sexta-feira, 23 de outubro de 2020

CdF s3e2: Pedal

Eu devia ter tomado uma atitude muito tempo atrás, meses atrás mas não tomei e agora ela parecia tão grande quando, na verdade, era só o que eu sempre desejei e pronto. Confesso que tinham dias que eu não queria tomar os remédios, não queria me olhar no espelho... mas, no fundo, eu notava que aquela silhueta que brotava no espelho era quem eu sempre quis ser, era a criatura que eu tanto namorei nos aplicativos que trocam o rosto, nas malfadadas tentativas de me maquiar... estava vindo, porém eu ia me desapegar do Fernando pra sempre e isso era o que mais me assustava.

Junto da terapia me foi sugerida uma rotina fixa, atividades que eu pudesse me focar cem por cento do tempo até não ter mais tantos surtos quanto tive no começo do ano. A ideia era ótima e o apoio de Bethina era o que me impedia de saltar da janela. Mas, ao mesmo tempo, eu me sentia egoísta obrigando ela a viver isso tudo. 

A imensa verdade é que essa criação de uma rotina ajudou pra caralho, no entanto não posso ficar o tempo todo fazendo alguma coisa, tem momentos que preciso de uma dose de ócio pra aflorar a criatividade, foi numa dessas que eu chamei Bethina pra pedalar no parque depois do trabalho na sexta. Ela quis reclamar mas acho que a exaustão a fez aceitar. Claro que eu não tinha a menor vontade de ficar andando a esmo nas ciclovias e sim achar um banco, respirar um pouco de ar puro...

- Sabê, Bê - Era curioso como o parque estava tão vazio, achar um lugar pra sentar foi extremamente fácil - Às vezes acho que eu tô atrapalhando a sua vida.

- Às vezes você fala umas bobagens - Ela sorriu me olhando de canto - Mas vamos ver, por que você acha isso?

- Ah sei lá - Respirei fundo tentando fugir daqueles olhos - Sou uma criatura meio bizarra ainda... estou na fronteira do que eu sou e quero ser...

- E...?

- E isso atrapalha sua vida cara, você merece alguém mais centrado, mais certo das ideias e não essa...

Não tive como continuar. Bethina puxou meu rosto e me deu um beijo tão apaixonado que não sei como contive a inundação de lágrimas dentro das pálpebras, de repente todo aquele diálogo, todas as minhas palavras, todo o parque, a Metrópole, o país, o planeta, o universo e toda a criação deixaram de existir e só nós duas estávamos ali, não poderia precisar quanto tempo durou, mas foi o suficiente para fazer qualquer núvem que pairava em meu pensamento ficar seriamente desnorteada.

- Sabe qual o seu problema Fê? - Não consegui responder, apenas fiz a negativa com o queixo - Você pensa demais... lembra o dia que você comprou sua primeira saia?

- L-lembro - A lágrima escorreu - Eu já te contei essa história?

- Não, mas eu sou hacker e achei teu blog velho.

- Olha ela - Enxuguei a lágrima - Continue.

- Então... Você teve a decisão, foi lá, comprou, pagou e quando ela chegou pelo correio você se sentiu a pessoa mais realizada do mundo, nada importava, sem passado, sem futuro... só aquele ventinho frio por baixo e a sensação de liberdade... - As lágrimas voltaram - Me diz, as saias seguintes foram tão prazerosas quanto essa?

- Não tanto... não vou dizer que virou algo normal, porque ainda me dá certos calafrios entrar em uma loja e comprar algo pra minha sobrinha, afilhada ou até mesmo noiva...

- Noiva? - Bethina me deu um tapa no braço - A senhorita anda me traindo é?

- Não! - Corei de leve - É só...

- Eu sei boba. - Pausamos um instante - E que você não quer entrar em uma loja e dizer que é pra você? Poder experimentar... me diz, quantas vezes você comprou o tamanho errado e teve que voltar na loja pra trocar?

- Poucas... 

- A maioria você aceita a derrota e joga a peça no canto e na primeira doação de natal você se livra delas, tô ligada.

- Nossa... você tem um jeitinho tão cínico de falar essas coisas...

- Você diz cínico e eu digo verdadeira... agora 'bora pra casa.

Eu estava ali durante todo o trajeto até em casa, eu respondia, falava mas não me sentia aqui, tudo estava martelando dentro da cabeça. Ela tinha razão. Perdi no par ou ímpar e ela escolheu que eu fosse tomar banho primeiro. Acho que ela já esperava essa reação minha e por isso me fez confrontar o espelho. Cá estava eu vendo meu reflexo, cabelo solto, rosto afinando, seios já despontando e ereções quase nulas... e talvez fosse isso aí, esse é o objetivo que eu, desde aquela primeira vez que vi a possibilidade de me montar e agora a oportunidade real de me tornar a mulher que sempre quis ser. Respirei fundo e entrei debaixo do chuveiro enquanto o cheiro de comida vinha da cozinha. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CdF s3e1 - Surpresa

Ainda lembro da primeira crise forte, foi no meio da noite com Fernanda tossindo muito, antes que eu pudesse ampará-la ela saiu para o banheiro e a tosse cessou. Sorri aliviada esperando o sono voltar... mas algo dentro de mim não deixou. Da fresta da janela vinha o ruído típico da Metrópole acordando com uma fina brisa que dava ao sexto dia do ano um ar de outono. Me levantei indo até a porta do banheiro fechada que vazava luz por baixo. Bati uma vez. Silêncio. Bati duas. Nada. Bati a terceira.

- Amor - Falei em tom preocupado voltando a bater - Tudo bem aí?

Silêncio. Com o histórico dela eu odiava o silêncio. Já ponderava como faria pra arrombar a porta e levá-la às pressas pro hospital. Testei a fechadura. Não estava trancada. No fundo do box podia ver uma silhueta abaixada sentada no chão. Meu primeiro pensamento - e que se tornou ação - foi me aproximar.

- Fica longe - A voz desafinada tomou conta do ambiente - Vai embora! - Os soluços de choro se misturavam às ondas sonoras que preenchiam o diminuto cômodo - Eu sou uma aberração!

Tinha dito à psicologa que saberia lidar com as prováveis crises dela durante a parte medicamentosa da transição, mas vê-la se chamar de aberração foi como uma faca entrando no meu peito. Naquele momento tudo que podia fazer foi abraçá-la até a crise passar e dormimos ali mesmo. No dia seguinte ela me pediu desculpa.

Os dias que se seguiram também não foram fáceis. Quase toda noite, nas mais variadas intensidades, Fernanda se achava uma aberração, um ser entre o masculino e o feminino. Toda a puberdade condensada em um ano e meio, talvez dois anos. Pesquisei o que fazer. Perguntei à psicologa e as duas voltaram com o mesmo resultado: só o tempo. Negócio é fazer como minha mãe sempre disse: se você quer mesmo ver o céu noturno iluminado tem que segurar o rojão. Por isso aguentei firme uma semana.

Pensei em pedir ajuda para Freya, mas não tinha como, ela estava na Itália com Rafaela e aquele outro rapaz. Aguenta firme, Bethina. Você é forte. Dez dias se passaram e as férias já estavam no fim. Talvez uma rotina ajudasse. Umas poucas pessoas voltaram dias antes do restante dos funcionários porque teríamos reuniões internas para alinhar discursos. Fernanda preferiu se esconder atrás da máscara de menino, o foda que eu não podia julgar ela, tudo a seu tempo. 

Logo depois da primeira reunião Freya notou meu estado e, tão logo conseguiu, me puxou de lado para conversar.

- Você tá bem? - Ela me olhava preocupada - Parece que você não dorme fazem noites...

- É porque eu não durmo mesmo - Eu estava com tremedeiras - Eu sabia que ia ser difícil... mas tanto...

- Fala de Fernanda?

- Sim.

- Me conta.

- Ah... ela tem tido umas reações adversas aos remédios, tido uns surtos de noite... aí mesmo que nos últimos dias ela esteja mais tranquila eu não consigo pregar o olho direito.

- Entendi... - Freya puxou o celular do bolso, mandou uma mensagem meio longa, achei um pouco falta de respeito mas ela é minha superior, então né, melhor esperar, vai que é algo mais importante que meu drama pessoal - A dona Rafaela quer falar contigo.

- É? - Estava em uma condição tão lamentável que nem me arrepiei com a situação - Sobre o que ela quer falar?

- Surpresa.

Caminhei da pequena sala de reuniões onde estava conversando com Freya pelo corredor até a sala da presidência. Fernanda me mandou mensagem toda amorosa perguntando o que tinha acontecido. A bipolaridade de humor dela era ágil, pelo visto a rotina era o que ela precisava para entrar um pouco nos eixos. Respondi que Rafaela tinha me chamado para discutir alguns detalhes de design de alguns produtos. Uma mentira que não fazia mal algum. Bati de leve na porta e ouvi a voz característica da chefa falando para eu entrar.

- Mandou me chamar, chefa?

- Mandei... - Rafaela estava com o olho fixo no monitor do notebook, dois segundos depois me olhou de cima abaixo - Realmente, Freya tem razão, você está só o pó da gaita.

- Como assim?

- Está com olheiras, ombros caídos... - Ela se levantou e caminhou na minha direção - Eu nem consigo imaginar pelo que você está passando com Fernanda... mas eu tenho uma proposta.

- Proposta? - Arqueei a sobrancelha - Que proposta?

- Vou te dar um final de semana em um spa, só pra você... - Ela me tocou os lábios quando eu ia falar - E pode deixar que eu cuido de Fernanda por esses dias, sei quais botões tocar pra acalmar aquela borboletinha saindo do casulo... e quando Fernanda perguntar diga que vai fazer um curso na Cidade Maravilhosa, se ela não acreditar diga pra vir falar comigo.

Não ousei questionar. Não conseguia reagir. Não que fosse a coisa mais certa do mundo, mas sentia que precisava desse espacinho, desses dois dias para pensar em tudo e relaxar e confiava em Rafaela cuidando de Fernanda. Sem qualquer outra reação a abracei, gesto que foi retribuído. Quem disse que chefe é tudo ruim e não liga pra funcionário mesmo? Pelo visto queimei minha língua.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Sessão de Terapia

Olá pessoas, como estão?

Sei que quase ninguém lê aqui e depois do livro que virou a história de Fernandes (CdF, pra quem chegou faz pouco tempo, é 'Cronicas de Fernandes') menos gente ainda lê (a média de acessos diz que tem entre 3 e 10 views por post), porém como o objetivo aqui nunca foi fazer sucesso e sim escrever uma história que foi surgindo conforme minhas dúvidas surgiam... é, até que rendeu né? E teremos uma temporada 3? Quién lo sabe? Eu adoro trilogias, quem sabe né? Mas por ora, vamos deixar assim.

A verdade é que criei esse blog como válvula de escape pra mim, uma pessoa confusa no que dizia respeito a sua sexualidade e suas neuras internas. Comprar a saia, pra mim, foi um divisor de águas imenso, me fez bem, melhorou minha auto-estima, porém trouxe consigo dezenas de dúvidas que vou escrever aqui mais como um desabafo do que como algo pra inspirar ninguém ok? Eu estou escrevendo a MINHA jornada até aqui.

O começo


Quando eu comprei a saia em finais de 2018 (juro, parece muito mais tempo) eu dividi minha personalidade, o Lu era o menino-hétero-bonitinho-que-curte-automobilismo e a Fê que era a menina-que-curte-rosa-e-tudo-do-universo-feminino, só que eu não me sentia bem com isso, aí eu comecei a "matar" a Fê, só que né, ficou uma sensação meio de vazio e resolvi pegar a personagem que eu já tinha criado (o Fernando é uma personagem que criei quase como uma fanfic dos escritos da Senhora Pam, o incrível e super recomendado Senhora de Três) e a minha ideia quando comecei a escrever era ir tateando as coisas sabem? Primeiro a ideia da personagem ser a sissy de uma domme era o meu desejo na época, depois a personagem "evoluiu" pra crossdresser (onde passei também) e por fim se descobriu que a personagem é, na verdade, uma mulher trans.

Eu não sei quantos de vocês que leem aqui também tem o hábito de escrever, mas quando eu escrevo eu não controlo o que minhas personagens vão fazer sabe? Eu tenho a ideia e deixo fluir e no fim eu acabo me surpreendendo com os rumos do que escrevo, por isso o próximo paragrafo...

No meio pro fim do ano passado eu estava realmente achando que eu poderia ser uma pessoa trans, sério mesmo, já estava lendo relatos, vendo os remédios que se toma e todo o processo, porém a ideia não me satisfazia, ela era como uma febre terçã, durava pouco e não era o caminho que eu queria... e assim o ano de 2019 se arrastou comigo usando a saia vez ou outra e contanto pra algumas pessoas e aí vem o próximo parágrafo.

Felicidade compartilhada


Como já contei naquele post eu senti uma alegria tão intensa e imensa por ter realizado isso que eu quis berrar pra todo mundo. Só que quase instantaneamente veio a realidade e falou "ow peraê" e lembrei que moro em Santa Catarina, um dos estados mais homofóbicos/racistas do Brasil (aqui é tutu alemón) então respirei fundo e, durante o ano de 2019, eu fui escolhendo a dedo as pessoas que eu falaria sobre e todas (até o momento umas 10 mulheres e 2 homens (tenho mais amigas que amigos, fazer o que né?)) super compreensivos, alguns até me falaram que era tão bom me ver feliz com algo (relembrar isso me mareja as vistas), porém tem uma única pessoa que eu queria falar só que por ora não tenho como que é minha mãe (Fernandes, te invejo) e acho que é isso que me falta pra ter uma felicidade interna plena... mas se a reação de todo mundo foi boa por que eu acho que da minha mãe vai ser diferente? Não sei. Esse é um dos mistérios da vida.

Um outro caminho


Comecei 2020 com um emprego na área que sou formado (publicidade) e o panorama era o melhor possível, estava conseguindo guardar uma grana, no meio do ano ia viajar pra SP pra "sentir" a cidade e conhecer pessoalmente algumas pessoas que só conheço da internet e em dezembro/janeiro eu pegaria as férias e ia de novo pra SP procurar emprego na minha área e, encontrando, eu me demitiria e ia pra cidade que quero morar sozinho já tem um tempo... só que aí veio o coronga e miou tanto os meus planos quanto da empresa que eu trabalhava, ou seja: fui demitido em abril, por sorte o Lu aqui é uma pessoa precavida e tinha uma reserva que durou até julho (pois é, daqui pra frente vai ser osso...) e agora estou correndo atrás de uns freelazinhos.

E como a vida é uma caixinha de surpresas minha prima me manda um vídeo de um cara chamado Guilherme Rocker, figura magricela com um cabelo incrível... pois bem, assisti alguns vídeos dele curtindo o estilo, porém o gatilho que fez a chave virar foi o documentário sobre o Walter Mercado que tem na netflix nossa de cada dia... lá alguém falou que o Walter era andrógino e essa palavra tipo explodiu na minha cabeça saca? Tipo aquele gif.. wooooow

Fui ler sobre e passei a me interessar pelo estilo e veio de encontro com algo que eu já tinha na cabeça desde o começo do ano...

Falando no começo do ano de volta: Quando eu entrei no emprego eu resolvi fazer terapia (menines, façam terapia, é ótimo!) e fui logo falando pra ela minhas neuras e tudo mais e ela tem me ajudado a normatizar essa coisa de usar saia na minha cabeça... eu falei uma frase que ela até guardou e foi uma paráfrase duma "ministra" do governo atual: Meninos usam azul e meninas rosa... e eu? Eu gosto do roxo.

(quem não sabe roxo é a mistura de azul com vermelho)

E aí sigo aqui, encantado por coisas roxas e cada vez mais interessado na ideia de ser andrógino, parece que o "não-escolher" também é uma forma de escolha afinal.

No mais é isso que eu queria dividir com vocês! E não se esqueçam de se permitir porque sim, você merece ser feliz hoje!

Até a próxima 
~ Lu

sábado, 25 de julho de 2020

CdF s2e22 - Céu

Nossa, nem dá pra acreditar que já estamos no final de mais um ano. Um ano com tantos altos e baixos, com tantas reviravoltas, provavelmente o ano com mais surpresas da minha vida. A começar por tudo que aconteceu na Lótus, Rafaela tomando um golpe que lembrou aquele que a presidenta levou alguns anos atrás, mas, como se fosse uma história escrita por alguém completamente bipolar e que vai decidindo o que acontece conforme escreve, as coisas foram se encaixando e Rafaela voltou ao posto de CEO da Lótus e recontratou a imensa maioria. Alguns já tinham achado outro emprego e preferiram ficar lá, eu confesso que quase cogitei isso, mas a volatilidade da vida de freelancer é muito grande e não quero mais isso pra vida.

Agora com relação à Fernanda o ano foi uma ascendente tão linda. Tivemos nossos momentos ruins, nossas brigas, ela dormindo no sofá, eu dormindo no sofá... nada que estragasse o sentimento. Caminhei até a geladeira, peguei uma coca gelada. Fernanda está decidida a assumir sua real personalidade e encarar tudo que isso pode acarretar, amo essa coragem dela. Bebi um gole do líquido negro do capitalismo, puta merda que coisa boa.

O caminho daqui em diante seria doloroso pra nós duas, mas eu tenho fé em meus orixás que tudo vai ser bom, que é na dor da caminhada que se valoriza a chegada. Com hoje se vão três meses que Fernanda começou com o tratamento, ela diz que sente algumas dores pequenas, nada que incomode ou estrague o dia, mas sei que ela mente mal, porque à vezes a vejo se contorcer de dor e a merda é que não tenho muito o que fazer além de me mostrar presente. A psicologa inclusive me disse isso: que é ótimo Fernanda ter alguém do lado enquanto passa por tudo isso. Ela teria uma puberdade que dura anos em um ano e meio... ia ser foda, mas a gente segura o rojão. Falar nisso... caminhei até a porta do banheiro.

- Ow princesa - Fazia quase uma hora que ela estava no banho - Assim a gente vai se atrasar.

- Tô quase acabando - A voz abafada me deixou em um misto de preocupação com curiosidade, não era raro ela se trancar no banheiro pra chorar, uma das noites no sofá foi por isso dela esconder seus sentimentos pra não me preocupar - Só escovar o cabelo... aí cê me ajuda com a maquiagem, amor?

- Claro, mas anda logo - Alarme falso, a voz estava serena - Não gosto de chegar atrasada em lugar nenhum e acredito que vai ter trânsito para um caralho até lá.

- Relaxa, dona Bethina - Ela abriu a porta e uma coluna de vapor a seguiu - Ainda temos horas pra chegar lá, além do que não é longe.

- Eu tô super relaxada, aquela sua massagem ontem foi incrível - Fernanda estava enrolada na toalha quando passou indo para o quarto - Ano que vem faz de novo?

- Ano que... - Ela fez careta fechando a porta - Já começou as piadinhas do ano que vem né.

- Ah sim, já postei no grupo das minhas primas várias desse tipo... elas até falaram de me banir.

Ri indo até o banheiro que parecia que tinha sido invadido por uma bomba de fumaça. Desembacei o espelho com a toalha e comecei a me maquiar, nada muito trabalhado, só o suficiente pra valorizar a mulher maravilhosa que eu sou. Até nisso Fernanda me influenciou, minha auto-estima subiu nos últimos tempos. Dez minutos e eu estava pronta. Vestido branco, pouco acima do joelho, decote pequeno, cabelo com os cachos todos definidos, umas pulseiras pra fazer barulho além do anel de noivado. Quando entrei na Lótus e conheci Fernanda eu não me importava muito com minha aparência, qualquer roupa servia. Camiseta, jeans, tênis baixo e pronto. Tinha muito pouca roupa de menininha. Até nisso ela me mudou... No visor do celular já eram quase vinte horas.

Voltei à sala onde calcei a sandália de salto baixo e presa no peito do pé. Bolsa em cima do sofá e estava pronta. A porta do quarto abriu como se fosse em câmera lenta. Fernanda com uma saia longa branca indo até próximo dos pés e uma blusinha dourada, nos pés uma rasteirinha completava o visual hippie-de-cidade dela. Podia jurar que era peruca aquele cabelo, mas não, essa desgraçada conseguiu deixar o cabelo liso com pequenas ondas... ou será que era um efeito dos hormônios? Vai saber.

- Me ajuda com a maquiagem, amor?

- Me dá um segundo...

- Pra que? - Ela me olhou franzindo a testa - Que foi?

- Estou admirando o quão linda é a filha da puta da minha noiva.

- Não exagera... - Senti uma onda de baixa-estima vindo nela - Não ta tanto assim...

- Calaboca - E eu sabia interromper isso, era meio passivo-agressivo, mas funcionava - Você ta maravilhosa! Quer casar comigo?

- A gente já vai casar - Pronto, o cenho dela aliviou - Agora me ajuda com a maquiagem que já estamos atrasadas...

- "Estamos atrasadas" sério? - A fiz sentar, apesar do tom era em tom de brincadeira - A princesa fica mais de uma hora no banho sendo que eu já estava pronta e eu que sou a culpada pelo nosso atraso é? 

- É que você já é maravilhosa, não demora muito pra se arrumar - Ela sentou jogando o cabelo pra trás - Já eu tenho que remar muito pra chegar aos seus pés.

- Besteira - Dei um beijo na testa dela - Você é maravilhosa também.

Dito isso ela se calou enquanto eu fazia uma maquiagem suave. Uma sombra, um pouco de pó, base pra cobrir uma espinha no queixo, batom e ela estava incrível. Ninguém diria que, até meses atrás, ela era ele. Pensar nisso me trouxe uma nostalgia diferente. Me fechei um pouco na minha introspecção. O ano dela provavelmente foi mais emocionante que o meu com uma demissão e demissão cancelada. E agora estávamos as duas dentro de um carro do aplicativo. Fernanda conversava com a motorista que dizia que aquela era a última corrida da noite e que estava indo para casa onde o marido fazia a ceia de ano novo.

Conforme eu previ tinha trânsito, todo mundo queria chegar na avenida central para ver os fogos e o lugar que estávamos indo ficava no caminho. Olhei no relógio da rua e já eram passado das vinte e uma horas. O convite dizia que a ceia era depois da meia noite, após os fogos... mas sentia que a gente tinha que chegar logo. Chegamos na frente daquele prédio alto, Fernanda pagou uma bela gorjeta para a motorista enquanto eu descia. Mesmo menininha ela seguia cavalheiro... cavalheiro... cavalheira. Acho que cavalheirismo é algo além de gênero, depois pesquisaria.

- 'Bora garota - Ela desceu arrumando um eventual amassado no tecido da saia e agora era ela quem me puxava - Não quero perder a comida.

- Nossa - Despertei da minha bolha de introspecção - Depois reclama que engordou né.

- Nem engordo - Passamos pelo porteiro e entramos no elevador, o espelho do veículo evidenciou os quase vinte centímetros de diferença na altura - É culpa dos hormônios.

- Sei, aham - Falei segurando o riso - Tu que é esfomeada, isso sim!

Chegamos no último andar. A cobertura. No mesmo andar apenas mais um apartamento, com um capacho de loja barata. Fernanda tocou a campainha enquanto eu enganchava no braço dela. Uma criatura híbrida abriu a porta. Era nítidamente um homem em trajes de empregada francesa. 

- E-entrem - Rafaela tinha começado um novo experimento? Olhei pra minha companheira - A senhora aguarda vocês na sacada.

- Obrigada - Fernanda agradeceu enquanto a criatura se retirava voltando para a cozinha - A Rafaela não perde tempo...

- Então...

- Yes, uma sissy - Ela sorriu enquanto caminhavamos na direção da sacada - Tem jeito.

- Você já foi assim? Quero dizer... tipo empregadinha.

- Já - Ela corou suavemente - Foi uma época pra me definir e me descobrir.

- Um dia você podia escrever um livro sobre esse rolê todo...

- Quando ficar velha, quem sabe?

Assim que chegamos na sacada foi como aquelas entradas em saloon de filmes de velho oeste. Os poucos convidados todos nos olharam, não cheguei a notar se a música parou, mas Freya e aquele outro rapaz que trabalhava para a Rafaela, se não me engano o nome era Vali, vieram em nossa direção. Cumprimentos feitos ficamos em conversas alheias, filmes, séries, a vida... nada que fosse tão grandioso.

Logo os fogos começaram a colorir o céu, ora vermelho, ora azul, ora verde, amarelo, branco, rosa, roxo... a cobertura de Rafaela ficava próximo do epicentro das festividades na Metrópole e o céu estrelado com pouca poluição dava às luzes ainda mais brilho.

Pelo segundo ano seguido Fernanda passou empoderada de si e da incrível criatura que nascia ali naqueles comprimidinhos diários. Cada nova explosão levava uma mágoa, uma dor em vê-la ter algumas reações adversas... mas fazia parte né? Senti a mão dela apertar mais a minha e só então me dei conta que estávamos com os olhos rasos em lágrimas, a tal da comunicação não-verbal que ela dizia termos. Certa vez minha mãe falou que o choro de felicidade que é compartilhado é o mais lindo que há... e não é que ela tem razão? Antes do fim das explosões que saudavam a chegada de um novo ano um beijo se fez e, a julgar pelo silêncio da sacada, não éramos o único casal agarrados reforçando laços de sentimento.

- Muito bem - Ao fim do espetáculo Rafaela se posicionou na cabeceira da mesa - Cheguem todos aqui mais perto, sentem-se - Ela pegou a taça, movimento repetido por todos os presentes - O ano que passou foi de muita provação e superação de barreiras - Notei o olhar dela à Fernanda que, com um suave inclinar lateral de cabeça agradeceu a parte que lhe cabia - Todos que estão aqui são pessoas que eu confio e quero dividir os momentos de felicidade como os de agora... - Algum buchicho se fez - Eu sei que prometi não falar de trabalho em um momento como esse... mas eu quero dividir com todos vocês, em primeira mão, que, a partir de hoje, a Lótus irá subir de patamar, nosso pioneirismo e qualidade tanto nos materiais quanto no profissional foi recompensado com o que vou dizer agora - Ela pausou, buscou o fôlego, todo esse suspense me deixava bolada - No apagar de luzes do ano saiu o resultado do edital de fornecimento de materiais pro governo do estado e nós fomos a empresa vencedora! Brindemos!

Por essa eu não esperava. Os copos se tocavam, as pessoas riam, conversavam sobre a imensa porta que se abria, definitivamente o próximo ano vai ser de muitas mudanças, a começar por Fernanda dando entrada nos documentos, seguir a terapia, a medicação e, se tudo correr bem, decidir se vai operar ou não... confesso que pra mim tanto faz, desde que ela esteja feliz e comigo eu topo tudo e agora, com a empresa decolando, topar tudo significa ao infinito e além. 

Bem vindo, ano novo, hora de enterrar velhas neuras, superar velhas mágoas e seguir em frente. Como diz Fernanda, Alea jacta est.

domingo, 19 de julho de 2020

CdF s2e21: Arrumação

Nunca desejei que um final de semana passasse tão rápido. Nem mesmo o pit-stop no posto para calibrar os pneus da minha bicicleta a caminho da Lótus me fez mudar de humor e desejar tanto chegar. Assim que passei a portaria dona Vera veio me abraçar, dizer que fiz falta nas manhãs dela. Aquela teoria da Bethina de que ela nutria algum sentimento por mim cada vez fazia mais sentido, ou não, ela era uma pessoa de bom coração e temente ao deus dela, fazia o bem e sempre tinha um sorriso.

Como era de se esperar passei pela operação onde os poucos funcionários conversavam amenidades sobre o final de semana, sobre a atualização mais recente de algum jogo coreano... os nerds seguiam nerds. Cheguei no setor e Borges, em sua mesa, caneca de café preto fumegante olhava as estatísticas da rodada de futebol. Passei por ele deixando minha mochila na cadeira. Foi quanto fui notada.

- Fernando! - Tinha de aguentar mais um tempo com essa persona que não mais me pertencia - Resolveu voltar ao caos da cidade grande? - Sem nenhuma cerimônia ele me abraçou, correspondi ao gesto - Foi boa a viagem?

- ô, foi ótima - Desfizemos o abraço - Fui visitar minha mãe...

- ... E apresentar a nora pra ela?

- Basicamente. - Típico humor masculino, rimos brevemente - E como tão as coisas por aqui?

- Se arrastando... - Ele chegou mais perto olhando em volta - Mas tem algo legal rolando, ouvi dizer que...

- Eu já sei.

- Sabe?

- Claro, eu não seria da área de comunicação se não soubesse das coisas... inclusive já tenho um release pronto na cabeça, só preciso esperar o momento pra ter os detalhes exatos.

Liguei o computador sendo saudado pelo discreto papel de parede do shen-long e ícones posicionados ao redor da imagem ficando o cronograma na base do mitológico dragão. Não teria tempo de escrever nada agora. Em dois minutos tudo isso aqui ia mudar, de novo. Mesmo sendo digital eu podia ouvir o relógio em seu tic-tac, internamente o despertador tocou e veio o chamado para todos irem para a sala de reunião principal, no andar da presidência.

Saí rápido, queria estar na primeira fila para ver o que ia acontecer. Dos setores mais remotos da Lótus até aqui em cima não demoravam cinco minutos, mas tinha muita gente pra poucos elevadores, logo, quando bateram dez minutos o último técnico do setor de produtos chegou.

Henrique Arantes, homem de corpo franzino, terno mal cortado, parcialmente calvo estava no palco, microfone na mão, notebook conectado ao projetor. Começou dizendo o óbvio de que a empresa havia faturado menos do que o esperado e por isso cortes seriam necessários. Só agora tinha me dado conta de que Freya estava sentada do meu lado com seu inconfundível tailleur de grife e um belíssimo sapato loubotin com solado vermelho. Quando chegou nos gráficos extremamente mal feitos a submissa me cutucou jogando as sobrancelhas pra cima como quem diz para prestar atenção no que aconteceria dali em diante, antes que eu pudesse perguntar as duas portas do auditório se abriram atrás de nós.

- Prendam esse homem - Rafaela vinha elegante a um nível que jamais a vi, saia de couro branco colada ao corpo, meia fina, blusa preta por baixo de um blazer branco, cabelos soltos e nos pés um sapato do mesmo designer italiano - Tenho aqui as provas de que há fraude nesses balanços.

- C-como ousa entrar assim? - O atual CEO da Lótus ficou descompassado - Você foi demovida do conselho por...

- ... Por preferir o bem-estar do funcionário a um lucro absurdo para os acionistas - Dois seguranças entravam logo atrás de Rafaela no papel de Domme Rafaela que carregava uma pasta com papéis - Freya, me ajuda aqui.

- Pois não - A jovem pegou das mãos de sua senhora um pendrive que logo projetava uma apresentação super esmerada - A vontade.

- Então, meus caros funcionários - Rafaela tomou o microfone de Henrique Arantes - Eu fui retirada do conselho por dar mais vantagens a vocês do que o habitual do mercado, porém isso tudo refletia em mais produtividade, no entanto, fraudando balanços, esse homem convenceu os acionistas de que a empresa não estava dando o lucro esperado... - Ela respirou e eu puxei o celular para anotar os tópicos do futuro release - Levei alguns meses para recolher todos os documentos e conseguir me reunir com o conselho que, no final da semana passada, me reconduziu à presidencia da Lótus - Se caísse uma agulha no fundo da sala ela pareceria um disparo tamanho o silêncio que estava no ambiente - Seguranças, podem levar esse homem daqui, a viatura já o aguarda para levá-lo às mãos da justiça.

- Não ouçam essa louca - Os dois armários seguraram cada um em um braço do ex-CEO o conduzindo pelo corredor onde as expressões iam de surpresa à vingança realizada - Ela está mentindo, enganando todos vocês!

- Enfim - Logo que o homem foi conduzido para fora todos seguiam completamente perdidos e sem reação até que eu comecei um aplauso que logo ganhou força e todos aplaudiam - É muito bom ver todos vocês aqui... porém creio que faltam alguns não é mesmo? - A chave virou e a Rafaela-Domme saiu dando espaço para a versão mais humana - A partir de agora todas as demissões feitas nos últimos meses estão revogadas e eu irei, pessoalmente, entrar em contato com todos que foram demitidos propondo não só seu religamento à Lótus imediato como também um bônus pelo incômodo... - Ela sorriu dando uma sutil piscada para mim - De resto é isso, agora voltem ao trabalho... temos muita coisa pra fazer!

Os aplausos se intensificaram ganhando a companhia de alguns assobios. Ao fim daquela ovação todos voltaram aos seus postos, no elevador eu já escrevia o release com toda a velocidade para não perder nenhuma ideia que passava pela minha cabeça. Fui o último do setor a chegar, porém logo joguei o texto no computador, revisei e encaminhei para Borges dar seus toques pessoais. Mais uma revisada e o escrito rodou por todos os funcionários da comunicação antes de ser enviado à Freya que, prontamente, encaminhou à Rafaela.

A hora do almoço esse era o único assunto. Mesmo pessoas de empresas vizinhas perguntaram e a história foi se espalhando rápido. Amanhã, provavelmente, a imprensa já estaria ciente de tudo e querendo marcar entrevistas, afinal, a Lótus sempre esteve na vanguarda do ensino e da educação, era um dos tijolinhos dourados da reconstrução de tudo depois daquele governo desastroso.

Ainda tinha a chave do terraço, por isso resolvi fazer o pós-almoço lá. Meditar um pouco, agradecer aos céus tudo que havia acontecido... esse lugar aqui era um dos meus favoritos no mundo. Não era o prédio mais alto muito menos o mais bonito da região, porém sentia algo diferente nele e nem eram por minhas hortaliças. Algo místico. Foi quando o som de passos se fizeram atrás de mim, cadenciados, firmes, decididos. Dei espaço no banco.

- Senti falta desse lugar aqui... - Rafaela se sentou ao meu lado com um café daquela loja cara - Sua hortinha deu uma nova vida pra esse lugar.

- Verdade - Ela estava com o olhar sereno, típico de quem recupera o trabalho inteiro da sua vida em uma jogada de mestre - A propósito, parabéns, seu retorno triunfal foi legal de assistir.

- Gostou? - A dominadora não escondia o sorriso no canto dos lábios - Acredita que fiquei desde sábado a noite escolhendo roupa?

- Valeu a pena.

- Valeu?

- Valeu sim - A olhei com o canto do olho - Não faz muito o meu estilo, mas eu usaria numa boa.

- Me lembrarei disso quando você for minha executiva de comunicação - Ela riu - Soube que andou viajando...

- Sim, fui ver minha mãe.

- Apresentar a Bethina, imagino.

- Não só isso - Respirei fundo - Fui falar sobre tudo até aqui...

- Tudo... - Rafaela ficou pensativa um instante se virando em seguida - Tudo... Tudo?

- Tudo, falei da minha história até aqui, dos próximos passos, da transição e tudo mais.

- E ela?

- Ficou confusa - Tentei segurar uma lágrima fujona - Mas com o tempo ela vai entender...

- Vai sim, as mães sempre entendem nossas escolhas, às vezes demora um pouco, mas ao verem as crias felizes, elas entendem e aceitam... - Mordi o lábio por dentro, não queria que aquela lágrima virasse mais, Rafaela notou - Fico feliz de ter ajudado a lagarta a virar essa borboleta pronta pra voar... e quando vai ser o casamento?

- Ainda não pensamos em data.

- Quando pensar me avisa, temos uma política na empresa de dar bons presentes aos funcionários, aliás, falar nela, Bethina volta a trabalhar aqui ainda essa semana - Ela franziu a cara tentando parecer má - Não me decepcionem, nada de ficar se agarrando pelos cantos.

Gargalhamos nos levantando. Um abraço forte e tudo pareceu tão leve que o restante do dia passou voando. Logo estava em casa e depois outro dia e mais outro e Bethina ao meu lado foi como a cereja de um bolo da melhor delicatesse da Metrópole. Nem mesmo a ida à terapia nas semanas seguintes foi tão marcante e emblemática quanto aquela segunda-feira na parte final do inverno com cara de primavera.

CdF s2e20: Retorno

Viagens de ônibus sempre foram relaxantes, desde sempre, gostava de viajar, ver tudo ir ficando para trás diante dos meus olhos na janela. Não raro eu acabava dormindo e acordando já no destino. Hoje penso que os sons dentro do veículo são como ASMR que meu corpo encontra uma mansidão gostosa.

Mas, dessa vez, desejei que motorista ultrapassasse os limites de velocidade e chegasse antes. Tinha tantas coisas para resolver na Metrópole que estava quase pedindo pra ir correndo na frente, tamanha minha ansiedade. Ao meu lado Bethina cochilava com os fones enterrados na orelha. Na tela do telefone podia ver que era um dos incontáveis podcasts sobre design que ela tanto gostava de ouvir.

A cada quilômetro a quantidade de edificações deixava evidente da aproximação do destino. Já reconhecia uma ou outra silhueta de prédio, nome de rua e, quando o ônibus virou bruscamente para a direita a rodoviária se tornou uma unidade no horizonte. No mesmo instante que estacionamos Bethina acordou. Conhecendo-a como conheço sabia que ela odiava ouvir palavras nos primeiros minutos depois de despertar. Ela se espreguiçou olhando pela janela.

- Chegamos? - Fiz que sim com a cabeça - Boa menina, aprende rápido.

Ri fazendo caretinha. Ela tirou os fones enrolando e jogando na minha mochila. Fiz o mesmo. Pegamos nossas bagagens e chamamos um carro pelo aplicativo. Ambas estávamos cansadas e o motorista notou isso ficando em silêncio quase toda a viagem. A cidade com pouco trânsito fez o trajeto ser cumprido em menos de uma hora quando o normal seriam uma hora e meia.

Tiramos as malas. Subimos ao nosso andar. Abri a porta do apartamento. Bethina foi reto para o banheiro e eu fui ver se tudo estava no seu devido lugar. Mania de quem viaja achar que a casa vai mudar algo. Devia ser algum tipo de TOC ou algo semelhante. Por sorte tudo estava no seu lugar. Reboquei as malas até a lavanderia já tirando as peças e jogando na máquina de lavar.

- Tô morrendo de fome, quer uma pizza? - Bethina veio na minha direção - Aliás, você nem notou que dia é hoje né...

- Pizza é uma boa - Liguei a máquina de lavar - É domingo, amanhã já volto ao batente.

- Não coisa loira - Ela riu pegando o celular - Hoje é sexta, tem o final de semana inteiro ainda... vai tomar um banho enquanto eu peço a pizza.

Ri pegando meu telefone. Estranho, jurava que já era domingo, mas que bom. Entrei no banho e lembrei que meu pijama estava lavando. Nada muito demorado, pela diminuta janela do banheiro notei que já era noite. Ao ir pro quarto uma camisola que se estendia até abaixo dos joelhos me esperava na cama. "De volta ao normal" pensei vestindo ela. Parei um instante na frente do espelho da porta do guarda-roupas. O material não era o mais requintado, mas era confortável e deixava a impressão de não estar usando nada, além disso acompanhava um roupão para usar por cima. Escovei o cabelo displicentemente e voltei à sala. Bethina estava olhando o catálogo do serviço de Streaming.

- Sua vez, aproveita que deixei o banheiro quentinho.

- Não vou precisar de pé de pato né? - Rimos enquanto ela se levantou passando por mim - Puta merda, como você é gostosa amor, se não estivesse cansada te comia aqui mesmo.

- Cansada do que? Foi você que veio dirigindo?

- Besta - Ela me roubou um selinho - O dinheiro da pizza ta ali em cima da mesa, pedi duas e ganhei uma brotinho doce, meia chocolate e meia prestigio além do refrigerante.

- Ótimo uso dos P do marketing.

- Nossa, depois dessa vazei.

Gargalhei enquanto Bethina entrou no banheiro. Coloquei a primeira música que o YouTube me recomendou, fiquei entretida olhando o clipe e o celular tentando saber se era real e oficial o que Bethina tinha me mostrado. Mas ninguém respondia. Provavelmente estavam em suas festinhas privadas. Aproveitei pra mandar mensagem pra terapeuta que respondeu perguntando se trouxe as conchinhas dela. Pior que tinha. A música dos anos noventa só foi quebrada pela campainha. Meu coração parou por um instante. Eu precisaria atender a porta. Puta merda. Respira Fernanda, respira. Assume logo essa mulher maravilhosa que você nasceu pra ser. Um. Dois. Três. Vai. Me levantei pegando o dinheiro na mesa e arrumando o robe por cima de tudo. Destranquei a porta.

- Foi daqui que pediram uma de lombo com catupiri e outra a moda da casa? - A bolsa era muito maior que o entregador, entreguei o dinheiro e ele as pizzas, pareceu uma troca justa - Valeu, boa noite, dona.

Corei suavemente. Fiz questão de demorar alguns segundos pra fechar a porta, queria ver se ele olharia de novo. Dito e feito, uma olhada rápida por cima do ombro esquerdo me fez ser inundada por um sentimento bom. Bethina com a toalha nos cabelos assistiu toda a cena sem comentar uma só palavra. Ela trajava o pijama.

- É gostoso isso né? - Ela veio na minha direção pegando uma das caixas e o refrigerante - Essa coisa de se sentir bonita... desejada... acredito que seja algo novo pra você.

- Vou parar de ir na psicologa - Coloquei a outra caixa na mesa - Você anda manjando mais que ela.

- Não viaja, Fê - Ela já colocava os pratos na mesa - Acredito que quando vivia como menino você nunca se sentiu assim...

- Assim como?

- Bonita.

- Só nas vezes que invadia o quarto dos meus pais.

- Fazia a imagem do espelho saltar - Bethina colocou os copos e destampou as pizzas - Mas nunca teve a aprovação fora dele né...

- Pelo visto alguém andou estudando - Servi o refrigerante pra nós duas - Mas sim, até a Rafaela uns tempos atrás e, principalmente você, eu não teria chego onde cheguei... não estaria pronta nem preparada pra dar o maior salto de fé da minha vida.

- É bom te ouvir dizer isso e que bom que eu posso estar aqui pra te ajudar.

- Te amo, Bê - Tomei a mão dela na minha e dei um beijo suave - Agora 'bora comer antes que esfrie.

Jantamos conversando sobre coisas da viagem e do quanto nada mudou na nossa ausência o que comprovou, pelo menos pra nós, que sem a gente aqui o mundo não mudaria. Porém uma coisa que eu não julgava ser possível de acontecer havia acontecido no nosso período sabático. Seria mais uma virada em minha vida e, quem sabe, na de Bethina também. Mas era algo a se ver segunda-feira. Agora respirei fundo e tratei de relaxar com a escolha cinematográfica de minha cúmplice.

sábado, 18 de julho de 2020

CdF s2e19: Encaixe

A buzina do barco significou o fim daquelas pequenas férias, importantes não só para descansar como também para Fernanda colocar seus demônios sob seu controle. Tantos anos planejou àquela conversa e quando ela veio foi algo tão leve que se sentiu idiota de ter ficado tanto tempo protelando. 

Conforme o veículo se afastada do pier onde Sônia havia ficado Bethina ofereceu o colo à noiva ciente de que aqueles dias todos seriam o gás que precisava para encarar uma nova realidade. Muito embora uma mensagem, recebida no dia anterior a fez sorrir e ficar mais leve. Era algo tão incrivelmente bom que não conseguia imaginar como aconteceu, porém, assim que chegasse marcaria um café com a portadora de boas notícias. Mas esperaria chegar na Metrópole para as boas novas.

A travessia entre a ilha e o continente não costumava demorar mais do que quarenta minutos, uma hora se o mar estivesse mais agitado. Por ser fora de temporada haviam poucas pessoas na embarcação, meia dúzia de nativos, outra meia dúzia de turistas além do casal que não notava os olhares de estranhamento de um homem de idade aproximada dos cinquenta anos.

Uma vez atracado no continente todos os ocupantes desembarcaram tendo em Bethina e Fernanda os últimos a saírem do veículo. Caminhavam conversando alegremente sobre bons ensaios que fariam na próxima visita à ilha, sem nenhum pudor Fernanda dizia quais vestidos usaria e em quais horários, Bethina, por sua vez comentava ângulos de câmera, valores de exposição e detalhes técnicos. Ao sentarem para esperar o ônibus que as levaria até a cidade próxima onde passariam a noite para, só então, voltarem à Metrópole o homem não se aguentou.

- Chega a ser um desperdício uma mulher dessas com um viadão desses...

- Como é que é? - O espírito guerreiro de Bethina inflamou - Tá falando com a gente?

- Além de viadão é frouxo - o homem escarrou no chão em um ato que, na sua cabeça, significava desprezo - Não se fazem mais homens como antigamente... no meu tempo mulher minha não ia nem sair na rua com uma saia tão curta.

- Repete - Fernanda deixou a testosterona que ainda circulava nas veias dominar a ação se levantando e indo na direção do homem - Anda seu monte de bosta, repete.

- Olha só, a bichinha resolveu virar homem - O algoz gargalhava frente aos olhares perplexos do outro casal de turistas que aguardava o mesmo ônibus - Começa cortando esse cabelo, puta cabelo de viadão.

- Deixa pra lá, amor - Bethina respirou um segundo deixando o sangue esfriar - Não vale a pena brigar com um frustrado desses...

Quando Bethina deu um passo para o lado o homem passou como um vulto pelo seu lado indo na direção de Fernanda que, rememorando suas aulas de karatê na infância, desviou do golpe batendo com o ombro no queixo do agressor. Como se fosse um golpe de luta livre a morena fez posicionou as duas mãos para segurar o homem enquanto Fernanda lhe aplicava uma rasteira para, em seguida, imobilizá-lo. Toda a cena não durou mais do que dez segundos, mas para o casal foi epifania de que o relacionamento estava em perfeita sintonia.

Os outros dois que não participaram da briga, nesse meio tempo, haviam acionado a polícia que chegava para levar o homem. Queixa e flagrante. Desde que o antigo governo tinha sido varrido para fora do poder as poucas células de intolerância que restavam iam sendo dissolvidas. Os que não demonstravam aptidão em aprender a, no mínimo, aceitar que aquele tipo de pensamento não tinha mais vez no mundo atual, eram convidados a se retirar da sociedade. Soava um pouco ditatorial, mas era a única forma que o novo governo encontrou para resolver a situação diante da terra arrasada que encontrou.

Passados os instantes acalorados naquela tarde de final de julho os dois casais seguiram juntos para a cidade. Eles eram de lá mesmo, trabalhavam no setor portuário mas almejavam ir para o setor de logística ou até mesmo comunicação. Esse foi o mote para longas horas de conversa regados à boa comida e bebida gelada.

Já instaladas no hotel enquanto Fernanda estava no banho Bethina respondia às mensagens que recebia. Ao sair do banho a recém-empossada mulher quis saber o que tanto a noiva falava no celular. A morena se recusava em dar um fim às dúvidas, apenas dizia que sentia algo bom vindo no horizonte e era melhor elas dormirem pois o ônibus saía ao amanhecer.

Uma vez instaladas e ganhando a estrada Bethina não cabia dentro de si tamanha a alegria que tinha na palma da mão, Fernanda, em um lance rápido, tomou o celular da noiva e foi procurar, sob protestos, o que trazia tantos sorrisos ao rosto dela. Leu diversas mensagens aleatórias até chegar em um nome específico. Reconhecia a foto. Ousou ler.

- É sério isso?

- Sim! Seríssimo!

- Puta merda... - Fernanda não conteve as lágrimas - Motorista, acelera isso que estamos com pressa!

Nunca desejou tanto estar em um avião indo de Mar Redondo para a Metrópole. Tanta coisa para resolver e tantos quilômetros adiante, oito horas de estrada pela frente e um dia inteiro em casa para poder desarrumar as malas e lavar a roupa. Tentou enviar mensagem do seu número para a portadora de boas notícias, mas o sinal era péssimo e, entre ter uma crise de ansiedade e aprender a esperar, optou pela segunda e se deixou cochilar. Tudo estava, finalmente, se encaixando.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

CdF s2e18: Mansidão

Ver Fernanda na água, brincando de pular ondas me fazia sorrir. Puxei o ar sendo brindada pelo cheiro salgado do mar e de café. Sônia, mãe dela vinha com uma térmica e duas canecas.

- É uma pata né? - Ela se sentou ao meu lado na pedra - Posso te confessar uma coisa, minha filha?

- Claro! - Uma das xícaras veio à minha mão e logo a bebida dos deuses se fez presente - Sou toda ouvidos.

- Não fala pra ele... ela... mas eu ainda tô bem confusa com tudo isso sabe?

- Sei e te entendo perfeitamente...

- O desabafo é meu mas pode falar se quiser - Brindamos com café - Acredita que não consegui ensinar ela a beber isso aqui?

- Ah, nem me fala - Suspirei bebendo um gole e todo aquele vento gelado dissipou - Quando fui no apartamento dela eu estranhei.

- Aproveitando o ensejo - Ela bebeu um gole e a reação foi igual a minha - Como vocês se conheceram?

- A gente trabalhava na mesma empresa, papo vai, papo vem... ela é minha melhor dupla de criação, ela é, como redatora, o que eu sou como designer, nos completávamos tão bem que fomos notando afinidades e um dia ela torceu o pé e tirou uns dias de folga, quando fui lá, já com más intenções - Ri ruborizando um pouco - Acabou que nos conhecemos melhor...

- E ela já foi te falando desses... - Ela ponderou um instante - Desejos?

- Não! Isso eu fui descobrir na manhã seguinte... 

- Manhã seguinte - Dona Sônia franziu o cenho - Esses jovens de hoje - Rimos - Mas continue.

- ... Então, na manhã seguinte eu fui fuçar, porque na minha cabeça eu tava 'como que um cara legal desses, bonito, com um apartamento tão bem cuidado não tem ninguém?' e cheguei no guarda-roupas, achei saias, vestidos, sapatos... - A sogra tentava achar normal, mas a situação ainda era incômoda para ela, não tiro a razão - ... Fui pro conflito, falei que ela tinha alguém e tudo mais...

- E aí? Ele... ela confessou tudo?

- Não, ficou quieta e como eu também sou sangue quente saí de lá... resumindo: o stress da situação fez meu apêndice estourar e fui às pressas pro hospital, fiquei quase uma semana internada e sem conseguir falar com ela.

- Nossa senhora - Sônia deu um gole curto no café - E aí?

- Aí eu expliquei que não sumi por vontade própria, pressionei e ela assumiu tudo... foi bem... chocante... - Bebi um gole longo, puta merda como eu amo essa bebida - Por isso te entendo, sei o quanto é assustador tudo isso, ainda mais com filho, mas, com o tempo, você nota que é a mesma pessoa, não mudou, tudo o que você gostava nela está ali ainda e tem um milhão de coisas novas pra gostar... - Bebi mais um gole - Ou não, e assim é a vida.

- Nossa - Olhei para o lado e ela chorava copiosamente - Você devia trabalhar de terapeuta, leva jeito.

Nos abraçamos evitando desperdiçar o café já semi frio nas xícaras. Se para mim, que logo cedo, me descobri bissexual com preferência em meninas já foi difícil ter aceitação em casa, imagina isso, de repente o filho único vira... filha. O baque ia ser foda e era algo que ela só podia aceitar sozinha.

- Desculpa perguntar isso... - Desfizemos o abraço - Mas... a senhora é divorciada né?

- Eita - Ela enxugou a lágrima - Senhora é sua vovózinha - Rimos - Mas sim, nos separamos tem mais de dez anos...

- E o pai dela, por onde anda?

- Não sei ao certo, perdemos contato, mas a última vez que soube ele estava saindo do Uruguai e ia para o Chile, dizia querer conhecer o Atacama e quem sabe ser abduzido pela espaçonave que o trouxe...

- Sério?

- A parte da espaçonave é brincadeira, ele sempre gostou dessa coisa de alienígenas e tals - Ela sorriu um sorriso saudoso - Mas a parte do Chile sim.

- Que doideira... Ela nunca fala dele.

- Normal, o divórcio foi um tanto traumático pra ele - Ela passou a olhar o horizonte - Do nada as fundações da vida somem, até me admira que vocês estejam de anel e tudo - Olhei para meu anel - Ele sempre disse que não ia casar e tudo mais... digo, ela - Um longo suspiro - Vou demorar pra acostumar.

- Mas logo acostuma, eu precisei de uns dias pra assimilar tudo também...

- Ah, mas você é jovem - Ela se serviu de mais uma caneca de café - Vocês aprendem tudo rápido.

- Nahhh - Fiz careta - Fui fazer terapia pra aceitar bem...

- E aceitou? - Ela me olhou de canto - Quero dizer, está sendo, como dizem vocês jovens, de boa?

- Nem tanto viu, tem dias que é um pouco difícil assimilar tudo ainda...

- Se é difícil pra gente - Dona Sônia tomou um farto gole da bebida enquanto Fernanda ia saindo da água e vindo na nossa direção - Imagina pra ela - Eu não tinha resposta pra isso - Mas sei que vai cuidar bem dela.

- Sabe?

- Claro que sei.

- E como tem tanta certeza?

- Se não cuidar eu quebro sua cara - Ela me olhou rindo - Olha que imensidão de lugar pra enterrar um corpo... brincadeira, vejo que você é uma pessoa do bem, Bethina, vai ficar tudo bem.

Realmente essa viagem não era só para Fernanda, era pra mim também. O tanto de coisa que eu acabei descobrindo e encontrando aqui era, sem sombra de dúvidas, muito mais do que eu esperava. Dentro de mim uma mansidão se fazia vendo ela vindo, aspirei profundamente aquele ar delicioso. Foda-se minha cidade natal ou a Metrópole, aqui era meu novo lugar favorito no planeta. Essa senhorinha do alto dos seus sessenta e poucos anos me trouxe algo que eu não tinha, algo que eu não conseguia definir bem na bagunça que é a vida em uma grande cidade, a voz calma, a confusão em entender tudo, o café quase sem açúcar... acho que ganhei uma segunda mãe.

terça-feira, 9 de junho de 2020

CdF s2 e17 - Sujeira

- E aí - Bethina se sentou do meu lado na pedra em frente do mar - Como se sente?

- Como se tivesse tirado o mundo inteiro dos meus ombros.

- Não posso dizer que sei como é, mas acho que foi mais ou menos como quando falei pra minha mãe sobre gostar de meninas...

- Somos um nicho interessante - Ri arrumando uma mecha de cabelo que o vento insistia em tirar de trás da orelha - Quer dizer, eu sou o nicho do nicho.

- Mas ela nem se acha - Ela fez careta rindo em seguida - Falando um pouquinho sério agora... fiquei muito feliz pelo passo que você deu aqui, eu imagino que era isso que faltava para que se sentisse melhor...

- Era sim - Mexi os ombros - Era tudo que eu precisava para dar o próximo passo...

- Que vai ser?

- Você sabe - Hesitei um segundo - Transicionar.

- Muito bom te ouvir falar isso, sabe?

- É?

- Sua psi falou que a voz tem um poder fundamental na aceitação e compreensão das coisas, por isso falar, com a voz é fator primordial para que tudo se encaixe... tipo quando a gente estuda pra prova e conversa sobre com alguém.

- Faz sentido.

- Claro que faz, sou eu que estou dizendo.

- Ah, bem eu que me acho né. - Rimos - 'bora tomar um banho de mar?

- Cê ta doida, menina? Ta mó frio.

- Frio?

- Tô morrendo de frio, até toparia aquele teu chá fraco agora...

- E depois eu que sou fresca - Me levantei soltando o nó do vestido na nuca e o deixando cair revelando meu maiô roxo escuro, com o canto do olho notava Bethina me olhando, resolvi provocar - Que foi?

- Que bunda linda, puta merda, se não fosse minha noiva eu ia ter que te inventar... que ódio da sua bunda.

- Falou quem tem uma bunda mais redonda que a minha.

- Calaboca, vai logo nadar antes que eu te jogue na água.

Sabia que Bethina jamais teria força para me levantar e jogar no mar, mas o vento começava a mudar de lado e logo o frio viria tornando meu banho completamente impossível, no primeiro mergulho me virei para a imensidão agradecendo tudo que estava acontecendo. Não sei quanto tempo fiquei ali, em uma espécie de oração com o oceano. Quando saía da água pude ver minha mãe se aproximar de Bethina, conversarem algo e ela sair. Fiquei encucada nadando até a pedra.

- A água não ta gelada não? - Ela sorria me vendo sair e entregando uma toalha - Você sempre esqueceu da toalha...

- Obrigada - Sequei o corpo e deixei a toalha sobre os ombros - A água tá começando a esfriar, esse inverno vai ser frio.

- Provavelmente...

- Tem algo te incomodando, dona Sônia - Sabia reconhecer as microexpressões dela - diz ae.

- Eu passei os últimos dois dias lendo sobre o que você vai fazer, li relatos de pessoas que passaram pelo processo todo e... - Ela não conteve uma lágrima - Eu não sei o que pensar sabe? Quando você me mandou mensagem dizendo que vinha passar duas semanas aqui meu coração ficou radiante e apertado duma saudade estranha, eu sentia que vinha algo aí... E quando falou que ia trazer alguém achei que ia ser... - O choro foi interrompido pela face ruborizada - ... Um outro cara.

- Ah, mãe... - Ri em meio às lágrimas - Por muito tempo eu pensei que fosse gay ou algo assim sabe? Lutei comigo mesma, cheguei a ter algumas experiências... Digamos assim exóticas... Mas no fim a que mais faz sentido, a que me acalmou o espirito é como estou hoje.

- E por que nunca me falou sobre?

- Essa é a pergunta de um milhão de dinheiros... - O frio tomou minha espinha, mordi o lábio inferior pensando em quais palavras usar, como concatenar as ideias - Em parte porque nem eu sabia onde ia chegar, qual era o objetivo disso tudo, por que eu... - Respirei fundo - E em parte porque eu sentia aqui dentro que eu devia ser alguém antes de fazer qualquer coisa, ter um bom emprego, estabilidade financeira, um canto só meu...

- ... Acho que tenho que te pedir desculpas, então.

- Como assim?

- Sempre te cobrei tudo isso antes de querer ser quem se é, sempre disse coisas como 'pra ter seu lugar tem que ser alguém primeiro' - Ela não conteve às lágrimas, muito menos eu - Você me perdoa, filho?

Não consegui responder. Tudo que fiz foi chorar e abraça-la tão forte que pouco importava se eu estava molhada ou ela tivesse me chamado de filho, era impossível pra mim mensurar a avalanche de informações que ela havia recebido nos últimos dias e tinha que lidar assim, do nada. Perdi a noção de quanto tempo se passou, sei que quando reabri os olhos já estava escuro, a noite caiu tão pesada e rápida que as estrelas já polvilhavam o céu. Desfizemos o abraço, recoloquei o vestido e fui ofereci a mão.

- Não tem nada que pedir desculpa... - Começamos a caminhar até a casa - Vai parecer presunção... Mas faz terapia um tempo, ajuda pra caralho pra colocar os pensamentos em ordem.

- É uma... - Ela apertou minha mão - Você ta fazendo?

- Tô sim, a empresa paga uma muito boa... Falando nisso, a senhorita anda se cuidando né?

- Ando sim, mas não tomo mais os remédios - Fiz menção de falar algo - Esse cenário, minha casinha, o quintal... Vale mais que qualquer terapia.

- Dona Sônia dona Sônia - Entramos no carreiro que ia até a casa - Mas pelo menos marca com a doutora Pâmela... 

- Nossa... Você foi nela um tempão atrás... É desde aquela época?

- As dúvidas e questionamentos? Sim...

Entramos no pátio sendo saudadas pelo magnífico cheiro de molho carbonara feito pela Bethina. Nadar sempre me deixou com fome. Mas antes precisava de um banho pra tirar o sal da pele.

- Arrumei uma nora prendada - Sem a menor cerimônia minha mãe abriu a porta, Bethina dançava ao som de tell'me bout it, eu já conhecia aquele nível de felicidade dela ao cozinhar - E ao que tudo indica boa dançarina.

- Bondade sua, sogrinha.

- Quer ajuda? Aliás - Dona Sônia me olhou - Vai tomar banho, criatura que eu botei no mundo.

Não ousei questionar. Afinal, mães não se questionam, se obedecem. Passei pelo quarto e peguei uma calça mais larga e uma camiseta. Afinal, estava ficando friozinho e eu não pretendia sair de novo. Era notável o quanto essa casinha evoluiu desde a última vez que estive aqui, o banheiro agora tinha azulejo até o teto, o box era novo, fora as toalhas com cheiro de amaciante. Quando aquela ágora morna molhou a primeira camada do meu corpo senti o peso completo de tudo escorrer de meus ombros e seguir pelo ralo, como se fosse sujeira saindo do corpo. Pensando assim era uma boa metáfora. Nossos medos são sujeiras. Algumas persistentes. Algumas irremovíveis. Algumas chatas. Mas todas sujeiras. Mas uma sujeira que só sai com o sabão certo.

No meu caso, as lágrimas de felicidade.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

CdF s2 e16: Oceano

Sempre torci para que esse dia não chegasse e, ao mesmo tempo, era a coisa que eu mais queria que acontecesse. Tenho certeza que se Bethina não estivesse ao meu lado eu jamais teria a coragem do que estava prestes a fazer. Desde que saímos da Metrópole eu me fechei em uma introspecção tão profunda que, todas as dúvidas que eu ainda tinha, desmanchavam-se tal qual linhas de tetris.

Sentados na mesa da cozinha, cheiro de bolo de cenoura fiz as apresentações de Bethina, falei do nosso noivado e que tínhamos planos. Minha mãe apenas sorria acompanhando tudo com uma generosa xícara de café. Mesmo sendo uma ilha era frio essa época do ano. Não sabia se queria minha cúmplice do meu lado ou não. No fim a própria disse que ia fazer uma ligação e já voltava. Esse era o momento. Eu sabia que não tinha telefonema nenhum e que ela estaria debaixo da janela ouvindo tudo e intervindo caso fosse necessário.

- A senhora não mudou nada, mãe... - Tomei a mão dela na minha - Só esse cabelo platinado.

- Gostou? Fiz luzes - Rimos - Já você... voltou ao cabelo comprido... conheceu alguém... ta trabalhando no que gosta...

- Verdade...

- ... Mas tem algo que está te incomodando - A habilidade analítica dela seguia afiada - Vai, fala.

- Eu não sei como começar essa conversa - Sorri amarelo - Na minha cabeça fiz tantos planos, tantas vezes e tantas possibilidades...

- Se não sabe como começar, vai pelo meio.

- Parece fácil... - Respirei fundo pegando o celular do bolso, achando uma das fotos daquele final de semana e mostrei para ela - ... Que acha?

- O que isso tem... - Ela olhou mais atentamente, acho que dona Sônia precisava refazer os óculos - ... é você?

- Sim.

- Ficou muito bonito... mas e o que tem a ver com o que você quer me falar?

- Então, mãe... - Respirei fundo, uma, duas, três, pensei nela como se fosse minha terapeuta, em tudo que vivi até aqui e o quanto tudo parecia reduzido nesse funil que agora não passava uma gota d'água sequer - ... Sabe, minha terapeuta disse que não seria fácil falar mas que eu precisava... até Bethina me encheu o saco pra eu definir uma data e vir aqui te falar sobre tudo isso que está acontecendo comigo.

- Continua enrolado - Ela deu um gole no café com um sorriso sincero nos lábios - Vai, um, dois e...

- ... eu não me identifico mais como menino e sim como menina - Ela parou - Nunca me identifiquei como menino sabe? Por fora eu podia até ficar mais tempo com essa aparência mais masculina, mas por dentro isso foi machucando, foi magoando, por isso que quando pintou o primeiro trabalho fora daqui eu fui sem muito planejamento sabe? Eu queria meu espaço sozinha pra pensar nisso tudo, poder fixar umas ideias na cabeça, descartar outras e chegar nesse ponto atual... eu quero viver o resto da vida como a mulher que eu sou por dentro mas, daqui pra frente, por fora também... - Respirei fundo, força - Eu sou uma mulher trans.

- Pronto - Ela lentamente pousou a xícara na mesa e se levantou vindo me abraçar, foi inevitável o choro - Eu sempre imaginei algo assim, sabia?

- S-s-sempr... - minha voz estava horrível e com a mão macia de minha mãe me acariciando os cabelos era como se toda aquela espera, todos aqueles anos esperando e planejando essa situação encontrassem aqui, nesse instante - C-c-como voc...

- Como eu sabia? - Ela deu um beijo na minha testa - As mães sempre sabem das coisas - Ela sorriu enxugando minhas lágrimas - Fora que tinha épocas que você nem tentava disfarçar... por muito tempo achei que você fosse gay, cheguei a cogitar isso...

- Quando isso?

- Lá pelos seus quatorze anos eu via que meu guarda-roupas sempre estava meio bagunçado, minhas calcinhas do avesso... primeiro pensei que fosse algo da puberdade, depois fiquei um tempo tentando entender, mas vi que você foi tomando um rumo e agora ta aí, me enchendo de orgulho...

- Orgulho?

- Lógico, você é uma pessoa de bem, não faz coisas erradas... - Outra onda de choro que fez outro abraço se fazer - ... eu só fiquei curiosa com a moça, é sua amiga ou é noiva mesmo?

- É noiva mesmo!

- Mas você acabou de dizer que é mulher...

- ... sim - Sorri ruborizando - E acho que lésbica. - Fiz uma caretinha - É meio confuso, mas eu amo ela e ela me ama.

- Ah bom, se tem amor o resto que se foda.

- Que isso, mãe.

- É a real meu filh... aliás, como eu devo te chamar daqui pra frente?

- Pode ser... Filha, Fê...

- ... Vou acabar errando às vezes, então me perdoe antecipadamente ta bem? - Ela sorriu - Sua mãe é um pouco lerda com isso... 

- Normal, todo mundo demora pra entender... 

- Pode sair daí, Bethina - Minha mãe ergueu a voz - Você é uma péssima ninja - Rimos enquanto ela saía de debaixo da janela e entrava pela porta da cozinha - Vê se faz ele feliz, digo, ela.

- Não precisa nem pedir.

- Mas e como vocês se conheceram? Aliás - Minha progenitora me olhou - Eu imagino que você queira ficar mais a vontade, não? Vai lá no quarto enquanto eu faço uma sabatina nessa moça aqui...

- Pega leve, dona Sônia.

- Vai logo - As duas falaram em uníssono e riram.

Os passos até o quarto foram como se caminhasse em um chão feito completamente e nuvens, a sensação de que aquilo era um sonho era tão intensa que me belisquei inúmeras vezes no corredor da cozinha até o que um dia já foi meu quarto e hoje era escritório e quarto de hóspedes. Ao longe ouvia as vozes, risadas e um papo fluindo tão leve que acho que as duas já eram melhores amigas de outra vida. Fechei a porta do quarto e me despi inteira. O corpo depilado. Comecei com sutiã com bojo, um calessom azul escuro e um vestido azul escuro com mangas bem curtas que tinha comprado alguns dias atrás com o objetivo de andar aqui. 

Era incrível como às vezes a gente protela coisas que na nossa mente são tempestades imensas e para os outros são apenas uma garoa fina. Diante do espelho passava uma escova rápida no cabelo só para separar os fios, da mala peguei a necessaire com base suave, com habilidade aprendida em centenas de horas de tutoriais do YouTube eu me julgava uma aprendiz, mas cobri as olheiras, fiz uma maquiagem suave am redor dos olhos, batom que deveria ser nude mas era três tons mais escuros que minha pele reforçava o contorno dos meus lábios, um brinco pequeno e nos pés o bom e velho chinelo de dedos. 

O espelho me sorriu.

Meu retorno à cozinha foi sorriso e elogios. Bethina se ofereceu para assumir as panelas enquanto eu e minha mãe caminhávamos pela praia, que tínhamos mais coisas para conversar. Essa minha noiva era abusada às vezes e o foda é que essa era uma das características que eu mais gostava nela.

E foi assim que, mais de vinte anos de enrolação viraram uma conversa que não durou meia hora e teve uma aceitação tão boa que me senti idiota por ter enrolado tanto tempo. Caminhamos em silêncio enquanto o vento gelado vindo do mar subia por minhas pernas. Durante aqueles passos diante do mar dezenas de outras perguntas vieram e todas respondidas com tanta maestria que se fosse a banca do TCC eu tiraria a maior nota possível. O mar cadenciava os questionamentos e a sua dissolução completa e, conforme falava, sentia ainda mais força para seguir adiante, cada palavra que dizia a confiança dobrava. Ao fim de mais de uma hora e com a boca seca voltamos para casa. Antes, parei um instante sozinha diante daquela imensidão. Juntei as palmas das mãos, inclinei a cabeça para frente sentindo-me abraçada pelo vento que agora era impossivelmente morno. Uma última lágrima rolou pela face. Abri os olhos.

Obrigada, Oceano.

CdF s2 e15: Mão

Eu podia sentir na mão dela a hesitação quando a voz quase robótica anunciou o nosso portão de embarque. Poderíamos ir de avião, mas a grana estava curta, mais a mais não havia voos para a cidade onde estávamos indo. Segurei firme a mão de Fernanda enquanto dava o primeiro passo com um sorriso fino nos lábios. Ela respirou fundo e deu o passo completamente fraco. Posso apostar que se eu não estivesse aqui ela não faria essa viagem, muito menos daria o salto de fé que, espero, que ela dê quando cheguemos à cidadezinha onde a mãe dela morava.

Quando entramos deixei que ela ficasse com a janela. Seriam quase dez horas de viagem, por isso cada uma trouxe sua própria playlist. Embora meu plano fosse dormir algumas dessas horas, friozinho, tão logo ganhamos a rodovia e as luzes do corredor se apagaram pude notar o silêncio dela e isso me cortava o coração. Mas não podia fazer nada agora, cada quilômetro era como uma badalada de um relógio que ela achou que nunca fosse despertar.

Fê gostava de ouvir alguns rocks pesados, podcasts de comédia e de saúde mental. Eu até gostava de alguma coisa que ela ouvia, mas minha playlist ia por algo mais introspectivo, jazz, soul, podcasts sobre política, empoderamento... coisas assim me davam ânimo e confiança no em mim mesma. Talvez por isso logo que saí da Lótus eu não tenha demorado dois dias para arranjar alguma outra coisa. Se bem que aquela mensagem da Freya me deixou encucada.

A verdade que aquele som baixo, o ar condicionado fresco e apaguei. Fui acordar já nos arredores do ponto final. Sentia a cara mais amassada que roupa depois de sair da máquina de lavar. A mão de Fernanda na minha, ela sorrindo de canto ao rever paisagens que já conhecia. Descer em uma rodoviária quase sem movimento onde aquele ônibus parecia o mais avançado da tecnologia que aquele lugar via foi a primeira sensação estranha.

- Bem-vinda a Mar Redondo, amor - Era a primeira vez desde que saímos da Metrópole que ouvia ela falar algo, aquele silêncio era ensurdecedor, porém eu entendia - Vem, vamos pegar um táxi.

- Chama pelo aplicativo...

- ... Ah, aqui não tem essas modernidades.

- Como assim? - Arrastava minha mala ao passo que Fê fazia o mesmo - Aqui está realmente no século vinte e um?

- Besta - Ela riu - Está sim, só que uma lei municipal proibiu de ter, só isso.

- Ah ta - Entramos no táxi, as duas sentadas no banco de trás, ela passou o endereço e ficamos a viagem toda em silêncio - Boa oportunidade para ganhar uns trocados aqui.

- Pode tentar, mas fora da temporada isso aqui é tão morto quanto qualquer cidade pequena.

- Mas os hotéis ainda funcionam...

- Ah sim, sempre tem viajantes.

A verdade é que a mãe dela morava em uma ilha. Não era sentido figurado, era uma ilha mesmo. Uma hora de barco do pier em frente do hotel até onde ela tinha um pequeno chalé. Boa forma de curtir a aposentadoria. Hotel horrível, mas confortável o suficiente para dormir em paz. Me surpreendi com o silêncio noturno, era quase irreal, assim como Fernanda dormindo com uma camisola... quem diria.

Com os primeiros raios de sol Fernanda despertou e fez questão de me despertar também. Pelo menos o café daqui era bastante tolerável e me acordou. Apesar do sono não queria perder esse ânimo todo que imbuiu-se da alma dela. Devo confessar que a ideia de entrar em um barco de madeira, motor barulhento, lento não me agradou nada, mas ouvi-la falar dos lugares onde brincou quando criança, do quanto gostava de pegar esse mesmo barco e passar o dia naquela ilha me convenceu de que tudo ida ficar bem.

Assim que chegamos agradeci por estar vestindo shorts e chinelos de dedo, odiaria ter que trocar de calçado na areia. Quase me lembrei de uns anos atrás quando eu fazia esse tipo de aventura com as amigas, era legal acampar, acho que logo vou bolar um acampamento e arrastar dona Fernanda, dariam ótimas fotos.

Ao longe uma figura veio se aproximando. Uma mulher, não mais que um e sessenta, cabelos brancos e brilhantes como se fossem cromados, pele bronzeada, roupa simples. Sônia. Mãe dela. Ou melhor, dele. Até que Fernanda falasse eu não podia errar e a sensação de estar andando sobre ovos era horrível. Mas ver o mar me acalmava e as ondas me diziam que tudo ia ficar bem.

Saravá, Iemanjá.