagina a dela. Do nada descobrir que o homem que ela ama curte se vestir de mulher. E a merda maior é que ela não sabia o todo. 

E o dia passou voando, sem sinal dela. Voltei pra casa e fiquei no escuro pensando o que havia conhecido. Se amanhã ela não aparecesse eu já sabia como cobrar o favor do Borges. Assim fui comer alguma coisa e capotei. Dormi toda a noite atrasada e mais um pouco. O despertar do dia seguinte foi ótimo. Eu tinha uma dívida pra cobrar e pouco trabalho pra fazer. Todo o conteúdo produzido no dia anterior iria para parte do conselho aprovar. Tem horas que acho que uma parte da empresa não confia nos seus funcionários. E lá se ia a quarta-feira, antes de ir embora resolvi cobrar o favor.

- Borges... a Bethina deu algum sinal de vida?

- Pior que não, Fernando - Ele checou o celular, deu pra ver o nome da Rafaela na tela - Tentei ligar e ninguém atendeu...

- Posso cobrar o favor? - Ele sorriu de canto - Eu quero o endereço dela, ir lá ver se tá tudo bem e tals

- Eita, bem que eu tava vendo que vocês dois andavam grudadinhos - Ele puxou o teclado acessando o setor de RH remotamente e imprimindo uma folha com o endereço - Também estou preocupado... espero que ela esteja bem!

Papel em mãos programei no GPS do celular e parti em ritmo acelerado. Ela, realmente, morava na mesma rua, mas não três quarteirões e sim oito. Ela era de humanas, realmente. Ao chegar em um pequeno prédio com seis andares fui logo tocando o interfone do apartamento dela. Nada. Nenhuma resposta. Perguntei na portaria. Nenhum sinal dela desde terça de manhã. Puta merda. Voltei pra casa sem conseguir ter pensamentos ruins. Ao entrar em casa me joguei no sofá. Uma mensagem. O coração foi à boca. 

"Oi Fê, desculpa o sumiço... fui parar no hospital pra um redesign. Tirar os apêndices e tals, sabe como é né? haha

Brincadeiras a parte: tive uma crise de apendicite, passei mal voltando pra casa, achei que fosse uma queda de pressão e... enfim. Vou receber alta no sábado de manhã. Vem me buscar? Beijo."

Foi impossível conter uma lágrima junto de um sorriso. Agradeci aos céus e a mensagem. Essa noite dormiria tranquilo. Obrigado, céus.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

CdF: Revelação

Não seria a primeira vez que esse apartamento, localizado em um bairro de classe média, em um prédio com seus vinte anos desafiando a gravidade, na altura do décimo quarto andar veria uma discussão entre um homem e uma mulher. O casal que morou aqui antes de Fernando discutia por tudo até o momento da conclusão óbvia: a Metrópole estava fazendo mal para eles.

- Entra - Disse Fernando caminhando enquanto deixava a mochila no sofá e arremessava o embrulho na cama que não fora arrumada aquela manhã - Fica a vontade... quer água? Suco?

- Licença - A jovem entrou ainda com um certo receio do que estava por vir dentro daquelas paredes - Eu ia pedir café, mas né... não tem.

- Não, lamento, cafeína aqui só do chimarrão ou coca-cola.

- Então eu vou aceitar a água... - Bethina suspirou pesadamente enquanto aceitava o convite para se sentar - ... até porque acho que temos que conversar a sério né?

O coração de Fernando parecia que sairia pela boca a qualquer momento. Sentia que era mais fácil aguentar duzentas chibatadas de Rafaela, trezentas de Freya do que fazer o que estava por fazer. Mas, ao mesmo tempo, sentia que podia confiar nela. Odiava não ter certeza. Quase quis colocá-la porta afora e perguntar à terapeuta como agir. Só que isso demonstrava o quão ela era muleta e ele, caso tudo aquilo que tinha dito e estava construindo dentro de si era real, tinha de agir como uma pessoa honesta com os outros, sobretudo consigo mesmo e, falar disso com Bethina, era um daqueles passos grandes, talvez até um level up.

- Temos sim. - Fernando deu um gole curto no copo com água deixando escapar um suspiro longo, os olhos baixos, mergulhados naquele receptáculo diminuto de líquido vagamente insípido, incolor e inodor - Então... eu não sei bem como falar isso, na real eu nunca soube como falar disso com ninguém... acho que... - Sentiu a mão de Bethina tocar a sua suavemente - Fala você primeiro.

- Certeza que seu ascendente é peixes - Ela sempre recorria a explicações de signos pro que não conseguia dizer, para ela um ascendente influenciava mais nas pessoas do que uma doença psico-somática - Vou fazer como aprendi com a minha mãe, se tem algo pra dizer, chega e diz, sem rodeios, sem enrolação, tipo esparadrapo... - Ela puxou o olhar, se esticou e fez Fernando erguer o rosto - ... achei que nunca mais sentiria esse tipo de coisa por homem nenhum na vida, sobretudo depois de umas experiências com umas amigas e... ah, que se foda, eu gosto de você!

- Eu... - Fernando foi pego no contra-pé, aquele pênalti tão bem batido que ele nem mesmo apareceu na foto, bola pra um lado, goleiro pro outro - ... eu também gosto de você!

- E agora seria aquele momento que a gente se beijaria e tudo faria sentido - A jovem designer olhou no fundo dos olhos do redator - ... mas eu não posso te dividir com outra pessoa, sabe? Eu super entendo esses relacionamentos abertos, mas não é a minha praia.

- Não tem ninguém.

- Fernando - Ela demonstrava estar ficando brava - A arrumação do apartamento tudo bem, até a parada da vizinha faz sentido, mas o guarda-roupa, velho... não mente pra mim.

Esse era o momento que ele tanto sonhou quanto temeu. Esperava passar por todo o processo de aceitação sozinho, não havia ninguém em seu plano, talvez alguém da cobertura, mas só como ponto de fuga, não alguém de pegar na mão e caminhar junto. Internamente sorriu de canto. Pensou em um milhão de desculpas, de histórias, mas não. Resolveu dar o salto de fé.

- Eu não sei como você vai me ver depois disso, Bethina, mas eu sinto que posso confiar em você, que posso... - Mesmo sendo redator não era raro as palavras fugirem dele - ... me abrir com você, falar tudo, independentemente de você me entender ou não, a real é que vou despejar meu coração, mostrar minhas cartas sem esperar nada além de compreensão e se, depois de saber isso, você optar por se afastar eu vou respeitar sua escolha.

- Nossa, você é ótimo em enrolar - Ela sorria lhe acariciando o rosto - Agora desembucha.

- Sou um ótimo redator, lembra?

- Ótimo mas enrolão - Riram um instante - Agora fala, vai, tipo esparadrapo, um, dois e...

- Eu sou crossdresser. - Sentiu um Titanic sair do alto de seus ombros tornando-se pó e sendo levado pelo vento em seguida - Pronto, falei.

- Desculpa a ignorância - Ela sorriu amarela - Mas o quê é isso?

- Acho que melhor que falar é mostrar.

- Eita! Assim?

- É - Fernando, tomado por um ânimo incomum levantou-se rumando para o quarto - Espera aí, vou ser rápido!

Como era de se esperar Bethina tentou buscar na internet o significado do termo, mas a bateria de seu telefone havia se esgotado. Como se sentia em casa estando ali puxou da bolsa o carregador já usando uma das tomadas que ficavam logo acima da pequena mesa da cozinha. A chuva havia deixado a conexão extremamente ruim e, por isso, Fernando anunciou sua saída do quarto antes que ela pudesse ter alguma noção do que se tratava ou até mesmo do que pudesse ver alguma prévia do que era.

Fernando estava deslumbrante em um vestido branco de cintura marcada por um cinto rosa-bebê e saia plissada, nos pés uma sandália baixa, maquiagem leve, o cabelo que já tinha um ano sem corte jogado para trás atado com uma presilha com um laço roxo escuro. Praticamente o mesmo visual que havia usado no ano novo naquele BDSM Camp. Claro que o espelho lhe deu coragem. Quase puxou de dentro de si a Fernanda, mas sentia ela cada vez mais distante, por isso, tudo bem. Saiu do quarto indo na direção da cozinha.

Bethina não soube o que responder. Seu primeiro olhar não reconheceu quem era. Lembrava vagamente Fernando, mas tinha a silhueta feminina, pernas depiladas, rosto liso como porcelana, o cabelo brilhava como uma plantação de trigo. Fora a escolha da peça, estava perfeita demais para um homem escolher e, ainda mais, vestir. Foi aí que teve um estalo e se lembrou da camisola larga. Tudo fez sentido na sua cabeça, a equação se completou e viu a tela toda. Mas, mesmo com tudo encaixado, estava em choque e isso era nítido no seu olhar e reação do corpo.

- Eu... - Ela tentou puxar umas palavras de dentro - ... não sei o que dizer - Tantas palavras enchiam a boca dela mas nenhuma ousava sair - Essa... isso... é... você mesmo, Fernando?

- Sim - Se olhou um instante - Então, crossdresser é isso.

- Você é gay? - A pergunta era válida, mas saiu em um tom agressivo - Quer dizer, sem querer ofender... mas você é gay, bi ou qualquer coisa assim?

- Não sei ao certo - Fernando caminhou na direção da jovem que estava paralizada, apenas os olhos e a boca mexia, todo o resto estava preso por correntes invisíveis - Enfim é isso, crossdresser é a pessoa que gosta de se vestir, de se sentir, de ser, ainda que por pouco tempo, do outro sexo.

- Tipo travesti? 

- A tradução seria tipo isso... mas o termo acabou pejorativo - O batom nude tornava o sorriso dele mais vistoso - E sabe como é, as palavras tem poder.

- T-tem sim... cara... eu nem sei o que dizer, tô, literalmente, em choque.

- Eu imagino - Ele se aproximou pegando a mão dela que, como se o toque fosse ácido, puxou o membro inteiro - Que foi?

- Não sei - Ela se levantou - Eu realmente não sei o que pensar disso tudo.

- Sei como é.

- Eu... melhor eu ir nessa, a chuva já passou.

- Bethina, espera - Antes que ela pudesse chegar à porta ele a interrompeu - isso não muda nada do que eu sinto por você, pelo contrário, eu abri o jogo porque eu realmente gosto de você.

- Tá bem, Fernando... - Ela se desvencilhou, destrancou a porta - ... Fernanda ou sei lá qual o nome que você usa.

- Pode me chamar de Fernando mesmo - a porta estava aberta, pela primeira vez não sentiu nenhum medo em estar do completamente montado do lado de fora da sua caverna - Eu sei que precisa de um tempo pra digerir tudo isso, mas olha - Ele a virou para si já na porta do elevador que subia - Se tiver qualquer dúvida me manda mensagem, me liga, me chama de alguma forma...

A verdade é que ele queria dizer que não conseguia mais imaginar uma vida sem ela, fosse por dupla de criação, fosse pra almoçar, jantar, transar, fazer amor, sair comprar roupas, dividir o guarda-roupas, juntar as escovas de dente. Queria dizer que amava ela. E ela, seguramente, queria dizer o mesmo, mas não disseram. Claro que Bethina estava em choque, a situação era nova e completamente inimaginável, ainda mais pra sua criação cristã, obviamente que já tinha tido algumas experiências nada ortodoxas, mas... isso? Nada fazia sentido, pelo menos ainda não.

- Tudo bem - Pela primeira vez nos últimos minutos, ela sorriu enquanto a porta do elevador abria - Se cuida.

E foi assim que esse apartamento viu, mais uma vez, ela indo embora e ele ficando parado ante o diminuto meio de transporte que seguia para dezenas de metros abaixo. Quando o número no visor virou letra Fernando deu-se conta de que estava completamente montado, do lado de fora do apartamento e que, por algum milagre nenhum vizinho havia visto. Embora, agora, sentia-se tão forte que nem mesmo dedos apontados, risos, chacotas lhe fariam mudar. Precisava de tempo agora.

sábado, 21 de setembro de 2019

CdF: Temporal

A semana tinha começado estranha, já conseguia pisar, mas não queria arriscar a sair com a bicicleta, o céu - e a previsão do tempo - davam como certa uma daquelas tempestades torrenciais no final da tarde e, convenhamos, pedalar na chuva, com um pé que havia retomado o tamanho mais próximo do normal não era uma boa ideia. Por isso pedi um carro pelo aplicativo e quase cochilei com a velocidade e a morosidade do trânsito da Metrópole naquela manhã de segunda-feira.

Por alguma razão estranha sentia que devia me abrir com Bethina, falar tudo que queria, talvez confessar a atração. Foi impossível não sorrir de canto lembrando do jogo The Sims onde era possível confessar atração. Foda que já tinha tido o oba-oba. Ao mesmo tempo que pensava em falar tudo sentia que não devia. Soltei um suspiro alto.

- Tudo bem? - O motorista me interpelou - Desculpa me intrometer, mas o senhor tá com uma cara preocupada...

- É? - Fiz careta, atitude típica de fuga - Talvez esteja um pouco.

- É com mulher? - Ele sorriu de canto, mantive a careta - Ou homem, sei lá, os dias hoje andam tão diferentes.

- Verdade - Resolvi jogar verde - Cada dia mais fluido.

- Como diria o poeta "O terceiro sexo, o terceiro mundo são tão difíceis de entender".

- Gostei da referência!

- Eu sou do sul, aí acabei, por assim dizer, doutrinado por essas bandas na juventude, depois vim morar pra cá.

E assim, um trajeto que eu faria em pouco menos de uma hora e que hoje estava levando mais de uma hora e meia, passou voando em uma gostosa conversa com um motorista de aplicativo até chegar à empresa. Agora era hora de encarar Bethina e decidir o que fazer.

- Ah, seu Fernando - Ele abriu o vidro antes de ir embora - Se eu fosse o senhor eu falava pra ela!

Se os antigos escritores diziam que um banco de taxi era ideal para se debater problemas os motoristas de aplicativo tomavam o lugar deles. Pensando bem, terapia nada mais era que um banco de taxi: uma pessoa que te conhece minimamente, num ambiente controlado e que, no fim, você vai ter que pagar. Muito embora a terapia era como se fossem várias viagens com o mesmo taxista por meses. Já no elevador Borges me tirou dos meus pensamentos.

- Fernando, preciso de um favor seu.

- Chora!

- Então, cara, preciso que você faça uma coletinha de briefing lá na operação - Ele me entrou uma pastinha com meia dúzia de folhas - A Rafaela me pediu pra fazer um material interno e eu precisava fazer isso, só que eu preciso dar uma saída agora de manhã - Ele se aproximou, atitude típica de quem quer segredar algo - É aniversário da patroa e eu quero dar um presente fodão mesmo saca? Só que eu só lembrei agora e preciso ir resolver isso... pra todos os efeitos eu fui buscar um material em um fornecedor que fica no meio do caminho e tals, quebra essa pra mim?

- Claro pô - Homens sendo homens - Vai de boa!

- Pô, brigadão cara, você me salvou! - Assim que o elevador abriu notei que Bethina ainda não havia chego, deixei minha mochila na cadeira, peguei caneta, umas folhas em branco e o celular para gravar o briefing interno - Depois a gente acerta!

- Tranquilo! - Eu até já imaginava formas de cobrá-lo depois - Até mais!

Dito isso subi um andar pelo elevador. O sedentarismo matava, mas não queria procrastinar isso, precisava fazer logo e voltar para minha mesa, sentar com Bethina e resolver essa parada de uma vez por todas. Claro que meu querer quase nunca está relacionado ao acontecer e a reunião durou mais de duas horas além de uma passada por setores menores dentro da operação para ver se tinha alguma ideia. Quando vi já faltavam poucos minutos para o almoço.

Ao passar por minha mesa notei que ela não estava ali, apenas a blusa pendurada na cadeira deixava claro que alguém esteve ali. Provavelmente ela saiu para o almoço mais cedo, conforme eu a instruí na primeira semana na empresa. Garota esperta. Garota não. Mulher. E que mulher. Relembrar ela, na minha camisola, era algo que eu dificilmente esqueceria, ainda mais pelo oba-oba no fim.

No restaurante nem sinal dela. Nada na praça em frente. Diversas pessoas da empresa almoçando ou saindo do almoço, até mesmo Borges - agora com uma sacola de loja cara nas mãos - parou para comer antes de guardar o presente no carro. Sentei no banco deixando o processo digestivo começar. Uma parte de mim dava graças de não ter visto ela hoje, porém outra parte, maior, estava ansiando pelo encontro e uma conversa esclarecedora. Merda. No mesmo instante que minhas dualidades debatiam-se o celular vibrou. Mensagem. Merda dupla. Puxei do bolso. Freya? Estranho.

"Fernando, acho que você pode confiar nela, é boa pessoa. Abre teu coração e confia."

Do que diabos a aprendiz de dominadora estava falando? Oras, respondi à altura de meus pensamentos.

"Que? Do que está falando?"

No exato instante que a bateria mostrava sessenta e um porcento a resposta rápida, como era de se esperar dela.

"De Bethina, vocês precisam conversar. Relaxa que não vou falar pra ninguém. Se cuida."

Desde quando Freya virou conselheira amorosa? Via ela tão ou até mais fria que Rafaela, sempre pareceu assim, mesmo com aquele "presente" no banho ela nunca demonstrou sentimentos, não duvidava em nada ela tomar o posto de "executiva-domme-má" da casa de Rafaela logo-logo. No entanto ela tinha razão e, assim, a batalha entre os lados estava vencida pelo lado da verdade, de abrir o jogo e ver no que dava. Pouco XP, uma quest grande, tendo que tirar mais do que doze no D20. Não era impossível, mas também não era fácil.

Ocorre que aquela tarde e segunda foi a mais perfeita demonstração de dedo no cu e gritaria. Por mais que se guardem arquivos na nuvem, servidores podem sair do ar, internet pode cair e sites de empresas saírem do ar, sobretudo com um ataque DDoS que derrubou e zerou o servidor principal da empresa. Por ser um velho na internet mantinha uma parte do conteúdo no meu HD externo, mas o resto precisou ser refeito e foi impossível qualquer conversa, mesmo com Bethina a menos de dois metros de mim. Quando faltavam poucos minutos para o fim do expediente o site estava no ar novamente junto com quase todas as suas páginas - as que faltavam eram as que precisavam passar por reformas naturalmente e seriam refeitas amanhã -, artes e textos.

Me demorei alguns minutos após o expediente para monitorar o upload seguro dos arquivos no servidor e no meu HD externo - backups nunca são demais - ao que Bethina fez o mesmo só por segurança. Foi aí que um trovão rasgou o céu e fez os prédios vizinhos apagarem e o gerador manter o mínimo possível de tomadas ligadas. Merda. Meu celular tinha quatro porcento de bateria. Acompanhado do som que ecoou por toda aquele prédio semi-vazio veio a chuva que pareceu jogada por baldes tamanha a intensidade. 

- Precisamos... - falamos juntos, fiz sinal para que ela falasse primeiro - Então, Fernando, precisamos conversar.

- Eu sei... - Ela me olhou, que rosto lindo, puta merda, eu acho que estou apaixonado, fodeu - ... lá em casa? Na sua casa? Num bar?

- Eu moro mais longe.

- Quão longe?

- Três quarteirões pra frente, na mesma rua.

- Sério?

- Yep, vamos pra sua casa.

- P-pode ser - hesitei um instante - Quer dizer, isso se não se importar de encontrar com um alguém fictício.

- Nossa - Ela virou os olhos - Tinha que ser escorpiano mesmo, puta merda, olha esse nível de vingança.

- Esse negócio de signo - a mulher que ficava na recepção passou pela gente rumando para o carro que estava parado quatro metros longe da porta da empresa - Não é de deus!

E ela sumiu na chuva entrando no carro que saiu. Foi impossível não gargalhar. Fiz Bethina chamar o carro no aplicativo, pois meu celular estava sem bateria. Fomos quase em silêncio o trajeto todo, comentamos coisas da empresa, a correria daquele dia, o tamanho da chuva e corroboramos a reclamação do motorista sobre o tamanho do trânsito e a assertividade da previsão. Corremos até o hall de entrada do prédio.

- Seu Fernando - o porteiro me interpelou - Chegou esse pacote aqui pro senhor, tem umas letra estranha no verso.

Sorri agradecendo e já entrando no elevador seguido de Bethina. Agora era a hora de falar tudo, mostrar tudo, mostrar pra ela o tamanho real de tudo que eu sou e o que aquilo tudo é pra mim. Abrir o coração. Seria meu salto de fé. Alea jacta est.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

CdF: Arrumação

Aquele feriado foi  tudo que tanto a empresa quanto Freya precisavam para voltar cem porcento focados. Enquanto trabalhava em sua mesa tentava equilibrar a dor que havia ficado em uma de suas nádegas na sessão de final de semana. Gostava disso mesmo que lhe proporcionasse algum desconforto no dia-a-dia.

Se espreguiçou pensando em dar uma passada na comunicação ver como estavam as coisas, ver aqueles viciados em cafeína queriam algo mais. Riu do pensamento enquanto lembrava que lá estava Fernando, uma eterna incógnita frente tudo que ela, dona Rafaela e Vali viviam. Enquanto se levantava para ir à ronda viu o horário. Pouco além do meio-dia. Rafaela estava ocupada conversando a sós com investidores via vídeo chamada e sabia, por experiência própria que não deveria interromper sua senhora nesses momentos, ainda mais com algo tão mundano como comer.

Estalava o pescoço ora para a esquerda, ora para a direita quando viu, de esguelha, um vulto passando para o terraço. A submissa sabia que Fernando gostava de ficar ali no pós-almoço, aproveitaria para pegar um ar enquanto via se ele e o setor precisava de algo. Perfeito. Ou quase, afinal, subir escadas com salto, mesmo para ela, era algo a ser feito em ritmo mais lento. Sorriu de canto enquanto lembrava de como era molecona quando conheceu Rafaela, raramente usava salto... tempos estranhos.

Conforme se aproximava do clarão que a porta aberta gerava ouvia alguns grunhidos baixos que lembravam choro. Seu instinto disse para acelerar o passo, afinal, choro e locais altos não combinam. Ainda mais dado o histórico de Fernando. Ponderou chamar ajuda, afinal, mesmo com a academia que fazia não sabia se teria força física suficiente para segurar um homem com mais de um e oitenta que, apesar do crossdressismo, tinha um porte avantajado.

Ficou cega pelo excesso de luz não mais que um par de segundos enquanto era guiada pelo som. Conforme a visão voltava ao normal o vulto em nada lembrava de quem ela achava ser. Teve de forçar um pouco a memória para lembrar de Bethina, talentosa designer contratada nos primeiros dias do ano, ela havia deixado currículo no apagar das luzes de dezembro e coube à Freya entrevistá-la. Se não lhe falhava a memória ela e Fernando faziam uma ótima dupla de criação que garantia ao setor de comunicação da empresa uma desenvoltura ágil e sempre focada nos assuntos que estavam bombando, o que justificou o bom aumento de engajamento das redes sociais da empresa.

Por um instante ficou em dúvida sobre se aproximar ou não. "Girls support girls" pensou. Bethina estava abraçada aos joelhos, calça jeans normal, tênis all star, uma jaqueta fina por cima de uma blusa discreta de personagem de quadrinhos. Freya era quase o oposto: sapato de salto, uma saia midi marrom claro, uma camisa branca de botões com paletó um tom mais escuro que a saia e a coleira discreta que sempre usava como prova de que ela tinha dona.

- Oi... - Freya não sabia como começar, tanto tempo ignorando pessoas chorando ora de dor, ora de prazer que perdeu o tato - ... Tudo bem?

- Ai - Bethina enxugou o rosto com a manga da blusa - Desculpa dona Freya eu...

- Relaxa - Por dois pares de segundos ficou admirando o termo "dona Freya", era imponente - Achei que era outra pessoa... enfim, tá tudo bem? Não pude deixar de te ver chorando.

- Não sei sabe? - Bethina respirou fundo - Você já teve a sensação de conhecer uma pessoa que é a ideal pra você e do nada descobre que ela mente?

- Sei sim - Freya mentiu, mas não era o momento de ser a aprendiz de dominadora, era hora de ser empática - Aconteceu contigo?

- Foi... - a resposta foi dada em um fade out que foi se perdendo no ar até que a designer ficasse apenas com o olhar perdido no horizonte com os lábios afastados - ... doi né?

- Doi sim - "Pobre menina, mal sabe o quê é dor" pensava Freya evitando apoiar o quadril inteiro no banco de concreto - Quer falar sobre?

- Não... não quero te incomodar dona Freya.

- Fala - Já não tinha fome mesmo, então ponderou que bater papo com uma pessoa humana, com problemas humanos lhe desse alguma nova experiência, quem sabe lhe inspirasse em voltar a escrever poesias - Não precisa disso de "dona", pode falar.

- Então... - Era a brecha que Bethina queria para poder desabafar com alguém, tinha passado o final de semana inteiro remoendo toda aquela situação que havia tido com Fernando e precisava de alguém pra desabafar, colocar tudo pra fora - ... Esses dias saí com uma pessoa que estou afim sabe? Só que ele não me disse que era comprometido nem nada, aí quando descobri me senti enganada.

- Nossa - Freya quase bocejou frente ao dilema da jovem e lembrou da abertura daqueles programas sensacionalistas que Vali às vezes assiste "pessoas reais vivendo a emoção de toda uma vida" e teve que disfarçar sutilmente o riso, para que não fosse flagrada incentivou a continuação da narrativa - E como você descobriu?

- Eu achei o apartamento muito arrumadinho sabe? Cozinha limpa, banheiro limpo, roupas no varal... aliás - Bethina ganhou ânimo em falar - falar em varal, acredita que ele teve a pachorra de me dizer que tinha lavado roupa da vizinha porque a máquina de lavar dela tinha quebrado e por isso tinha umas saias, um vestido e uma camisola carerríma no varal? - Ela tomou um fôlego - Claro, essa história até era plausível, eu mesma já lavei roupa pra vizinho e tals... mas o pior foi quando eu fucei o guarda-roupas, posso ter feito coisa errada, mas é uma auto-proteção que tenho, sempre tento descobrir o máximo possível das pessoas que me relaciono até pra me precaver de surpresas futuras.

- Tá certa - Algo na cabeça de Freya lhe dizia que ela já sabia onde essa história acabaria - Mas e o que tinha no guarda-roupas?

- De um lado roupas normais dele e do outro cheio de roupas de mulher, saias, vestidos, sapatos...

- E o que ele disse? - Ela já tinha uma ideia mais bem formada, ou era só uma grande coincidência - Tentou se explicar?

- Ah, nem sei, fiquei tão puta da cara que saí de lá, ele até mandou mensagem querendo conversar, ligou umas duas vezes... mas nem dei bola.

- Desculpa a indiscrição... - Era hora de ver se a dúvida de Freya se tornaria verdade - É alguém que eu conheço?

- É... - Bethina teve um estalo de que talvez isso fosse proibido na empresa - Talvez... eu não quero complicar a pessoa...

- É aqui da empresa? - Estava esquentando - Quero dizer, se for não estou aqui pra julgar... você não está falando com a dona Freya, está falando com uma amiga - A submissa tomou a mão de Bethina na sua - Pode confiar.

- Tá bem... - A jovem respirou fundo - É o Fernando, ali da comunicação...

- Entendi - Freya sorriu de forma sincera, ela entendeu tudo que havia acontecido, mas não podia se intrometer no fato dele não ter falado nada sobre o crossdressismo, essa decisão era dele - Tu devias falar com ele - Tinha que se controlar pra não falar tudo - Dá uma pressionada... aposto que ele fala.

- É?

- É sim, se você gosta dele como parece, pressiona.

- Você tem razão - Bethina se lembrou com quem falava - Digo, a senhora tem razão... vou fazer isso, obrigada!

- Não por isso - Freya se sentiu estranhamente bem em dar uma de cupido, mas ela sabia que Fernando tinha que ter alguém e esse alguém parecia se desenhar na jovem designer. - Fica bem, qualquer coisa sabe onde me encontrar.

A aspirante à senhora saiu caminhando com passos lentos e se sentindo mais leve. Na escadaria pensava em todas as variantes e no quanto aqueles dois pareciam um casal interessantemente interessante. Ao sentar na sua mesa ponderou um instante e, com dedos ágeis, redigiu uma mensagem enviando para Fernando em seguida:

"Fernando, acho que você pode confiar nela, é boa pessoa. Abre teu coração e confia."

Passados alguns minutos a tela do aparelho se acendeu.

"Que? Do que está falando?"

Como sempre Fernando ficava evasivo quando colocado contra a parede. Freya pensou que esse era um comportamento natural ainda mais de crossdresser que precisa ter sempre uma resposta na ponta da língua pra explicar eventuais flagrantes, por isso resolveu ser direta.

"De Bethina, vocês precisam conversar. Relaxa que não vou falar pra ninguém. Se cuida."

Mensagem enviada e Rafaela chamou aos berros a submissa à sua sala. De volta aos afazeres da empresa, o dia ainda estava na metade. Mas sentia que tinha feito uma boa ação, até mesmo a dor havia lhe deixado em paz e, sem deixar sua senhora saber o motivo, sorriu ao entrar no ambiente.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

CdF: Acusação

Assim que abriu os olhos Bethina se perguntou mentalmente que cortinas eram aquelas. Sem resposta tentou olhar em volta e constatou que o edredom não era o seu também, muito menos a cama. Tentava lembrar onde estava "pensa garota, pensa, anda Bethina Soares, pensa onde você foi ontem" e assim alguns flashes com lembranças da noite anterior lhe vinham à mente como se visse tudo em terceira pessoa, foi quando a realidade lhe chicoteou em pensamento "puta merda, Bethina". Tinha vindo ver como estava Fernando e eles acabaram na cama.

Com cautela duma gata que caminha por ambiente hostil ela foi saindo da cama buscando mover-se exatamente o necessário para que não acordasse sua dupla de criação. Estava nua. Longe disso ser uma novidade pois sempre gostou de dormir assim, porém agora estava numa em uma casa que não era a sua. Com a habilidade de caminhar na ponta dos pé de quem fez anos de balé quando era menina seguiu para o banheiro recolhendo as suas peças de roupa e a camisola.

Ao entrar no pequeno cômodo notou a limpeza e, seu gene investigador foi ativo. Resolveu fuçar por todas as gavetas. Shampoo de marca boa. Hidratante, algumas lâminas de barbear nas gavetas e creme de depilação. Achou estranho. Já vestida saiu do banheiro rumando para a cozinha. Não tinha engolido tão bem a história da vizinha. Pensava que, provavelmente Fernando tinha um relacionamento que não queria falar sobre, talvez tivessem terminado mas vivessem em um remember e por isso ela trouxe algumas peças pra lavar aqui.

Se sentiu burra de ter achado que aquele gatinho da empresa estava solteiro. Era óbvio que ele tinha alguém e esse alguém poderia aparecer a qualquer momento e flagrar ela aqui e perguntar quem era, o que estava fazendo com a camisola dela nas mãos. "Merda. Merda. Merda." pensava enquanto caminhava de volta pro quarto.

Havia uma última forma de saber se ele tinha alguém, era arriscada, mas era necessária: ver o armário. Se tivesse roupas de outra pessoa era a prova cabal de que tinha mais alguém morando aqui. O que explicaria a cama de casal, a casa arrumada, a decoração bem feita. Até mesmo a prateleira cheia de carrinhos ao lado da televisão tinha uma lógica de arrumação que iam de modelos novos para velhos. Ainda imbuída do espirito felino abriu as portas do guarda-roupa. Calças. Camisas. Camisetas. Bermudas. Tênis. Sapato, tudo bem organizado e limpo. Suspirou aliviada. Talvez ele fosse só bem organizado e a história da vizinha, mesmo não sendo tão crível podia ser real afinal de contas.

Claro que tinha aberto e fechado duas de quatro portas do guarda-roupas. Fernando ainda dormia, provavelmente embalado pelos remédios e pelo vinho da noite anterior. Com ainda mais cuidado abriu as portas restantes e suas suspeitas se confirmaram: vestidos de várias cores. Diversas saias. Dois pares de sandálias, dois sapatos fechados de salto, na gaveta inferior algumas lingeries... fechou tudo tentando manter uma lágrima dentro do olho. Agora se sentiu a maior burra de todo esse lado da cidade. Fechou as portas e rumou para a cozinha, tinha que pensar na próxima jogada.

Não era uma eximia enxadrista, sempre preferiu dançar a aprender movimentos em um tabuleiro fechado. Café. Resolveu fazer um café. Isso, assim podia pensar melhor. Abriu os armários e não achou nada.

- O que procuras? - Bethina foi assustada pela voz grave de Fernando se aproximando - Se for café ló siento, yo nó lo tengo.

- Quem não tem café em casa? - Manter a personagem, tinha de resolver isso tudo e ir embora o mais rápido possível, sorriu se virando - Bom dia.

- Bom dia - Fernando se aproximou e lhe roubou um selinho enquanto caminhava com alguma dificuldade do tornozelo já bem menos inchado e pegava uma lata de achocolatado e duas xícaras além duma caixa de leite semi-desnatado - Caiu da cama?

- Nunca durmo muito, tento levar nos finais de semana a mesma rotina de acordar da semana, aí não sofro tanto na segunda-feira - Solicita ela tomou as xícaras da mão de Fernando e levou até a mesa - Agora como você vive sem café?

- Ah não, lá vem você de novo com isso.

Riram. Era uma ótima fuga, enquanto por fora conversavam amenidades sobre temperos e o tornozelo de Fernando, Bethina pensava em formas de sair dali o quanto antes, sem aquele confronto que queria fazer. Sabia que mais cedo ou mais tarde isso aconteceria, se conhecia a ponto de saber que logo ia falar. Por isso seu novo plano teria que dar certo agora.

- Bom, Fernando, eu vou indo então... - ela se esticou olhando o tornozelo dele, agora parecia algo pouco menos que uma bola de tênis - ... já sei que você vai ficar em boas mãos.

- Vou? - Ele a olhou com estranhamento - Como assim?

- Você não disse, eu também não perguntei... mas é meio óbvio que você tem alguém né.

- Claro que não - Fernando seguia com a cara desconfiada, ainda sem ter acordado completamente e em uma inocência - Não tô entendendo nada.

- Olha, Fernando, tudo bem, relaxa. - Ela se levantou - Sei que tem alguém que pode voltar a qualquer momento e...

- ... E não tem não - Com o passo cambaleante ele se aproximou - De onde tirou essa ideia?

- As roupas no varal, a casa limpa... - internamente ela sentia o coração despedaçar, mas era preciso tirar logo antes que a coisa ganhasse um contorno maior e se tornasse mais difícil de sair - ... fora as ropas no guarda-roupa, cara, é óbvio que você tem alguém!

- Quando foi que... - Ao mesmo tempo que Fernando queria que Bethina ficasse com ele porque ele também nutria algum sentimento por ela, tinha a ciência de que não poderia, sabia que ela não entenderia o crossdressismo e acharia que ele era qualquer coisa, menos um fetichista, alguém que apenas curtia as roupas e uma ou outra ação, mas na maior parte do tempo tinha mais desejos por mulheres do que por qualquer outra coisa - ... Você fuçou meu apartamento inteiro? 

- Fucei sim - O tom de voz agora ganhava um tom tremido, nitidamente uma mágoa - agora vou nessa, se cuida. 

E Bethina saiu pegando a bolsa e saindo porta afora. No elevador segurou as lágrimas que queriam cair a todo custo, enquanto o diminuto transporte seguia para o saguão chamou um carro pelo aplicativo que, esse sim, viu as lágrimas da jovem no trajeto até o apartamento dela.

sábado, 31 de agosto de 2019

CdF: Sublime

Faziam uns bons dois meses desde aquela semana fatídica, amanha era véspera de feriado que Rafaela, num ápice de bondade, havia decidido fazer prolongado - na realidade era para fazer algumas pequenas reformas internas necessárias depois do princípio de incêndio, colar o teto de gesso de volta e essas coisas que, com a empresa em pleno funcionamento, acontecem muito devagar, quase parando. Por isso teria quatro dias de completa folga, quer dizer, tinha de ir à terapia sexta começo da noite, talvez passasse a tarde no shopping, ver algum filme ou apenas acompanhar o movimento de seres humanos e, sem sombra de dúvidas, namorar vitrines.

Claro que o plano era ótimo demais para acontecer perfeito e, no dia que antecedia o feriado, na esquina de casa um celta prata me fechou e fui ao chão. Minha fiel companheira perdeu um de seus pedais e eu tive uma torção no pé direito, no calor do momento minha única reação foi xingar o motorista, recolher a bicicleta e caminhar até em casa, porém, depois do banho, com o corpo frio, meu tornozelo ficou do tamanho de um abacate maduro. Mas é como diz o samba: deus dá o frio conforme o cobertor. Por isso fiz uma bela compressa de gelo, pomadas e, com sorte, até amanhã estaria tudo bem.

Obviamente eu ter optado pela área de criação e não planejamento tinha um sentido: eu era ruim planejando quase qualquer coisa. Se ontem meu tornozelo era um abacate maduro hoje podia dizer que era uma melancia subdesenvolvida. Pisar era impossível e a ida matinal ao banheiro foi possível com muito esforço. É a vida né? Tomei um bom analgésico e, como era véspera de feriado, eu sabia que não teriam grandes tarefas na empresa, nada que eu não pudesse fazer de casa, aliás, esse era o sonho de Rafaela naquele delírio de uma sissy at home. A ideia excitava, mas não empolgava e... deixa pra lá. Puxei o celular mandando mensagem para o Borges. 

Ele entendeu, passou pouca coisa para eu fazer. Apesar do tom turrão na maior parte do tempo meu diretor direto era uma boa pessoa, bastante compreensível. Me reboquei até o computador e fiz tudo que ele mandou, no caminho aproveitei para colocar algumas roupas para bater, umas calças, camisetas, duas saias, um vestido e a camisola que havia ganho. Com os primeiros ares de frio eu dormiria de pijama mesmo por isso a camisola seria lavada e colocada em um pacote fechado a vácuo para manter livre de qualquer chance de bolor. Adorava o frio por não ser calor, mas aí a passar frio? Sem chance. Voltei ao computador e lá estavam algumas correções pontuais - literalmente, algumas pontuações eram necessárias - e quase senti saudade de trabalhar em casa, fazendo meus freelancers. Não, melhor não. Folga era bom, mas full time em casa? No way.

Quando terminei as correções dei pitaco em algumas artes que a Bethina havia me mandado, ela se propôs a vir me ajudar em casa, afinal, ela morava sozinha também. Decididamente estava com a singela impressão de que a talentosa designer estava dando em cima de mim. Ou era coisa da minha cabeça? Sempre fui péssimo em notar isso. Melhor estender a roupa para ocupar a cabeça com outra coisa. Pedi comida pelo delivery, sem saco nenhum pra cuidar de panelas.

E assim o dia que tinha tudo para ser proveitoso na empresa se tornou um tedioso dia em casa comendo lanche do podrão da esquina que dava desconto e assistindo programas de fofoca. Quase como uma auto punição por não estar trabalhando. No aplicativo de mensagens Bethina perguntava meu endereço. Decididamente ela já vinha arrastando asa por mim haviam algumas semanas, porém é como diz aquele meme "sem tempo, irmão". Não estava com o menor ânimo para engrenar em algum relacionamento, muito menos com colega de empresa. Aliás, provavelmente no regimento interno da empresa desestimulava esse tipo de conduta.

Se eu pudesse encontrar a pessoa que inventou os analgésicos eu daria um beijo na boca dele. Que invenção maravilhosa. O tornozelo seguia fodido, mas a dor era perfeitamente suportável a ponto de me fazer estender a roupa na área de serviço que via o sol da manhã e ficava fora do alcance da visão da sala. Quando rumava de volta para o sofá a campainha soou. Bom, não é porque eu estava desinteressado em um romance agora que eu precisava parecer um jeca tatu. Desamarrotei a camisa com a mão, arrumei a bermuda, passei a mão pelos cabelos, chequei o hálito... tudo dentro do prazo entre um "já vou" e um "bem vinda à minha caverna".

- Com licença - Ela pediu para entrar, seria ela uma vampira? - Nossa, seu tornozelo ta horrível!

- Tá? - Olhei pra ele, agora a melancia subdesenvolvida parecia estar pronta para madurar - Graças aos analgésicos nem sinto dor.

- Na boa, Fernando - Bethina trazia consigo uma sacola de compras que deixou sobre a mesa que ficava na divisa entre a sala e a cozinha - Você devia ir num hospital ver se não quebrou nenhum osso.

- Não precisa - Com dor mexi os dedos do pé - se tivesse quebrado eu não fazia isso...

- Mesmo assim, vai que é uma luxação? Um tio meu caiu do moto e ficou com o pé assim todo cagado, quando foi no dia seguinte parecia aquelas imagens que foram ampliar sem segurar o shift sabe?

Rir, era tudo que eu precisava nesse momento. De verdade. Talvez fosse uma boa ter ela por perto nesses dias. Dias? Eu pensei em dias? Não. Nessa noite, só até o jantar depois ela pode ir pra casa. Obviamente eu não falaria isso na cara dela, mas... ou será que isso era minha forma de fuga? A terapeuta dizia que era possível ser feliz sozinho, no entanto não era tão divertido. Por que caralhas eu estava pensando nisso justamente agora? Hora de dar uma de louco e mudar o rumo da conversa.

- Mas e o que trouxe na sacola?

- Janta... comprei uns capeletes, um molho pronto, queijo ralado...

- Que sofisticada ela... - a gente tinha por hábito se zoar, na brincadeira mesmo - Só falta um bom vinho hem

- Tcharaan - Ela tirou uma garrafa de vinho argentino, reconhecia o rótulo de longe - Não falta mais!

- Pensou em tudo hem... daqui a pouco tá roubando o lugar da Karen e do Lucas no planejamento.

- Ah não, adoro a criação, fazendo as artes me sinto tão...

- ... Viva? 

- Exato, bem isso! - Ela pegou os ingredientes - Agora me indica onde fica cada coisa na sua cozinha que eu vou fazer o jantar!

Não me opus, os analgésicos estavam perdendo o efeito e não queria forçar, por isso fui indicando tudo e Bethina foi se virando bem, achou tudo, serviu o vinho e só depois do brinde e do primeiro gole ela se ligou que eu estava tomando remédio e que poderia dar algum efeito. Ri da preocupação dela enquanto dizia que não ia dar nada e ajudaria até a dormir melhor.

- Você cozinha mó bem hem... devia entrar no masterchef.

- Masterchef tirar do pacote e aquecer? - Rimos - Mas vem cá... você não me disse que namorava nem nada.

- E não namoro uai - Fiz careta, completamente curioso - Faz anos que não namoro inclusive.

- É? - O semblante dela era confuso - É que vi umas roupas no varal e... 

Alerta vermelho, fodeu, fodeu, fodeu, fodeu, fodeu lindamente, todas as sirenes internas tocando no mais alto volume. Setor de criatividade, uma resposta agora. setor de controle de micro-expressões: faça seu trabalho. Setor de planos B: prepare algo. Setor de planos C, D, E vocês também façam planos. Todas as ordens dadas e por fora não demonstrava a menor expressão de terror.

- A máquina de lavar da vizinha quebrou e ela perguntou se podia lavar aqui - Setor de mitomania, parabéns, vai ganhar uma promoção - Só que isso foi antes de eu torcer o pé né - Setor de "mudando de assunto", parabéns pra você também. - Mas amanhã, mais tardar sábado ela vem buscar.

- Se quiser - A expressão dela dizia que a história colou - Eu posso levar até ela.

- Nem - Bebi um gole de vinho - Ela é toda enrolada com os pais que moram aqui perto que estranharia ela vir só semana que vem...

- Olha... ela tem um ótimo gosto pra roupas - Bethina jogou verde? Esse grão de café seria comido por uma civeta e defecado antes de madurar - Aquela camisola ali é linda e bem cara...

Momento de um paradoxo estranho na minha cabeça: Ao mesmo tempo que queria manter a história da vizinha atrapalhada que veio lavar roupa aqui, eu queria ver Bethina naquela camisola. Não fossem as várias sessões eu dificilmente conteria uma ereção aqui mesmo, na mesa pós jantar. Ah, que se foda, só se vive uma vez.

- Vê tá seca e experimenta - Bebi um gole de vinho, o escorpião do meu signo balançou o rabo - Ela não precisa saber.

- Será? - O vinho falava alto, ela sorriu lascivamente e levantou voltando com a peça nas mãos - Eu acho que ela é bem maior que eu... quer dizer, sua vizinha deve ser bem mais alta e ter um corpo mais largo - Ela me olhou - Meio tipo você.

- Então tu diz que não serve?

- Serve, vai ficar beeeem folgada, mas serve.

- Então experimenta ué.

- Será? - Ela hesitou um pouco mas mordiscou o lábio e foi até o banheiro, voltou depois de dois pares de minutos em que fiquei pensando se podia falar pra ela sobre o crossdressismo, sobre minha relação anterior com minha antiga mestra e tudo mais, essa semana a terapia prometia, a porta do banheiro abriu - O que achou?

Ela estava deslumbrante. A lingerie dela era de dois tons de lilás mais escuros que a camisola o que fazia transparecer a pele dela levemente arrepiada, o caimento não era perfeito, a parte da cintura realmente ficou muito folgada, o que foi atenuado pelo quadril largo de Bethina. Os seios, apesar de nunca transparecerem por baixo das roupas habituais dela, eram na medida. O cabelo afro com um volume mais baixo, uma maquiagem suave completaram o visual. Decididamente o vinho e seus mistérios. Fiquei sem palavras, logo eu, um redator, completamente sem palavras.

- Fala logo, Fernando - Ela corou rindo de nervosa - Tá me deixando sem graça assim.

- Você ficou linda! - Baixei o tom de voz deixando as palavras caírem dentro do restante de vinho da taça - Eu ia...

- Você achou? - O tom de voz dela ficou sensual de repente - Tem mais uma coisa na sacola do mercado...

Decididamente ela era felina. Caçadora nata. Não fosse minha torção ela teria feito outra estratégia. Os planos dela agora pareciam tão óbvios que eu passei a me sentir a pessoa mais burra do universo. Com um pouco de dificuldade peguei a sacola que ela havia deixado no canto da mesa. Um pacote de preservativos. Não pude deixar de sorrir de canto e aceitar a situação. Não que eu não achasse ela bonita, mas... sem "mas", quando eu saí daquele paraíso BDSM patrocinado pela Rafaela e sua trupe eu decidi que estaria mais aberto a todas as experiências que pudesse vir a ter. Minha terapeuta inclusive me estimulou a isso, a sempre ficar de radar ligado e não recusar as oportunidades da vida.

Foi assim, com o tornozelo agora com tamanho semelhante à uma laranja que a camisola foi ao chão junto com a lingerie de Bethina e minha roupa de ficar em casa. Tudo no caminho para a cama. Com dois corpos cheios de carboidratos, álcool e desejo o ato se consumou. Sem peso, sem neuras, sem dogmas, sem pressão alguma.  O corpo. O cheiro. O beijo quente. O suor. O movimento. O êxtase. O ápice compartilhado. Posso dizer sem medo de estar exagerando que foi a transa mais perfeita que tive em anos. Quase me veio, antes de dormirmos com o fino edredom sobre os corpos suados duma noite quente de final de verão, a palavra sublime.

Dormimos ao som da cidade que se movia dezenas de metros abaixo. Dormimos de forma sublime.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

CdF - Reatar

A semana já tinha começado estranha, em plena segunda-feira de manhã os alarmes de incêndio soaram em todo o prédio. Um princípio de fogo se fez em um dos servidores lá do setor de T.I., provavelmente um inseto havia entrado nos fans que mantinham a temperatura controlada e causaram um superaquecimento que, em uma máquina de alto desempenho, foi a fagulha que causou o fogo. Quem diria que a origem do termo bug voltaria tão a tona assim. Credo.

Na terça um pedaço do forro do andar logo abaixo de onde o projeto de incêndio ficou caiu, por sorte não caiu na cabeça de ninguém. Na quarta o Borges apareceu de pé quebrado, havia caído na entrada da empresa horas antes, isso explica o atraso. Eu havia tomado algumas fechadas no trânsito, mas nada que eu pudesse reclamar, Bethina estava com intoxicação alimentar de atestado. A quinta tudo nublou, choveu horrores, alagou as ruas próximas da empresa, mas não chegou a alagar dentro da empresa, nesse dia eu já tinha noção e deixei minha fiel companheira de trajeto no estacionamento mais alto. De quem foi a ideia de asfaltar tudo impedindo o escoamento de água?

Logo ao chegar na sexta já vi a linda BMW de Rafaela sem uma das lanternas traseiras, o para-choque completamente amassado, a caixa de roda torta... alguém tinha enfrentado um carro maior e levado uma bela surra. Perdi um bom par de minutos avaliando os estragos quando Freya passou por mim.

- Você é o cara do seguro? - Ela parecia nervosa - Porque se não for sai daí, preciso levar o carro na oficina.

Nem cogitei responder. Eu sabia quem estaria dirigindo no momento. Na operação disseram que uma caminhonete grande furou um sinal fechado e bateu na traseira empreendendo fuga logo em seguida. A recepcionista - que chegou na operação pra pregar - dizia que foi deus que impediu que algo pior acontecesse. Duvido muito, carro desse porte tem tanto airbag que mesmo a maior das pancadas teria sua intensidade reduzida pela tecnologia embarcada. Se alguém foi responsável por nada mais grave ali foram os engenheiros alemães da Bayerische Motoren Werke.

Como as sextas já eram com tudo reduzido o assunto do acidente gerou inúmeras teorias, gente dizendo que tinha que benzer a empresa, gente acendendo incenso... até a galera do T.I. sempre metida em tecnologia tinha suas teorias de origem sobrenatural. Eu, como escritor que era, adorava debater as mais doidas e ajudar a tecer outras. Fiquei pensando na terapia essa semana. Seria doido. No meio de tudo isso Rafaela me mandou uma mensagem.

"Com a Freya fora hoje, quero que me ajude com algumas coisas aqui em cima."

Ah pronto, agora sim fodeu de vez. Respondi que já estava a caminho. Parada rápida para atender a um chamado da natureza e nem cinco minutos depois da mensagem eu já estava na porta da sala de Rafaela. Bati duas vezes pedindo licença e entrando.

- Demorou tanto que devia começar a te punir com chicotadas, cada minuto de atraso dez chicotadas.

- Não era má ideia - Ri achando que era ironia, mas o semblante dela estava tenso - Enfim, me chamaste e cá estou eu.

- Fernando - Ela rodou na cadeira se levantando e vindo na minha direção, aquela saia preta que parecia cetim junto com uma camisa branca de material mais fosco junto com a sandália de tiras finas e salto não muito alto diziam que alguém não teve muito tempo para se arrumar, mesmo assim estava linda - Tua sorte é que não posso arrancar teu couro aqui na empresa, se não eu ia te usar pra desestressar... - Ela se apoiou na mesa - Mas eu te chamei aqui pra saber a quantas anda os descritivos dos novos produtos pro site? Pretende terminar nesse século ou como tá muito em cima vai deixar pro próximo?

- Bem... - Juro que pensei em responder que deixaria pro próximo, afinal, faltavam só oitenta anos e que eu não gostava de prazos tão apertados. Devia ser aquela coisa de submisso que não se submete sem bons argumentos para tal, acho que o termo era brat ou algo assim - O Borges ficou de passar o briefing, porém até agora nada... no entanto eu peguei os materiais e comecei a ver por conta, pra ver se consigo adiantar alguma coisa e...

- Puta merda - a voz dela se alterou, oscilou da Rafaela-Empresária pra Rafaela-Domme, agora a coisa ia ficar feia - Eu tô cercada de incompetentes... a vontade é mandar todo mundo embora e contratar gente que saiba trabalhar direitinho, sem reclamar tanto, sem ficar pelos cantos - A crítica era exagerada, haviam poucas maçãs podres no cesto e tanto Borges quanto outros funcionários davam como certas as demissões deles nos próximos dias - Chamar uns chineses que trabalham quietos... também... - Ela pareceu perder o fôlego, se apoiou na mesa - Quer saber... sai daqui você.

- Como quiser - Se havia algo que eu aprendi nesses anos todos nessa indústria vital é que nunca se deve contrariar uma mulher, sobretudo uma mulher que deve estar na TPM, teve seu carro batido e era uma Domme poderosa - Senhora.

Antes que Rafaela pudesse falar qualquer coisa eu saí da sala. Foi uma provocação de leve, nada sério, era só uma que ela me chamaria de moleque e desceria vinte chibatadas. Credo. Quase senti falta da mão leve dela. Freya sim tinha uma mão bem pesada, se bem que no reveillon ela devia estar enfraquecida pelo álcool e a projeto de senhora estava ansiosa em tirar uma boa nota.

Segui pelo pequeno corredor olhando a mesa de Freya de soslaio enquanto pensava em um milhão de coisas e tentava lembrar alguma música para tentar fazer alguma descrição de produto meio genérica, quem sabe Borges, assim que voltasse, pudesse aproveitar algo. Chamei o elevador estalando o pescoço, direita, esquerda. As portas do meio de transporte se abriram revelando Vali. Meu coração parou um instante. Quase senti uma vertigem. Ele não havia mudado quase nada, o cabelo parecia cortado, mas agora estava com uma camisa de botões, calça social, sapatênis... era o cosplay perfeito do pessoal daqui.

- V-vali... - senti meu rosto corar - ... tudo bem?

- Olá, Fernando - Ele saiu do elevador que foi embora para outro andar - Estou bem, e você, como está?

- Tô bem até - Não que não nos falassemos desde o ano novo, mas era apenas por mensagem, nada de voz ou de encontro físico, embora eu quisesse eu nunca propús, ele podia estar chateado e eu queria dar tempo ao tempo. - Eu...

Ele não esperou nada, me abraçou. Correspondi o abraço por reflexo, eu não esperava tal ação dele. Era aquela famosa quest proposta pelo mestre do RPG completamente impossível e, ao rolar o D20, ele tirou 21. Fiquei sem reação. Fechei os olhos.

- Está tudo bem.

- Não, não está... vem cá - Não tinha devolvido a chave do terraço, na verdade tinha tirado uma cópia, adorava fazer a digestão ali em cima. - Precisamos conversar.

- Mas a senhora está...

- Ela tá puta da cara, se você falar um "A" ela vai te espancar ali mesmo, mais a mais ninguém vai conseguir trabalhar direito essa semana, puta semana zicada.

Assim subimos para o terraço. Algumas nuvens escuras se desenhavam no horizonte, talvez chovesse depois, mas agora o sol tinha secado completamente aqui em cima, era tudo que eu precisava, alguns minutos com Vali para explicar tudo. Tudo que me afligia, tudo que precisava por para fora de alguma forma.

- Nunca tinha vindo aqui em cima...

- Eu descobri esses dias, vim meditar.

- Meditar? - ele me olhou cético - Você? Essa terapia tem feito efeito hem.

- Você nem imagina o quanto... - Fiz ele sentar, sentei ao lado dele enquanto o celular vibrava por mensagem e Vali me mostrava, era Rafaela perguntando onde ele estava, tomei o celular dele e respondi "Muito trânsito, senhora." - ... pronto, isso vai nos dar um tempo.

- Decididamente você é uma grande interrogação - ele não gostou muito da minha atitude, mas entendeu que era necessária - O que queria me falar?

E assim, uma sexta-feira que provavelmente choveria tanto quanto na quinta alagando e trazendo o caos para a grande Metrópole ganhou ares doces. Expliquei todas as neuras, todas as etapas, tudo, absolutamente tudo sobre meu começo, sobre como me descobri, cada perrengue que passei até chegar naquele momento. Claro que houveram algumas pausas, alguns questionamentos, mas falei com Vali tudo que queria ter dito aquela noite de ano novo e não consegui por qualquer amarra mental que tivesse me travado. Ao terminar ele sorriu e me deu um beijo na testa. Foi inevitável conter o choro.

A forma como ele foi compreensível me fez querer sair dali com ele pra qualquer lugar que fosse. A cobertura, meu apartamento, aqui no terraço, no sofá lá da recepção. Se fosse um filme essa era a hora que a mocinha beija o mocinho em slow motion, aparece escrito "fim" em francês, a imagem dá um fade-out e escurece a tela enquanto sobem os créditos em ordem de aparição. Obviamente nem tudo era como eu queria ou desenhava em minha cabeça de escritor. Possivelmente muitas horas se passaram, porque tanto as nuvens quanto o sol mudaram de lugar.

- Então aí estão as duas comadres - A voz era de Rafaela, agora a justa-causa vem - Pode-se saber o que as duas tricoteiras fazem aqui em cima?

- Senhora eu...

- Eu precisava falar com ele - Me antecipei a Vali, estava decidido - Resolver tudo que ficou pendente.

- Deixa eu ver se entendi... - ela foi se aproximando, Vali estava pálido, eu conhecia o joguinho, segurei a mão dele - Meus dois funcionários ficaram duas horas de papo em horário de serviço?

- Exatamente - De repente não tinha mais nenhum receio do que pudesse vir - Precisava disso.

- Tudo bem, mas vou descontar do seu salário - Concordei dando de ombros, algo como "faz o que quiser, Rafaela" - Agora Vali vem comigo e você tem coisa pra fazer, chicoteei o Borges e ele vai mandar uma prévia de briefing.

Assenti com a cabeça e logo as nuvens que estavam vindo tomaram outro rumo e o dia ficou com um céu azul durante todo resto do dia só dando lugar ao véu trazido por Nyx. A chuva que veio foi ao começo da madrugada, muitas horas depois de todos estarem em casa e, ainda assim, foi só o suficiente para assentar a poeira e limpar o ar e tornar a minha respiração ainda mais aliviada. Havia tirado uma geladeira das costas e me sentia ainda mais pronto para o que fosse vir. Era meu turno, minha vez de rolar o D20... que surpresas ele me traria?